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Aqueles que marcham com a noite

Filme da entropia como Sistema, da Devastação como doxa, da irreconciliação terrorista, ou devaneio expressionante sobre a insônia assombrada por dêbacles de Reação, Os Sonâmbulos aposta na alegoria como talvez a forma que nos restou, em tempos infectados por enxames de fatos e de faits divers, para pensar arquétipos: esta é uma Grande Forma Épica, destinada à Fixação de Gestos iniciáticos e Movimentos irreversíveis, e se insere como a representação mais evidentemente teológica daquele enunciado épico que, a partir do século XIV, vai dar passagem, segundo Julia Kristeva, a um enunciado romanesco; mas também sempre pareceu aos artistas que a praticaram uma excelente maneira (manieri) de elaborar plástica e pateticamente Oposições primordiais, e portanto de dar lugar no Reino das formas a um exercício dialético, mesmo que a princípio elementarmente maniqueísta, onde o essencial a se reter é que o Mundo é um espaço reverberante de Relações de Forças, embora temporariamente inteiriçadas em imagens com potencial de transfixação fascinante: o Vício fulminando a virtude pode ter sido a principal divisa, ainda idealista mas não menos prenhe de intuições agonísticas, de uma arte cujo destino no cinema serviu tanto aos tableaux vivants rapsódicos de Paradjanov quanto às distopias operáticas de Glauber Rocha, e que pode retornar, neste tempo enlutado por tantas perdas inassimiláveis – na Cultura, na Política, no sujeito de Enunciação da Linguagem, agora vário e virtual – para nos advertir das decisivas filiações que sempre entretiveram a Arte e a (Grande) Política, como a Lei e sua Subversão necessária pela exceção e entre o Testemunho e o Segredo.

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Em um texto sobre A Encruzilhada das Bestas Humanas (1972), de Fassbinder, Jean-Claude Biette escreveu: “A sinceridade violenta de Fassbinder, que não tem medo de filmar o teatro se este teatro lhe fornece a base de sua necessidade para engajar uma crítica da Alemanha do Oeste, se não o preserva nem do esquematismo distanciador de que sofrem em outros filmes que não este seus personagens, nem também da aproximação ao formalismo resultante da velocidade de concepção e de realização, esta sinceridade violenta impede que seus filmes tombem no estetismo”. Similarmente ao papel da sinceridade violenta, que impede os filmes do enfant terrible alemão de recaírem no estetismo, podemos pensar aqui que é o materialismo pregnante dos corpos que resgata o alegorismo de Os Sonâmbulos da auto-complacência retórica que pode dar a esta arte, hoje não mais epocalmente majoritária, a impressão de um museu de tudo gongórico. Texto, dicção – reparem em especial na de Frederico (Francis Vogner), espécie de guru em estratégia – gesto, movimento, tudo se concentra e se distende segundo parâmetros materialistas; a Grande forma épica já está desde sempre infiltrada pelo romanesco destas deambulações e revezes denotativos do corpo que fala, do corpo que se esquiva, do corpo que afronta a câmera com veemência, e finalmente do corpo que se dilacera reciprocamente (fantástico uso da montagem e treinamento de corpo dos atores na sequência de tortura do casal: Richard Kern + Franz Zwartjes), até que ao cinema não reste nada senão o registro de um ritual infinitamente dilatado por sua própria nulidade, no regard cámera ironicamente desconsolado com que o filme se encerra, abertura vacui do campo ainda ativo ao Fantasma irresgatável do fora de campo; se Tiago, neste filme como em Os Residentes (2010), pretende nos oferecer uma parábola alegorista sobre comunidades de outsiders exilados no coração da Cidade – aqui mais horizontalmente plástico, coalescente aos distúrbios do país pós-impeachment, como claramente se demonstra na coleção de “fotomontagens George Groz”, recortadas dos jornais pelo personagem de Rômulo Braga-, ele é antes de tudo um cineasta, e enquanto tal mede, calcula, ausculta e compassa tudo segundo o metro do corpo; reparem no découpage, na montagem descritiva-plano sequência ou epifânico-stacatti: o que se favorece afinal é a emergência fulgurante destes torsos e closes e movimentos furtivos que, apesar da noite e na marcha da noite, constituem-se na matéria primordial e condutora do discurso do filme; na contracorrente da voz off, que nos fala em surdina desolada da inação ubíqua, da falta de disposição e de paixão para agir, os corpos estão com frequência mobilizando o plano tenebrista da esplêndida foto com suas passagens ao ato, que permanecem antes de tudo passagens (ou transições), é certo, para um horizonte cuja vista se perdeu de vista; sim, falei de ato. Mas de que ato se trata, se aqui a revolução parece de antemão uma batalha perdida e os arautos como asseclas da Reação dominaram totalmente a Cidade, restando aos exauridos lutadores a miríade de gestos convulsos, mas absolutamente sem destino que se perdem na Noite do plano? É como se empunhassem ainda a bandeira arrebatada do punho, como se soerguessem ainda a mão amputada que o feeling fantasma nos restitui como presente… Recuemos um pouco.

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Lembram-se de quando, no início do filme, Ruiz (Rômulo Braga) fala para L. (Clara Choveaux) dos papéis desempenhados por cada um na relação? É mais ou menos assim: “Numa relação, há sempre o papel do historiador, que é o papel do mais fraco; eu fui o historiador da nossa”. Raccordem agora mentalmente com o papel do testemunho, mencionado lá pelo meio do filme; o testemunho é sempre aquele que foi devastado pela experiência sofrida e não viveu para ser o sujeito desta enunciação impossível: ele é sempre ‘para um Outro’, mediação que se incumbe de encarnar este fantasma num significante. Um testemunho é o equivalente a um ‘historiador’ histórico, epocal, comunitário: como o ‘historiador’ da relação de um casal, ele é aquela força que nasce da fraqueza absolutamente decisiva da Palavra – a Força da fraqueza paulina – e raramente sobrevive senão através da abstração do significante, mortuária haste sobre a qual a presença desaparecida se apoia (sim, pois se o Eu permanece aí, é como sonâmbulo, zumbi ou no in memoriam de uma obra de arte – lugar superestrutural do ego desaparecido –, figurações nosferáticas de uma experiência do que Artaud chamava de palavra soprada, pois é sempre a letra morta de um Outro que se anima na voz que recita o testamento-testemunho).

Em obras como Da Ditadura e Teologia Política, Carl Schmidt, o maior teórico da Reação no século XX, desenvolve a tese da relevância do estado de exceção para a Filosofia do Direito (ele foi o autor da Constituição do terceiro Reich); em que sentido? No estado de exceção, suspendem-se os contextos políticos de execução da norma, e portanto podemos retomar a ‘pureza’ originária (e esta palavra será sempre ‘suspeita’ politicamente) da criação da norma e da Lei: passamos a entender o sentido, a causalidade, a situação de criação da norma, e isto unicamente a partir do estado de exceção, que a princípio se lhe contrapõe organicamente; analogamente, a força fraca do testemunho suscita uma palavra que só pode advir à superfície do texto como testamento, quando do eclipse do sujeito; assim como o Estado de Direito é revelado em sua essência a partir do estado de exceção, que anula seus contextos de práxis política para mais eficientemente sublinhar a sua razão de ser, o ‘historiador’, o testemunho, etc, são-nos revelados na impermeabilidade de sua experiência à vida (à Força), através de sua obra mortificante. Agora, lembrem-se também de uma frase do Godard contemporâneo do lewisiano pedagogismo de Tout va Bien, talvez; ele disse numa entrevista de jornal que “Se eu tivesse a força, eu me calaria”; percebem? O lugar do outsider (exercitando-se em sua forme-ballade extraviada pela Noite, e aqui já estamos novamente no coração do cinema moderno), do testemunho e do historiador é o mesmo, e devemos estender a analogia deste ressoante círculo virtuoso se pensarmos no artista, no escritor, no pensador, em todos aqueles que trabalham com o Espírito: Se eu tivesse a força, eu nada diria. Os Sonâmbulos é um filme insuflado por esta ‘força fraca’, deste corpo comandado e condenado pela palavra off, destes movimentos para a frente (para o front) que só irão adquirir plenitude através da circularidade conotativa da linguagem, desta Obra em negro de um morto que legou seu testemunho para um grupo que talvez não perceba a dimensão daquilo que recebeu como Legado, mas segue… talvez ‘seguir apesar de tudo’, apesar da Noite, tenha sido a senha que restou para inspirar os resistentes? Um niilismo da Vontade, diria Nietzsche, um Nihil ativo. Pensem no zoom aproximado e distanciado que autopsia a sequência de fotos na abertura do filme; o devir histórico manietado por um instrumento (retórico) de palavra, da palavra cinematográfica, transfixado pela conotação do cinema; pensem agora no ritual com que o filme se encerra, e que nos abandona pela metade, que nos abandona justamente na clareira do fora de campo – topos do ‘espaçamento da leitura’ (Daney) –, uma vez que L. agora se dirige expressamente para nós? Em Mônica e o Desejo (1953), a crítica localiza no olhar de Harriet Anderson para a câmera o lugar excelso para o nascimento do cinema moderno, ou mesmo pós-moderno, pois na leitura deles o que se indicava com aquele olhar eroticamente cúmplice na diegese do filme era o lugar interdito do fora de campo; o olhar de Harriet Andersson no filme de Bergman não me parece tão radical, pois poderia estar se dirigindo para um casual desconhecido a quem encontrava no night club… A questão é que não temos o contracampo para nos localizar, pois o plano se encerra, se bem me recordo, com um sfumato de fondu au noir… De qualquer modo, o irônico olhar de L. para nós se encaixaria melhor naqueles inquisitivos, mas também pedagógico-terroristas, olhares de Anna Karina em Made in USA (1966), ou A Chinesa (1967), o que esperam ainda? O que esperam de mais?

É no corpo adoecido no filme que devemos buscar os meios – os materiais de confecção evidente e invisíveis, no campo e no fora de campo, constantemente entreaberto pelo confronto entre a imagem e a palavra – e os fins de nossa busca, agora definitivamente retórica e conotativa, pois não há mais outro lugar. Um filme é precisamente o lugar privilegiado para acolher a força fraca, a única força que nos resta – ou talvez tenha sido sempre nossa?, mas dada a impossibilidade de instrumentalização atual da Revolução, esta lucidez se tornou um shot fatalmente necessário, uma vidência que deve permear todas as obras confeccionadas a partir de agora. É certamente parte do formalismo de Os Sonâmbulos este partis pris pela força fraca da retórica, da conotação, do fora de campo, mas o filme possui em geral um material, digamos, muscular, que se sobrepõe ou contrapõe ao que é dito (do alegorismo como uma proto-dialética, que aqui se complica com o jogo entre campo e fora de campo, um to play entre brincante e opressivo), e é neste interstício claudicante que os arroubos da metáfora são devidamente domados, ‘amestrados’ pelas potências erógenas e violadoras de aparição do cinema.

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Na sequência da recíproca tortura do casal, evidenciam-se com uma clareza elementar de choque frontal (Lourcelles: o contracampo tinha no cinema primitivo o papel de um choque frontal entre imagens) as decisivas ideias do filme; é uma sequência concebida completamente pelo cinema, e não apenas pela relevância fulcral da montagem e do découpage ‘mosaico de objetos parciais’ ; o cinema substitui-se tardiamente, como ontem nas palavras de Da Vinci sobre a pintura, àquela arte cosa mentale que conseguiu a façanha de projetar numa tela o verso e o reverso da experiência, que é nossa mas em geral incomunicável, de que o cérebro também é um corpo, e de que o corpo pensa: somos uma cosa mas que é também mentale, como o psicossomático também gera distúrbios físicos; encenam-se ali, num sostenuto de síntese admirável, todos os fantasmas de autodestruição do casal (mas do casal revolucionário, pois o casal é uma proto ou microcomunidade, já que devemos ver tudo segundo uma ‘dobra’ dialética: o corpo torturado de ambos no kammerspiel escópico do sadomasoquismo pode ser também o de um desaparecido político, cujos restos mortais – atomização efetivada pela montagem do corpo dos atores – não foram reunidos, e portanto não reconstituíram a unidade da pessoa, tributária sempre da identidade da figura: uma literal e sintagmática desfiguração é o que se busca aqui); um tanto antes, se bem me lembro, é L. que fala que a força revolucionária e a da Reação possuem como inspiração motriz a destruição; já não acreditamos nos dualismos do idealismo clássico, apesar do politicamente correto de tanta gente tacanha ainda comprar essa mercadoria semi-decomposta; mas é consequente do materialismo – falemos também em teatro da crueldade, apesar de que em Artaud inexiste a preeminência do texto, embora ele tenha precisado escrever textos profundamente esquizo-poéticos para se convencer disto – do filme, de sua intransigência em filmar o corpo como o lugar do fantasma da mercadoria, da Revolução e da cicatriz do fora de campo, que ele não recue sequer diante de uma constatação que, apesar de Freud e de Melanie Klein, ainda deixa muitas pessoas, perdidas em sua época e Desejo, um tanto constrangidas: a ideia de que, por exemplo, nosso mundo é composto por Forças, e portanto recitado apenas segundo ‘destinos’ hermenêuticos distintos, mas a Força é a Mesma: e se o Mal estivesse no coração da arte? E se o artista e o psicopata e o revolucionário afinal apenas apresentam-nos a face-metade de um Janus bifronte, como a Reação e a Revolução, a Força e o Espírito? Estas e outras questões tortuosas para a consciência simplesmente e a consciência social que ontem assombraram A Morte e o Diabo (Stephen Dwoskin) e Notre Nazi (Robert Kramer, Veit Harlan Jr) permanecem carentes de luto, e portanto muito presentes em Os Sonâmbulos, definitivamente um filme a ser interdito aos menores de todas as idades.

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