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Da imaginação como potência à produção como resistência

A abertura da 23ª mostra de Tiradentes, cujo tema é “Imaginação como Potência”, se dá em um contexto, para dizer o mínimo, curioso. O festival acontece pouco mais de um ano após a posse do novo presidente da República que, se desde o princípio já se apresentava como uma ameaça ao setor artístico, concretizou o desmantelar de estruturas culturais ao longo de sua ainda breve gestão.

O tema é, de alguma maneira, um eufemismo para a elaboração de estratégias de resistência enquanto realizadores do cinema nacional. E é nessa substituição que habita a atmosfera do início do festival: ao contrário de uma resposta virulenta que as circunstâncias deveriam suscitar, reduz-se o volume das objeções em busca de uma produção menos violenta e ácida e mais onírica e representativa. É inegável que existe uma vontade latente de se abrigar na cultura e de resistir ao desabar social da maneira mais assertiva possível. E é também igualmente notória a névoa que nos encobre na busca por qual – ou quais – seriam as melhores e mais eficazes formas de resistência.

A abertura, no Cine-Tenda, contou com as falas de Antônio e Camila Pitanga, os homenageados da mostra, além de apresentações musicais e a exibição do filme em pré-estreia Escravos de Jó (2020), de Rosemberg Cariry, no qual Antônio Pitanga é um dos coadjuvantes. Tangencial ao tema da mostra, muito se discutiu sobre como reagir enquanto artistas no contexto nebuloso no qual o país se encontra. Em maior ou menor grau, esses pronunciamentos iniciais soam como uma esperança otimista, porém abafada pelo enfado entre todos presentes.

Os homenageados falaram um pouco sobre suas trajetórias – e, principalmente, sobre como, apesar de suas distinções, elas se aproximariam no que concerne à atualização de um datado imaginário do cinema brasileiro, tão masculino e tão branco. A escolha pela homenagem dupla dos atores Antônio Pitanga e Camila Pitanga revela uma preocupação urgente com a representatividade nas telas do cinema nacional e, ao mesmo tempo, com a ancestralidade. O resgate de uma personalidade como Antônio Pitanga, que habita desde o corpo cinemanovista até as produções contemporâneas, sugere uma revisão histórica inescapável. Como homem negro e ator do Cinema Novo, a homenagem reencontra uma figura emblemática, muitas vezes ofuscada por uma produção majoritariamente branca do período.

Ao apresentar duas gerações de atores, a mostra também exalta a permanência e a hereditariedade como cerne do movimento de resistência, materializado na imagem de uma família negra em um palco tantas vezes ocupado por pessoas brancas. Por outro lado, o filme Escravos de Jó representa talvez a vertente mais fraca dessa busca por uma produção questionadora do stablishment. Absolutamente didático, o filme de Cariry é um amálgama de questões sociais que se atropelam em busca de uma suposta equivalência entre elas. A narrativa de um jovem judeu em busca de suas raízes é entrecortada por um romance com uma palestina, pela sua relação com um ancião pró Israel e pelo encontro edipiano com sua mãe perdida. Tensionando abarcar todas as vozes possíveis – e impossíveis – de serem introduzidas juntas no repertório da reparação histórica, Escravos de Jó perde-se em uma megalomania ingênua que geralmente atravessa esse tipo de abordagem.

Em um clima de quase alegria que o festival se encontra, é importante ultrapassar a positividade passiva a fim de encontrar um espaço efetivamente visceral e antifascista da produção audiovisual, desengasgando tudo aquilo que estamos há algum tempo querendo falar.


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