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Quando o causo vira filme: reflexões sobre a arte de Faela Maya

Barzinho Clandestino se inicia com um plano onde uma personagem manda uma mensagem de áudio para outra falando que está a caminho. O plano seguinte é dela chegando a uma calçada onde outras três meninas estão em pé. Aqui há a ausência de uma convenção narrativa audiovisual: o plano de estabelecimento. O local onde elas estão, no entanto, é rapidamente apresentado em poucas linhas de diálogo:

– O mototáxi não achou o canto

– Também, a gente tá quase escondida…

– Eu consegui esse bar no sítio porque na rua os homem fecha.

O curta se constrói em cima de planos curtos, nos quais cada personagem fala sua parte do diálogo, e a montagem rapidamente corta pra outro plano, onde outra pessoa responde e/ou inicia outro diálogo. É acompanhando esse fluxo de diálogos em justaposições de planos que conhecemos as personagens em pouquíssimo tempo, sem nem perceber: uma crente que “escolheu esperar”, e que vai ficar na água de coco, uma outra que bate no peito dizendo ter superado o ex, mas que na verdade ainda ama e chora por ele, uma que tem um caso com um homem casado há cinco anos e problemas com a bebida.

O enredo aqui é bem simples: a aventura de quatro amigas solteiras em um bar clandestino durante a pandemia. Não há uma protagonista: a centralidade da história é a experiência coletiva das quatro. A maior parte da ação se dá num sítio onde perus e galinhas circulam. A ambientação é interiorana e carrega uma afetividade muito forte, seja no tom bucólico, seja na intimidade do clima – esse espaço é evidentemente o quintal de alguém, com roupas no varal e tudo.

Essa estrutura moldada por Faela Maya faz de Barzinho Clandestino um causo em forma de filme. O causo é um gênero típico do interior brasileiro, de contação oral de histórias fantásticas ou cômicas. Os elementos da mise-en-scène de Faela lembram os elementos essenciais de um bom causo: a montagem que corta os planos no limite entre uma fala e outra resulta numa rapidez que mantém o espectador atento, o que de certa forma é uma tradução da cadência da fala do contador que prende os ouvintes. A apresentação do enredo e das personagens através do diálogo alude à tradição oral do causo, reforçada pelo sotaque do interior, e o enquadramento que isola as personagens na tela reforça as expressões corporais e trejeitos das atrizes.

Como Walter Benjamin descreve em O Narrador, o gênero narrativo em sua tradição oral passa, desde o início do século passado, por um processo de extinção, por conta da mudança das condições sociais que propiciavam sua proliferação. No alvorecer da modernidade na Europa, o trabalho tedioso do artesão estava sendo substituído pelo trabalho nas fábricas, o que dificultava a cultura de se contar e ouvir histórias durante o trabalho. O artesanato era o grande catalisador dessa cultura de oralidade que tende a morrer com o surgimento de outras relações de trabalho e produção. O curioso é que aqui, no Brasil, de forma semelhante a outros países subdesenvolvidos, existe o que se chama de desenvolvimento desigual, que faz com que nos interiores se mantenham algumas relações sociais anacrônicas, onde diferentes temporalidades coexistem. Basta lembrarmos que boa parte do campo brasileiro passou a ter luz elétrica há menos de vinte anos, com o programa Luz para Todos. Portanto, nos interiores do Brasil, diferente do que acontece nos grandes centros, talvez, a cultura oral ainda influencia a vida e as produções culturais populares. Em Faela, os resquícios da oralidade se manifestam claramente, seja no diálogo inicial de Barzinho Clandestino que substitui o plano de estabelecimento, seja nos outros curtas onde ela aborda a fofoca. O prazer de ouvir, contar e recontar (e aumentar) histórias é o tema central de A Leva e Traz, por exemplo.

As características típicas da contação de histórias estão presentes em todo o trabalho de Faela. Barzinho Clandestino possui duas sequências: os curtas Barzinho Fechado, em que o bar finalmente fecha e elas têm de arrumar um jeito de irem embora com a amiga bêbada incapacitada; e Voltando do Barzinho, em que Faela mostra sua versatilidade com uma sequência de suspense no meio do filme. Ao fim deste último, uma das personagens recebe uma carta, fato que é gancho para outra série de filmes. Essa estrutura reflete o que está incorporado na narradora Sherazade de As Mil e Uma Noites, onde cada história é o ensejo de uma outra história. Mas, diferente de Sherazade, Faela conduz as suas personagens através das histórias. O trabalho dela também difere da tradição levada à TV por Chico Anysio: as personagens de A Escolinha do Professor Raimundo contavam e encenavam causos, mas não se eram usados recursos expressivos como a montagem rápida ou o flashback para transformar a obra em um “filme-causo”, como o que é feito aqui.

O artesanato, que Benjamin determina ser essencial ao narrador, está incluído no próprio processo de Faela, que é artesã de seus filmes. O cinema brasileiro já teve sua cota de artesãos, como Roberto Pires, que usou de seu conhecimento adquirido na ótica do pai para confeccionar a própria lente cinematográfica. Mas o que se tem hoje são as condições para que esse cinema artesanal se dê de maneira mais popular. É através da internet que Faela consegue distribuir seus filmes para a própria comunidade e também para fora dela, não precisando, assim, entrar num circuito que a distancie de sua principal matéria-prima: o povo.

Por fim, é preciso ter em mente a tese marxista da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a estagnação das relações sociais de produção: ao contrário do que se imprime no senso comum, avanços tecnológicos por si só não são capazes de transformar a sociedade. A máquina a vapor, por exemplo, não foi capaz de dar origem à revolução industrial, mesmo existindo por séculos. Foi preciso que outras condições sociais se reunissem (o crescimento da burguesia, a estagnação da produção feudal etc.) para que se usasse esse avanço tecnológico como catalisador de uma revolução. Hoje em dia vivemos um processo parecido com a internet. Não temos noção do que é uma sociedade que use todo o potencial da internet, porque ela ainda está sujeita ao capitalismo, que direciona essa ferramenta estritamente à manutenção e reprodução desse sistema. Por exemplo, ao criar algoritmos que monitoram e reproduzem padrões de consumo, restringindo a livre circulação de cultura, saberes etc. No entanto, a própria existência de um trabalho como o de Faela é um pequeno vislumbre do que a internet pode proporcionar, ao permitir que ela, no interior do Ceará, desenvolva uma linguagem audiovisual própria, calcada na cultura popular, atingindo um público de centenas de milhares de pessoas. E que, além de tudo, é um trabalho feito por uma pessoa LGBT, que coloca virtualmente só personagens femininas em cena (com exceção de dois meninos que são filhos de outras personagens femininas). Acompanhar o canal de Faela Maya – que além da série de curtas de onde saiu Barzinho Clandestino, “Humor Made in Interior”, também produz a novela “Pobreza Brasil”, que merece um texto à parte – permite constatar que uma nova produção audiovisual popular é possível.


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