A Paraíba em curta metragem

maio 5, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

O Desejo do Morto, de Ramon Porto Mota

O Desejo do Morto, de Ramon Porto Mota

Algumas observações sobre os curtas paraibanos exibidos no CinePort 2014
por Fábio Andrade

Fui convidado a participar de dois júris na última edição do CinePort – festival de cinema dos países de língua portuguesa, realizado em João Pessoa, na Paraíba. O primeiro se reuniu antes do festival, elegendo, em uma série de categorias, produções dos países de língua portuguesa, lançados comercialmente no ano anterior. O resultado é divulgado de antemão e essas escolhas compõem parte da programação do festival. O segundo foi o do Prêmio Energisa Estímulo ao Audiovisual Paraibano, elegendo um vencedor entre quase trinta filmes de curta e média-metragem produzidos no estado, vistos durante o festival.

Talvez não se enquadre no protocolo informal que um jurado escreva posteriormente sobre filmes que ele avaliou junto de seus colegas de júri (neste caso, o cineasta Ricardo Targino e o crítico português António Loja Neves), uma vez que os resultados já foram dados e que essas linhas distanciadas podem ser tomadas equivocadamente como prestação de contas. Mesmo assim, o contato aprofundado com uma fatia ampla e estimulante da produção paraibana – que vinha, inclusive, ganhando presença maior em festivais nacionais nos últimos anos, já esboçando um pedido por sistematização crítica – e a escassez de reflexão (e mesmo de informação – com raras exceções, é difícil encontrar até mesmo as sinopses dos filmes na internet, o que dá a irônica impressão de uma invisibilidade programática) acessível sobre essa mesma produção faz com que falsas questões protocolares como essa pareçam rapidamente irrelevantes. Passada a premiação, alguns filmes, imagens e impressões permanecem na memória, e não há canto mais sedutor do que a percepção dessa permanência. Retomo, então, o impulso de escrever justamente sobre o que ficou desse contato, fazendo um desenho possível a partir da programação, sabendo da inevitabilidade manca tanto das escolhas quanto das ausências.

Embora a seleção apresentada no CinePort não apresente o todo da produção, seu recorte é significativo o suficiente para suscitar generalizações. Hoje, acompanhando o cinema brasileiro razoavelmente de perto, é difícil pensar em outra cinematografia no país que apresente um eixo tão claro quanto a paraibana. Guardadas as diferenças filme a filme, o agrupamento aponta sobretudo para a unidade do todo, para um universo comum que conecta boa parte do que é feito e que é modulado de maneiras diferentes pelas sensibilidades individuais de cada artista: o encontro do real com o fantástico. Se, por um lado, percebe-se aqui uma continuidade da espinha dorsal do realismo fantástico literário – a permeabilidade entre uma vivência concreta e uma experiência mística, sem que uma esfera estranhe a outra -, é interessante reparar não só como esse fio central ganha tensões distintas nas mãos de diferentes diretores, mas também de como ele permanece insistentemente presente em quase todos os filmes (e falarei de algumas exceções adiante), retomando a tradição (hoje nem tanto presente) mística do cinema brasileiro. Uma vez afirmada essa inquietação hipotética, faz-se necessário voltar-se às diferenças, e perceber como cada artista lida com esse mesmo barro que lhe antecede, encontrando, na marca dos dedos, os rastros de uma proposta de futuro.

Documentar o imaterial

Entre os documentários, modalidade necessariamente mais terrena, é forçoso reparar como o misticismo é frequentemente tomado como tema, invadindo a vida cotidiana e ressignificando o mundo concreto com pontuações mais ou menos sutis do fantástico. Filmes como A Queima, de Diego Benevides, Abúzu, de Cecília Bandeira, Capela, de Ramon Batista, e Malha, de Paulo Roberto, todos se aproximam de assuntos ou situações que, por si só, tensionam os limites físicos da realidade, automaticamente colocando a própria prática documental em xeque. Mesmo em uma reportagem genérica como Além do Túnel, de Natan Pedroza – documento que não consegue encontrar maior especificidade de olhar diante daquilo que escolhe mostrar –, essa ambivalência se apresenta no assunto escolhido, naturalizando um paradoxo a princípio disparatado: as diversas lendas e relatos de experiências místicas que habitam as profundezas de uma igreja católica na Paraíba. Nas diferentes abordagens, mantém-se razoavelmente onipresente a filiação a um estilo que se aproxime do documentário contemporâneo sem deixar de contemplar as tradições culturais locais (um pouco como também fazem Camilo Cavalcanti, em Pernambuco, Petrus Cariry, no Ceará, e Helvécio Marins Jr, em Minas Gerais). Nesse filão, dois filmes se destacam, seja pela excelência de realização ou pela busca de um específico representacional que, embora ainda tateante, parece novo: Capela, de Ramon Batista, e Malha, de Paulo Roberto.

Em Capela, a câmera de Ramon Batista esquadrinha uma casa, por meio de uma decupagem de planos quase sempre fixos (embora existam momentos muito bem escolhidos para que a câmera se mova, e que chegam sempre como um dado de ação discreta do sobrenatural no cotidiano), buscando detalhes na decoração e na arquitetura que sejam suficientemente expressivos para caracterizar aquele espaço. O filme espelha, em sua estrutura, uma condição de sua própria busca: assim como há a crença de que bastam essas breves seleções, essas composições desgarradas em natureza morta, para expressar a verdade desse espaço, Capela também confia se manifestar exclusivamente em seu esquema formal, sem recorrer a qualquer tipo de informação mais direta para dar conta de o que pode não estar expresso em suas paredes.

Capela, de Ramon Batista

Capela, de Ramon Batista

Não deixa de ser curioso, porém, que, quando o filme finalmente chega à capela que lhe dá título, ela apareça ao espectador carregando certa surpresa. Curioso pois, se Capela é claramente movido pela possibilidade de se encontrar inteireza na soma de suas partes (da casa e do filme), o elemento que torna este espaço (e, a rigor, este curta metragem) distintivo o suficiente para ser digno de um filme em nenhum momento se manifesta nesta lógica de acúmulos, funcionando muito mais pela ruptura do que pela continuidade natural do fluxo construído até ali. Se, por um lado, a surpresa contraria o sistema formal do filme – sistema que, a rigor, é o filme – ela é, também, uma declaração de como o sentimento místico pode irromper do mais corriqueiro cotidiano, aqui representado pela presença da capela dentro de uma casa insuspeita, capaz de resguardar seu mistério mesmo ao detido mapeamento feito pela câmera. Essa irrupção do maravilhoso que perturba a ordem do comum ganha corpo no plano final do filme, sem dúvida uma das imagens mais belas de todo o festival: a fachada da casa, no mesmo enquadramento que abre o filme, reaparece agora coberta por um céu estrelado em CGI.

A segurança do trabalho de câmera de Ramon Batista, aliada à precisão no manejo dos tempos na montagem, faz com que Capela se apresente como um trabalho de notável maturidade. Embora talvez lhe falte maior especificidade nas escolhas em o que fazer com esse domínio (embora muito bem realizado, Capela termina parecendo um filme demasiado comum) para galgar uma posição de destaque no panorama nacional, o domínio cinematográfico e a precisão de olhar chamam a atenção junto aos outros filmes aqui exibidos, algo que lhe reserva perspectivas de enorme potência caso ele encontre um universo mais exato e particular.

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Malha, de Paulo Roberto

No oposto simétrico dessa mesma equação está Malha, certamente uma das maiores descobertas da programação. Se, a princípio, a documentação da festa cristã da malhação de Judas não é um tema exatamente original, há um potencial de assombro impresso nas máscaras de retalhos, nas invasões das casas e na ritualização alcoolizada de uma iminente perda de controle que parece potencialmente novo. O comum ganha força na unicidade superificial dos elementos filmados: todos já vimos malhações de Judas antes, mas não com o deslocador poder assombroso que se vê aqui. Na brutalidade eisensteiniana dos mascarados, Malha prospecta uma originalidade latente, trazendo para seu habitat, sem esforços de importação, uma agressividade epitelial frequentemente vista no cinema de um dos maiores (e mais forçosamente emulados pelo jovem cinema brasileiro) cineastas em atividade: Apichatpong Weerasethakul. Em seus melhores, mas extremamente fugazes momentos (há uma fobia pela duração do plano aqui), o filme parece ter fôlego para alcançar frações da estranheza ritualística de filmes como I’m Still Breathing e Phantoms of Nabua, ambos de 2009, mas também de Nego Fugido (também de 2009), de Cláudio Marques e Marília Hughes, e outro curta de nome Capela (2011), de Gustavo Rosa de Moura.

Malha, de Paulo Roberto Duração

Malha, de Paulo Roberto

O problema é que falta a Malha justamente o foco (tanto na montagem quanto na câmera, inclusive literal) de escolher o que lhe interessa para poder criar uma estrutura que direcione os sentidos desse material. Há certo poder de distração na mais-valia etnográfica do objeto filmado que por vezes trava o filme em sua capacidade de ficcionalização da experiência, e que faz com que sua fruição seja sempre irregular e interrompida. São entraves até certo ponto naturais diante de um tema como este, mas não faltam exemplos (como os filmes realizados pelo Sensory Ethnography Lab, por exemplo, além do próprio Weerasethakul) de como o cinema já resolveu estas questões há tempo suficiente para que elas sejam arrancadas pela raiz. Embora Paulo Roberto encontre alguns dos momentos mais fortes e literalmente impressionantes de toda a seleção (além de uma sensação latente de descontrole que, mesmo pedindo aprofundamento, se sustenta de ponta a ponta), ao final permanece a impressão de que o filme talvez não saiba exatamente quais momentos são esses, e que eles tenham acabado se infiltrando pelas fendas inevitáveis a todo documentário que não vislumbra ir muito além da condensação da experiência de filmagem. Se Capela, de Ramon Batista, dá a impressão de uma forma que aguarda um universo, Malha é um universo potente carente de forma, clamando pela escolha rigorosa de o que mostrar e pela auto-permissão em ser tão violento com o material quanto aquele rito se permite ser com a normalidade da vida.

O fantástico como simbólico

Assim como o fantástico entra por janelas entreabertas na produção documental, na ficção há um conjunto de filmes que trilha de maneira mais tradicional as veredas abertas pelo realismo mágico literário. Neles, a inclusão de elementos dissonantes a uma realidade bruta é recurso que tenta exprimir o indizível, metaforizando e dando corpo aos sentimentos dos personagens. É este o caso de Gatilho de Prata, de Bruno de Sales, Púrpura, de Tavinho Teixeira, O Vendedor de Armas, de Erik Medeiros, e Nascedouro, de Bernardo Teodorico.

O Vendedor de Armas é um passeio de curtíssima duração (apenas um minuto) por um universo bastante tipificado de parte do cinema brasileiro das últimas décadas, que se convencionou chamar por aqui de hiper-realismo (Texas Hotel, de Cláudio Assis, é a matriz aqui, mas Ferrolho, do também paraibano Taciano Valério, e a primeira parte de Meu Nome é Dindi, de Bruno Safadi, também vêm à lembrança). Mas se, por um lado, sua agilidade consegue extrair suspiros de inspiração, ela também depende de um pronto reconhecimento do universo ao qual o filme se filia para poder acontecer, e termina por não alterá-lo significativamente. O Vendedor de Armas propõe a recomposição de um ambiente familiar a olhos mais frequentes no cinema brasileiro, e a cumpre com competência. Em nenhum momento, porém, o filme ambiciona ir além de se situar dentro de um lugar já existente, e termina sem oferecer algo de novo além da competência na administração dos pressupostos desse quase gênero, em uma espécie de showcase de habilidades que, embora bem articuladas, terminam como aperitivo do já visto.

Nascedouro, de Bernardo Teodorico

Nascedouro, de Bernardo Teodorico

Não sem ironia, sensação parecida é provocada pela ambiciosa alegoria de Nascedouro, de Bernardo Teodorico, também de contornos hiper-realistas. O filme, adaptado de um conto de Tavinho Teixeira, é visivelmente competente na criação de um universo hermético – e uso aqui o termo “hermetismo” sem o tom pejorativo corrente que se vangloria da incapacidade de acessar o outro, e sim como expressão literal de um universo fechado a vácuo, do qual nada pode sair e no qual nada pode penetrar – que se fia, sobretudo, em um esplendor visual. Essa aspiração por um drama auto-encapsulado foi concretizada com maior inteireza no cinema brasileiro recente em Muro (2008), de Tião. Mas se no filme de Tião os vetores desse universo autônomo se manifestam em simbolismos que apontam sempre para fora dessa lógica hermética, fugindo de seus próprios grilhões, em Nascedouro essa auto-concentração é sublinhada por uma amarração fatalista na montagem paralela entre quatro tramas aparentemente distintas (o homem que se masturba no alto de um prédio; a criança que o observa, da rua; a mulher que vai ao açougue comprar carne; o homem que se desloca pela rede de esgotos da cidade), cujo poder simbólico é demasiado claro (carne, sexo, dutos, profundezas, superfície, corpo, morte, vida, geração). Enquanto Muro cria um espaço igualmente hermético, mas reserva, em seu centro, uma lacuna a ser preenchida por cada espectador, em Nascedouro toda a transparência de seu simbolismo parece convergir em um jogo de cartas marcadas que dispensa participação.

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Púrpura, de Tavinho Teixeira

Púrpura, dirigido pelo mesmo Tavinho Teixeira, mergulha ainda mais fundo na mitologia fantástica, em uma obra que parece flutuar alheia a todo tempo e lugar, mas que, diferente de Nascedouro, prima pela abertura. Em resumo, trata-se de uma coleção de ícones auto-suficientes – mais uma Via Sacra do que um filme em tableux – buscando condensar todo seu significado na composição da imagem. Mas, embora diversos dos planos sejam de uma expressividade estonteante, há uma irregularidade de tom nesse registro – dificuldade, a propósito, já amplamente superada em seu longa seguinte, o ótimo Batguano –  que nem sempre se realiza como linha-mestra capaz de guiar todos os planos. Há algo de levemente esquizofrênico que atravanca a fluidez necessária a Púrpura: se, por um lado, a manipulação das propriedades materiais das imagens (cores, brilho, contraste) traz resultados inesperados (a noite americana prateada sendo o mais belo exemplo), por outro, há um ruído constante entre a auto-reverência da encenação e uma dificuldade nas intervenções estilizadas na cena (figurino, maquiagem, cenário) que nunca se converte em algo que realmente serve ao filme, por vezes fazendo com que uma obra que prima pela abolição de um tempo histórico e cronológico em nome de um tempo emocional e espiritual pareça, ironicamente, um tanto velha.

Púrpura, de Tavinho Teixeira

Púrpura, de Tavinho Teixeira

Púrpura, porém, tem uma capacidade bastante singular de se renovar: tive meu terceiro contato com o filme neste CinePort, e a cada revisão percebo que os sentidos e os impactos se organizam de maneira diferente das anteriores. Ao contrário de Nascedouro, aqui há um nível de articulação de sentidos muito sutil, operando entre os quadros, que permite que eles se rearranjem de maneiras variadas no fluxo mental do espectador, embora a montagem permaneça a mesma. Os sentidos (aqui, palavra essencialmente tátil) do filme se alastram como a peste que ele testemunha, mas a sensação é de que a cada novo contato os sintomas que anunciam sua chegada são diferentes. Ainda assim, mesmo depois de três encontros com o filme, permanece a sensação de que o mistério que habita essas imagens por dentro se coagula em algum ponto antes de eclodir na pele, e Púrpura nunca chega a realmente acontecer.

Melhor equilíbrio é encontrado em Gatilho de Prata, de Bruno de Sales. Aqui, a convivência entre o concreto e o simbólico se orienta por um diapasão essencialmente realista, cru, que remete mais diretamente ao cinema de Tsai Ming-liang (não só pela sequência com a melancia). O simbólico, aqui, mais que fantástico, é tão integrado à vivência cotidiana quanto o chão de terra e o sal do mar, fazendo parte de uma mesma camada sensível, tramando uma grande teia de sentidos capaz de contrastar o hermetismo de Nascedouro com a abertura lacunar de Púrpura. Gatilho de Prata se fia numa ressignificação constante dos objetos de cena – os cigarros usados como protetores de ouvido; a melancia que adquire um peso simbólico no momento em que se parte contra o chão; as caixas de som – que consegue, ao mesmo tempo, sugar o espectador para dentro de seu universo e mantê-lo em defasagem suficiente em relação a seus significados (que se parecem com os do mundo que experimentamos fora do cinema, mas que rapidamente se mostram regidos por outra lógica) para que a experiência de assisti-lo se renove em constantes descobertas cênicas, até o arremate final.

Gatilho de Prata, de Bruno de Salles

Gatilho de Prata, de Bruno de Salles

Mas se a efetividade do filme de Bruno de Sales depende intimamente dessa desorientação do espectador diante da concretude do irreal, é justamente no espaço por excelência dessa manifestação que o filme se complica: no trabalho sonoro. Há um desenho monocórdico do fora-de-campo aqui que, a despeito de seu papel central na trama, não só se esgota muito rapidamente como unidade de sentido (se a redundância real é trágica, a redundância que se revela irreal esvazia a tragédia), quanto age em sentido contrário ao efeito de concretude que o filme se esforça por (e sucede em) construir. O tiro termina saindo pela culatra, pois Gatilho de Prata se nutre do adiamento de um efeito de indeterminação entre o real e o simbólico que o som desfaz desde o princípio, transformando o clímax em anticlímax, sacrificando toda uma cuidadosa construção de cena com a dificuldade de encontrar a dosagem exata das ideias que agem sobre ela.

A força da gravidade

Se o fantástico é um recurso dramático que aparece mais frequentemente como possibilidade de transcendência da vivência concreta, dois dos filmes apresentados tomam a direção contrária: Não Tão Longe e Cova Aberta, ambos de Ian Abé. Esse trajeto às avessas já aparecia com enorme clareza no curta que provavelmente apresentou o diretor ao cenário brasileiro: Mais Denso que Sangue, excelente trabalho de 2012, exibido à época em competição na Mostra de Tiradentes e premiado em alguns outros festivais. Em Mais Denso… – que consegue a proeza de ser, ao mesmo tempo, iconoclasta e iconográfico -, uma encenação da Paixão de Cristo é interrompida por um assassinato, obrigando que o elenco saia em uma perseguição de motocicletas pelas ruas de Cabaceiras em busca do assassino, terminando em um duelo de Western protagonizado por ninguém menos que Jesus Cristo. A encenação como experiência divina é interrompida bruscamente pela arbitrariedade da realidade, puxando o desejo de transcendência violentamente para o chão. Com a força desse tranco, Mais Denso que Sangue promove um potente casamento entre um savoir faire do cinema de gênero e uma realidade especificamente local que guarda diversos pequenos achados (do qual o improvisado sistema de som da Paixão de Cristo talvez seja o mais especial).

Cova Aberta, de Ian Abé

Cova Aberta, de Ian Abé

De certa maneira, o mesmo desenho pode ser visto – embora não tão bem traçado quanto em Mais Denso… – em seus filmes seguintes, apesar de, nestes dois curtas em questão, o fantástico ser atenuado para uma projeção do fora, de o que não está no filme, mesmo que permaneça com os pés no chão… um além-filme, mais do que um além-mundo. Em Cova Aberta, duas personagens se encontram in media res, sofrendo as consequências de ações que transbordam o universo mostrado: a protagonista chora dentro de um carro, por motivos que não são revelados, até encontrar uma segunda mulher, que enterra um bebê à beira da estrada e diz estar fugindo de alguém. Espectador e protagonista passam o resto do filme lidando com projeções fantasmagóricas desse extracampo do drama das duas personagens (afinal, o grande esforço de Cova Aberta está em consumar uma perseguição de carros que nunca se configura totalmente, a não ser na imaginação da protagonista e do espectador, pois ao filme é necessariamente interdito afirmar se há ou não um perseguidor), para, ao final, serem confrontados com uma torção de roteiro que devolve concretude a essa esfera ausente que, até ali, agia diretamente sobre a trama. Assim como em Mais Denso…, o drama converge a esse mesmo golpe do destino que obriga a imaginação a descer ao nível do chão, castrando seu vôo.

Cova Aberta, de Ian Abé

Cova Aberta, de Ian Abé

Não deixa de ser sintomático, porém, que essa virada de chave aconteça ainda na primeira parte de Mais Denso…, e apenas nos últimos segundos de Cova Aberta. Ian Abé parece mais confortável em esgarçar os limites do real do que em adiar a afirmação de sua inevitabilidade: enquanto a sequência de perseguição de motos de Mais Denso que Sangue era orquestrada por uma decupagem absolutamente precisa, pontuada por achados inspirados de mise en scène que facilmente extrapolavam o mero exercício de transposição de gêneros (o corte bressoniano, no meio da ação, para um plano em que uma mão segura o acelerador da motocicleta e um revólver, ao mesmo tempo, por exemplo), Cova Aberta parece nunca superar de todo as deficiências de seu material (o nada crível desenho de luz do interior do carro; a construção sonora pouco desenvolvida; a sensação de que a decupagem não provê a variedade de planos demandada pela montagem; as passagens de roteiro que esticam o drama um tanto além do limite de sua credibilidade), e o interesse do filme termina como uma tentativa nem sempre bem sucedida de tour de force em torno de um cliffhanger. O limite está justamente em depender da crença do espectador em um universo cuja credibilidade nunca é totalmente lograda, e que a todo tempo aponta para as evidências de sua construção. Cova Aberta é parte de uma cooperativa de filmes paraibanos feitos “na raça”, chamada Filmes a Granel (do qual faz parte, por exemplo, o extraordinário Sweet Karolyne, de Ana Bárbara Ramos), e, por mais que seja complicado deduzir as implicações de um sistema de produção a partir do resultado final, a impressão é de que as incursões de Ian Abé pelo cinema de gênero demandam maiores possibilidades de controle (de tempo e de recursos de filmagem) para se consumarem totalmente – como faz, com notável sucesso, em Mais Denso que Sangue.

Não Tão Longe, de Ian Abé

Não Tão Longe, de Ian Abé

Nesse sentido, Não Tão Longe chega como possibilidade de aprendizado. Filme visivelmente menor, de ambições mais terrenas, o curta segue o formato caminhada+conversa, aqui mais próximo de Richard Linklater do que de Eric Rohmer. Se parte da surpresa do filme está em o quão diferente ele é dos dois curtas anteriores do diretor, sua aparente diferença camufla o mesmo desenho, que aqui ganha uma camada metalinguística: a conversa sobre a aplicação de um padrão de enredo de road movie (no caso, Paris, Texas) a um projeto de vida, sugerido pelo rapaz, é confrontada com o mundo real quando a menina lhe diz que está grávida. Assim como a religiosidade em Mais Denso… e o espelhamento em Cova Aberta, a projeção de um fora (um filme e um futuro) é tragada para o redemoinho inescapável da vida concreta, criando uma curva dramática na direção oposta ao vôo para fora que o filme ensaiava até o momento.

Os talentos e as fragilidades de Não Tão Longe vêm mais claramente à superfície quando confrontados a um outro filme brasileiro recente, que por vezes parece servir como modelo para o que Ian Abé faz aqui: Pouco Mais de Um Mês (2013), de André Novais. Pois no filme de Novais, outro épico de conversa, há um centro muito claro, uma espécie de buraco negro dramático para o qual todo o filme apontará: a sequência da câmara escura que reproduz a imagem da rua no teto do quarto. Não Tão Longe parece propositadamente evitar construir um centro equivalente para si, o que, embora faça sentido como drama (são personagens sensivelmente mais desorientados, em uma situação de crise mais concreta do que os de Pouco Mais de Um Mês, que, por sua vez, vivem uma aparência de crise – ou uma crise de aparência), termina por conferir ao filme uma flutuação vacilante, demasiado incerta. 

Não Tão Longe, de Ian Abé

Não Tão Longe, de Ian Abé

A ausência de centralidade, porém, desloca a atenção para as minúcias da cena – uma tentativa de buscar outros centros possíveis, talvez – e, se por um lado Ian Abé encontra uma expressividade insuspeita na simples escolha dos tipos físicos dos personagens (basta olhar para as diferentes posturas de ombros dos dois atores para entender como funciona aquela relação – diferença que marcada nos vários planos que acompanham os personagens de costas), falta ao filme (como faltava, em medidas diferentes, também aos seus filmes anteriores) uma urdidura mais exata dos tempos dentro da cena, para que aquela caminhada possa de fato se transformar em coreografia, as pausas se configurem como separações e os silêncios ganhem o peso do não-dito. Além disso, enquanto o filme de André Novais é uma ode a conversas que aparentemente giram no vazio, em Não Tão Longe não parece haver espaço para palavras desperdiçadas. A exatidão das entradas e saídas de cena em relação ao texto, indo sempre direto ao ponto, joga contra a abordagem realista de tempo e espaço permitida pela filmagem em planos longos, em uma impressão de realidade que depende vitalmente desse desperdício de saliva e de vida (e não é exatamente este o assunto do filme?). O controle desse lado intrinsecamente musical do cinema (música do corpo e música da fala) demanda prática, aperfeiçoamento, e filmes mais leves como Não Tão Longe carregam certa vocação de exercício entre filmes mais ambiciosos (como Mais Denso que Sangue e o próprio Cova Aberta) justamente para que esse tipo de faculdade possa ser trabalhada. Ainda assim, é revelador como Ian Abé encontre uma força dramática mais constante em Não Tão Longe do que em seu curta anterior, e de como esse “exercício”, na aparente simplicidade das indefinições da passagem da adolescência à vida adulta, se mostra não raro verdadeiramente tocante.

O fantástico como cinema

Dessa experiência mística que parece profundamente enraizada na vivência paraibana, a ponto de se manifestar em filmes tão diferentes, não é surpresa que em algum momento o cinema se torne, também, uma janela possível para a transcendência. Três dos melhores filmes apresentados na mostra de curtas paraibanos do CinePort lidam, de maneira mais ou menos frontal, com essa possibilidade: O Lendário Escritor de Frases do Biscoito da Sorte, de Marcelo Gonçalves; Matador de Ratos, de Arthur Lins; e O Desejo do Morto, de Ramon Porto Mota – filme contemplado com o prêmio principal.

Em O Lendário Escritor de Frases do Biscoito da Sorte, a possibilidade de transcendência da realidade de um trabalho confinado a um apartamento, na produção de sabedoria que caiba dentro de um biscoito (imagem não muito distante da Pastelaria Espiritual, de Carlos Reichenbach, no grande Alma Corsária), está em uma televisão permanentemente ligada, rodando DVDs de gravações pirateadas do Canal Brasil. O cinema brasileiro – mais especificamente, a pornochanchada – é a janela que aponta para um fora não exatamente de campo, mas de tempo, apontando para uma época (um cinema, uma forma de lidar com o mundo, uma sensibilidade) que não existe mais. Essa aspiração por um ser-outro culmina na sequência final do filme, em que o fantástico se materializa: a recriação plano a plano de uma sequência de Karina, Objeto do Prazer (1981), de Jean Garrett, aqui protagonizada pelo escritor de frases do biscoito da sorte, como se ele tivesse entrado na diegese do filme. O cinema permite driblar a solidão, confirmando a relação afetiva com uma imagem distanciada no tempo e no espaço em um contato efetivamente físico com o Outro.

O Matador de Ratos, de Arthur Lins

O Matador de Ratos, de Arthur Lins

Se o filme de Marcelo Gonçalves desagua no cinema, O Matador de Ratos, de Arthur Lins, inicia a partir dele, literalmente: ratos invadem um cinema enquanto um grupo de jovens assiste a um filme de Lucio Fulcci. O Matador de Ratos se desenvolve como uma versão exploitation de Naked Lunch (1991), um dos grandes filmes de David Cronenberg. Na adaptação de William Burroughs feita por Cronenberg, um escritor que trabalha paralelamente em uma empresa de detetização se vicia no remédio usado para matar baratas. O ócio distorcido ocasionado pela ingestão da droga metaforiza os desafios criativos do próprio Burroughs em sua carreira de escritor. O mesmo acontece com o matador de ratos do filme de Arthur Lins, mas sua versão é ainda mais fatal: o entorpecimento não serve como fuga do trabalho; ao contrário, ele transforma todo o mundo em uma infestação a ser controlada, em um salto ao fantástico que é extremamente literal.

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Matador de Ratos, de Arthur Lins

Em todo o amplo escopo de sua ambição, O Matador de Ratos é o filme mais bem resolvido de Arthur Lins até o momento. A segurança da mise en scène e a permissão a intrusões bastante deliberadas na trama (como o excelente vídeo institucional do Ratox, e uma sequência central em que as imagens subitamente ganham uma viragem vermelho-sangue, que parece jogar o espectador em um filme de Kim Ki-young) denotam um amplo domínio de o que se quer fazer aqui, e, se por um lado permanece um resquício do fatalismo dramático de O Plano do Cachorro (2009) e de A Felicidade dos Peixes (2011), por outro, a conclusão em uma catarse gore tira muito desse peso. Há, porém, um incômodo discursivo aqui que remete a outro clássico do cinema: diz a lenda que o epílogo do clássico expressionista O Gabinete do Doutor Caligari (1920), de Robert Weine, havia sido uma exigência dos produtores para tornar o filme mais palatável. Ao levar o protagonista ao hospício, o mundo distorcido era ressignificado como o ponto de vista de um louco, tirando o peso da constatação de um mundo doente. Seria este movimento fundamentalmente diferente do efeito da inalação do remédio em O Matador de Ratos? Seria o Ratox uma dose de loucura ou de lucidez?

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O Desejo do Morto, de Ramon Porto Mota

Nesse sentido, a proximidade com O Desejo do Morto, de Ramon Porto Mota, é bastante ilustrativa. Pois se o filme de Ramon – que já dirigira o bom O Hóspede (2011), em parceria com Anacã Agra – também recorre à catarse gore como possível resolução de conflitos, em O Desejo do Morto ninguém é poupado. A constatação de um mundo podre contamina até mesmo os familiares mais próximos, e Ramon Porto Mota tem extrema habilidade em conduzir o filme até esta conclusão com a frieza necessária para que ela pareça, de fato, a única solução moralmente cabível (e parte da potência do cinema de horror está justamente em gerar o consenso de que um avô voltar dos mortos para matar sua neta e todos os seus amiguinhos é realmente a única saída razoável para aquele ninho de aranhas).

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O Desejo do Morto, de Ramon Porto Mota

Há, nos filmes de Ramon Porto Mota (assim como em Mais Denso que Sangue, de Ian Abé) não só um domínio pleno de o que se quer fazer, mas também um olhar muito específico que determina o que fazer com este domínio. Se o fantástico aqui é todo ele permeado pela cinefilia, impressiona no filme como ele é capaz de articular referências as mais distantes possíveis (quem mais poderia cogitar citar Recordações da Casa Amarela, de João César Monteiro, em um filme de horror tão rasgado? E, ao mesmo tempo, como isso não havia sido cogitado antes?) com dados de uma vivência que só poderia vir da Paraíba, nos dias de hoje. Esta combinação entre um savoir faire claramente adquirido vendo toneladas e toneladas de filmes, e um olhar panorâmico agudo o suficiente para se perceber o lugar exato que o artista ocupa no panorama presente é constatação de uma maturidade artística bastante rara e que encontra poucos pares no cinema brasileiro atual (além de Ian Abé, seu parceiro na Vermelho Profundo Filmes, penso em sujeitos como Rodrigo Aragão, no Espírito Santo, Adirley Queirós, no Distrito Federal, Gabriel e Maurílio Martins, em Minas Gerais, por exemplo).

Essa amplitude do cinema que Ramon Porto Mota pouco a pouco constrói é fundamental, pois, ao mesmo tempo em que é natural e desejado que o filme chame atenção justamente pela longa cena da catarse final – na qual a tensão do horror é habilmente prolongada pela decupagem e o clímax entrega tudo que é prometido até aquele momento – O Desejo do Morto nunca se permite existir somente em função dela. Ao contrário, o gore só é realmente efetivo por conta do detalhado trabalho de dramaturgia feito até aquele momento: raras vezes vimos um filme brasileiro (de curta ou longa-metragem) de um jovem diretor construir tão detidamente os vários personagens (secundários, até) que se reúnem ao redor de uma mesma mesa.

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O Desejo do Morto, de Ramon Porto Mota

O interessante desse equilíbrio alcançado por O Desejo do Morto é que ele clama, para si, um novo lugar dentro do cinema brasileiro, não se encaixando nem na anarquia extrema dos filmes de um Petter Baierstof, nem no horror abstrato de classe média do cinema paulista. Mais do que uma diluição de ambas as pontas, O Desejo do Morto parece se aprofundar no melhor dos dois mundos: tanto a explosão do gore mais extremo quanto a revelação do estado de espírito de um tempo e de um lugar, pela manipulação cuidadosa dos durações e das atmosferas. Seja em um diálogo à mesa de jantar, ou no degolamento de um parente próximo, o filme nunca se coloca à distância do que filma, encontrando a temperatura certa para as suas mais variadas modulações. Ao filme de Ramon Porto Mota, fica o desafio que é o mesmo de qualquer obra que requisita a invenção de um lugar que ainda não está pronto, à sua espera, no panorama cinematográfico brasileiro: ser visto e compreendido nas chaves que o filme oferece. Mas se, poucos anos atrás, O Hóspede chegava como a promessa de uma boa surpresa vinda da Campina Grande, em O Desejo do Morto é cristalina a sensação de que esta promessa (ou maldição) cinematográfica já é fato consumado.

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