Brasil S/A, de Marcelo Pedroso (Brasil, 2014)

setembro 21, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

brasilsa

A alma do negócio
por Raul Arthuso

No início de Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, um grande cargueiro, em plano zenital que faz da proa um falo que rasga o oceano, aporta no Brasil. Vindo da China, dele saem tratores solenemente escoltados pela polícia numa rodovia e por uma música grandiloqüente, espécie de marcha nacionalista imponente. A partir daí aparecerá o canavial, o extrativismo da terra, a urbanização desenfreada, a lavoura moderna do grande latifúndio, a aristocracia colonial tentando se passar por européia, o pré-sal descoberto em solo marciano numa colonização interplanetária brasileira surreal… Além do símbolo fálico da imponência, a chegada desse cargueiro marca um novo descobrimento: em vez de Cabral e seu escambo, chegam o desenvolvimentismo tecnológico e o capitalismo contemporâneo.

Na década passada, Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci, trazia uma pequena sequência revisitando a história dos quinhentos anos do Brasil como uma marcha que não encontrava seu fim senão no desastre travestido de progresso. Brasil S/Aé um painel saído de onde Tonacci parou. Um refrão poderoso do filme mostra a bandeira do Brasil hasteada sobre a cidade grande sem o círculo azul central que carrega as estrelas representando os estados e a famosa expressão – positivista – “ordem e progresso”. Com esse novo “descobrimento” encenado no início do filme, esse destino manifesto apontado por Tonacci se concretiza: a empresa chamada Brasil – reforçada pelo título do filme -, resultado de um processo de desenvolvimento liberalista e pacto conciliatório social e discursivo (sintetizado no lema “paz e amor” dos anos Lula), desemboca no desastre.

A principal operação Marcelo Pedroso é a antropofagia da linguagem do discurso, distorcida até o grotesco. Brasil S/Atransita entre o filme de espetáculo hollywoodiano – exacerbado no grande feito dos heróis – e um documentário integralista. Por vezes, o sentimento é de se estar diante de um institucional no qual a construção do discurso é tão marcada que a realidade “a ser escondida” pelo otimismo se impõe. É como colocar os óculos escuros de Eles Vivem (1988), de John Carpenter,para olhar para um país. Ou melhor: olhar para o que está por trás dele: o refrão visual da bandeira do Brasil sem seu símbolo de “ordem e progresso” não significa que estados, ordem ou progresso não existam mais; o caso é que, agora, pouco importa: tudo foi desfigurado numa platitude uniforme aterrorizante que entrevemos pela íris que a bandeira recortada cria.

Diante disso, as personagens estão abismadas: não há diálogos, palavra nem descrições possíveis. O trabalhador rural encara a colhedeira ultramoderna como a caça diante do algoz. E nessa situação, ame-o ou deixe-o: Brasil S/Aé uma antropofagia sem escapatória, na qual todos elementos parecem deslocados em sua vertente mais bizarra. As personagens se encontram ou impotentes pela visão de seu desastre ou subjulgados pela nova realidade do desenvolvimento. No país de Brasil S/A, a modernidade dita o ritmo do homem, as pessoas ficam entre a confusão de não saber lidar com a realidade e o automatismo, enquanto as máquinas são antropomofizadas – a colhedeira mostra os dentes afiados para o trabalhador rural; o caminhão-cegonha extrapola a metáfora do nome e ganha vida própria. Aí, o filme de Marcelo Pedroso encontra Jacques Tati: no embate do corpo com o espaço e os objetos, na coreografia de tratores, no desfile de automóveis levados por um grande caminhão-cegonha, na artificialidade desenhada da mise en scène que expõe as estruturas.

Isso porque Brasil S/Aé um filme de cinema, pois sua constituição se dá na sobreposição de signos, idéias transformadas em ícones que se embaralham, se dialetizam e se fortalecem. O filmeé uma série de esquetes, abrindo e fechando portas, criando desvios e retornos. O mal-estar é causado pela coreografia ao mesmo tempo überestilizada e chapada; seu humor se intensifica da catarse coletiva. Ao mesmo tempo, a mise en scène aplana a imagem, deixando claras as contradições dessa sobreposição de signos, das construções em colagem das cenas, afirmando uma obra sem profundidade ilusória. Um filme em 2D. Um filme plano e do plano.

Mas Brasil S/Aé também um filme de montagem, tanto no trabalho técnico-artístico de ordenar plano e sequências quanto na essência mesma do termo – colagem de elementos tanto dentro quanto fora do plano. Por mais que as esquetes se bastem com suas curvas próprias, as cenas pedem pelo que está para além delas. O todo se faz do acúmulo das partes ordenadas sobre a tela: Brasil S/Aé uma composição como entendido pelas artes plásticas, mas em sentido aqui trazido para a estrutura da obra cinematográfica: ordenar os elementos pensando na construção do todo. A alegoria da realidade brasileira impõe a fragmentação marcante do filme (não seria a fragmentação distópica a forma ideal de retrato do Brasil?), pois a alegoria se faz ela mesma de elementos díspares que se reconfiguram. Sua forma é a do mural, um desfile de figurações cujo olhar é panorâmico a partir de fragmentos, mas cujo todo só se cristaliza com alguma distância. Os elementos do filme estão esperando a história, e o mural vem dessa convivência entre tudo o que representa na esperança de formar o representado: o Brasil. Marcelo Pedroso se coloca, então, junto a uma tradição moderna brasileira dos grandes painéis e da alegoria tentando lidar com o estado de coisas do país.

Também por isso, Brasil S/A é um filme de cinema, na medida em que seu tom pede a potência do aparato da sala. A geração da qual faz parte Pedroso sempre tendeu para um tom mais ameno, de obra aberta em que as incertezas, impossibilidades e, principalmente, um gesto de deixar coisas não ditas na esperança desse incógnito turvar e revelar ambiguidades da experiência de estar no mundo. Brasil S/A, por sua vez, grita. É alto e bom som. Seu gesto é a tentativa de afirmação, a síntese de idéias em imagens, e impressiona o quanto cada parte se esforça por consolidar toda a idéia da esquete em cada um de seus planos. Assim se impõe o refrão da bandeira recortada sobre o skyline da cidade; a paisagem urbana que aparece refletida no capô do carro – a célula ao redor da qual a sociedade contemporânea brasileira se organiza; as duas crianças vestidas com roupas iguais, ouvindo música em aparatos iguais, agindo como iguais numa assustadora duplicidade higienizada; a mulher de biquini que conduz o baile de tratores; a aristocracia de pele negra que passa pó de arroz e valseia esperando tornar-se algo que não é.

Numa das grandes cenas do filme, Pedroso filma uma igreja transfigurada em foguete indo para o espaço. Dentro dela, um culto evangélico é filmado só com planos próximos do rostos, mostrando a expressão intensa de cada um dos fiéis – que estão no único momento legitimamente verdadeiro da construção do filme, na medida em que seu sentimento é autêntico e não encenado. Troca-se a histeria ruidosa pelo “som do silêncio” catártico da fé do outro, na canção de Simon & Garfunkel. Não é possível definir se a cena respeita, faz troça, hostiliza ou embeleza o momento – às vezes até essas sensações se misturam, criando uma ambiguidade que reflete talvez de forma única o assombro do fenômeno evangélico na intelectualidade brasileira. Cada momento do filme traz essa mesma carga de síntese conteudística – e se não falo em mise en scène de fato é porque, mais que conter o todo, cada parte quer ser uma expressão plena daquela idéia, daquela alegoria. A ambiguidade mora nas imagens do filme na força da afirmação, trazendo seu ícone e seu reverso: Brasil S/A é a propaganda do ex-país do futuro, agora nação do progresso, que ainda se mostra de um provincianismo arcaico. A relação com a modernidade no filme é uma grande chanchada de mau gosto.

Em texto sobre O Rio nos Pertencede Ricardo Pretti, manifestei um questionamento sobre a relação dos filmes brasileiros recentes com a realidade política. O caldeirão esquentou, mas o cinema parecia alheio a isso. Quando o caldo entornou, a sensação era de que os cineastas ainda corriam atrás do pelotão. De lá para cá, uma quantidade importante de curtas e longas recentes tentam se posicionar abertamente diante da realidade política. A realidade clamou pelos cineastas; eles agora respondem com as armas à disposição. Percebo, então, que a grande questão com O Rio nos Pertence hoje não está em seu “descolamento” ou impasse em perceber o rumo político do país, mas na sua insistência em afirmar o mal-estar reproduzindo sintomas, mantendo ainda a ambiguidade narrativa no jogo entre o quadro e o fora de quadro, sem lidar abertamente com o choque dessa fronteira. No filme de Ricardo Pretti, o fora de quadro assusta, oprime e manifesta-se, então, na letargia das personagens que contamina o filme. Mas as estruturas continuam de pé. Poucos filmes se embrenham nas fundações e não nos muros.

Em sua gana afirmativa, o gesto expressivo de Brasil S/A – de planos carregados de um grotesco plastificado, entre o horror e a publicidade – condensa as contradições tentando atingir as estruturas fundadoras. Da paródia do sintoma e sua distorção retificadora – no sentido que, mais que sujar, ela limpa os elementos, expondo seu verdadeiro rosto – os planos chegam às estruturas políticas, culturais, sociais. O desenvolvimento mostra sua face animalesca. É claro que, com isso, corre-se um risco regressivo, que desembocaria numa defesa ufanista do nacional e tudo que dele deriva: do Brasil pré-pré-sal, o eterno “país do futuro”, das contradições históricas, mas ainda com alguma possibilidade de afirmação nacional antes do liberalismo cosmopolita implantado por aqui desde o governo Fernando Henrique Cardoso. A intervenção do ator Emmanuel Cavalcanti durante o debate do filme deixa claro esse impasse: sua fala elogiava o “tiro na tecnologia” do filme (numa das esquetes, uma mulher de biquini coordena o aquecimento dos tratores até dar um tiro para o alto, dando largada ao trabalho das máquinas) e a defesa da cultura nacional. Esse impasse, mais que depor contra, expõe a força de intervenção do filme, pois é inevitável que a pergunta certa diante do painel constituído por Pedroso seja “que fazer?” – pergunta simples em sua formulação, mas vital na clareza. A afirmação leva a questionamentos. A arte-mural do filme, então, cumpre seu papel. Apropriando Paulo Emílio, Brasil S/Areacende o impasse entre o não-ser e o ser outro como a alma do negócio.

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