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Ao redor de Vitalina Varela

Já faz algum tempo que tenho buscado pensar outras formas e métodos de escrita crítica que quebrem um certo modelo muito individualista – dado que este é um mal do nosso tempo. De certa forma, experimentar escrever junto é registrar também outras coisas, principalmente o que não nos é “próprio”. Poder reagir ir na onda do outro, se relacionar com o que não havíamos pensado é oferecer ao leitor um outro tipo de material, que me parece fértil como experiência de encontros com obras. Não só nosso ambiente social e discursivo é assolado pelo paradigma do “próprio”, no sentido da propriedade privada, mas aqui, o objeto, o filme Vitalina Varela – o mais recente realizado pelo encontro do português Pedro Costa com imigrantes caboverdianos com quem ele trabalha desde o século passado – é também inspirador de processos que atravessam, que podemos chamar impróprios de certa maneira, que funcionam por certa desobediência a princípios mais convencionais. Para esta tarefa, convidei meu colega de redação Victor Guimarães, com que guardo inúmeras afinidades além do dia e mês de nascimento, e com quem partilhei, antes desse, um enorme entusiasmo por este filme, e seu efeito sobre a obra pregressa de Pedro Costa. Por final, este texto celebra seu lançamento comercial, que ocorrerá no próximo ano, pela primeira vez em se tratando da obra de Costa, que começa a se construir ainda nos anos 1980. Portanto, oferecemos aqui esta conversa que se fez da seguinte maneira: por dois períodos de mais ou menos duas horas, a partir de um documento compartilhado, fomos dividindo nossas ideias sobre o filme, e reagindo aos elementos que o outro trazia. O registro desta troca dividimos a partir de agora com vocês. (Juliano Gomes)

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Juliano Gomes: Começaria por algo que realmente me arrebata e te pergunto como é isso para você, se sente parecido. Nas vezes em que pude ver o filme, se combinaram em mim sentimentos de uma certa sideração, pela densidade daquela viagem que o filme propõe, e, por outro lado, me pareceu um filme desconcertantemente simples. Isso eu nunca tinha sentido de Casa de Lava (1994) até aqui. Simples no sentido do que é sua matéria principal e do sentido da travessia que se propõe. Uma mulher, Vitalina Varela, caboverdiana, precisa fazer o trabalho do luto. O filme acompanha esta tarefa. Enfim, ele me pareceu misterioso de um jeito distinto dos outros. Cavalo Dinheiro (2014), que o Pedro Costa chama de filme irmão deste, e sobre o qual fizemos uma pauta na Cinética, era um filme muito menos tangível pra mim. Vitalina Varela, além de aprofundar meu entendimento sobre toda a obra anterior, parece ter um certo aterramento distinto. Não sei se sei por isso em palavras… Como é pra você?

Victor Guimarães: Eu tive uma impressão semelhante. Do ponto de vista do núcleo da intriga e da organização do tempo narrativo, é um filme muito mais evidente do que os outros. Claro, não é um filme exatamente linear, há uma série de fissuras: Ventura caminhando pelo bairro e profetizando toda a trama paralela da mãe em busca do filho, por exemplo, que só vai se resolver depois; Vitalina se comunicando com Joaquim, morto; o fato do filme terminar num flashback de trinta anos atrás… Ao mesmo tempo, eu sinto que há uma calma, uma generosidade em apresentar os elementos ao espectador. Muitas vezes, temos um bom tempo pra fruir um plano, um tempo quase próximo do tempo da pintura – ou, talvez, do tempo do ritual. O fato do filme inteiro ser um processo de luto lhe confere um aspecto ritualístico muito forte. Eu percebo essa ritualidade nas composições, na montagem, na minúcia das ações, no modo como a luz é recortada, na construção paciente das frases, no quase sussurro de Vitalina. É um filme sussurrado, um pouco como uma ladainha num funeral. Isso sempre esteve presente no trabalho do Costa, mas aqui me parece ainda mais intenso.

JG: Sim. O cinema que eles fazem (digo “eles” porque sinto que este cinema se forma de maneira bastante mais coletiva do que se costuma dizer) tem uma relação de entendimento e de desdobramento de modos de expressão como a ladainha, o canto de trabalho e outros. Relação no sentido de que a forma do filme se inspira neste tipo de registro expressivo. Como versos de canção mesmo. È muito mais canção popular do que “documentário”, no sentido da referência cultural, de parâmetro de estrutura, valor das partes. O tipo de nexo tem bem mais a ver com isso, sinto. Portanto, a ladainha, o sussurro da reza, são mesmo inspirações no sentido de criar um tom e uma maneira de expressar. Lembro da minha vó rezando, quando eu era criança, e me pergunto: concretamente, ali no espaço em que se está, se reza para quem? Rezar é documentário? Estamos lidando aqui com uma obra que constrói uma gramática enunciativa muito particular em todos seus aspectos. E ela é monumental sim, mas nunca intransitiva. È altamente conectiva. O sussurro, esse tom de fala com o qual Vitalina se comunica meio com a gente, meio com nada, meio com os mortos, meio com os vivos, isso de certa forma é um modo de entonar que podemos encontrar no mundo fora do filme. Entretanto, isso é alçado a um ambiente plástico e sensorial de radical atenção e certa devoção, onde a face, digamos sagrada, desse ato comum, se revela, sem que o gesto se descole da sua face mundana. Aqui isso ganha muito relevo. Ela conversa com o marido morto. Não é nem com a gente, nem com ninguém materialmente presente no espaço da cena, é com o morto. E como se conversa com um morto? Conversar com uns mortos é uma ação que tem uma história, tem técnicas, tem tons. E não estamos em qualquer lugar, e isso é muito importante. É a Cova da Moura, estes são imigrantes caboverdianos, uma migração de certa forma recente, e falando de língua, aqui se fala o criolo caboverdiano. Vi o filme em Lisboa, com legendas. Não o mundo dos vivos nem dos mortos totalmente, não é totalmente português, tampouco caboverdiano, enfim. Há uma invenção radical de um espaço em diferentes camadas neste trabalho, que se desdobra há mais ou menos 25 anos, e que agora ganha este capítulo tão intenso que é o Vitalina Varela. Esse gesto diz respeito ao tempo também: é um flashback mas é também o “final feliz do filme”, é uma espécie de libertação, é muito forte quando entra aquela última imagem. Entendemos que estávamos esperando aquela imagem há muito tempo. Sentimos um certo alívio do tipo “enfim!”, mas aquilo é do passado. É um gesto de carinho que termina o filme não é? Agora não me lembro se é um beijo ou um abraço entre eles. Você lembra?

VG: É uma carícia. Também não me lembro exatamente, mas é um gesto afetuoso entre o casal que constrói a casa (e que é interpretado pelos filhos da Vitalina, né? Mas talvez essa informação extrafílmica seja irrelevante). Você disse uma coisa que me parece muito importante: por mais que o filme tenha essa solenidade, essa sacralidade própria do ritual ou da oração, ele nunca abandona o mundano. Penso, por exemplo, no modo como se ilumina as latas de comida que o vizinho traz pra ela do supermercado Minipreço. Aquilo é, também, um altar. É uma oferenda. Mas nunca deixa de ser, no espaço do filme, algo tão concreto quanto comida. É um filme sobre luto e sobre traição, mas é também um filme sobre dinheiro. O título do filme anterior me parece um achado fascinante: o cavalo se chama Dinheiro. Sempre há esse gesto de arrancar as coisas cotidianas da banalidade, mas, ao mesmo tempo, o lastro da cotidianidade nunca se perde. Me lembro, por exemplo, dos planos em que Vitalina troca o turbante. Aquilo tem uma ressonância iconográfica fortíssima – eu me lembrei imediatamente do quadro do Vermeer, Moça com Brinco de Pérola, pela escuridão chapada do fundo, pelo turbante, pelo brilho muito forte de um elemento específico da composição -, mas ao mesmo tempo é algo inteiramente assentado naquele cotidiano, que só poderia surgir daquele espaço, daquela personagem. Sobre o impacto do último plano: eu tive o imenso privilégio de ver o filme pela primeira vez na lendária sala do Filmmuseum de Viena. Uma das salas desenhadas pelo Peter Kubelka e batizada de “invisible cinema”, porque o design faz com que ela seja quase inteiramente negra (do teto às paredes), com o intuito de fazer com que tudo ao redor da tela tenda à invisibilidade (é claro que a obrigatoriedade das luzes de emergência não permitem mais que ela funcione plenamente, mas mesmo assim há uma diferença notável na experiência). Aquele último plano, aquele clarão depois de tanta escuridão pra mim foi tão forte, que é como se todo o estilo plástico que o Costa e o Simões construíram junto do Ventura, da Vitalina e de tantos outros, ao longo de tanto tempo, se justificasse ali, num átimo, naquele plano solar, aberto, arejado. Esse estilo é difícil de definir, mas é plenamente reconhecível: a opressão da arquitetura, a escuridão nas bordas do quadro, a monumentalidade que as figuras humanas adquirem no espaço exíguo das casas ou das vielas… Quando o filme vai pra Cabo Verde, tudo isso rui. O olho vagueia, o plano é abertíssimo, as montanhas estão ao fundo, as paredes não oprimem mais. E percebemos, então, quão intenso era o achado desse estilo: só é possível filmar a vida dos imigrantes em Lisboa dessa maneira. É um estilo que nasce inteiramente de uma experiência histórica de exílio e opressão. Quando essa experiência histórica não existe (os caboverdianos em sua terra natal, com o futuro pela frente, a construir a casa com as próprias mãos), o estilo também não precisa mais existir. Ao mesmo tempo, estamos no passado. Então é como se tudo o que vimos, ao menos desde o Ossos (1997), estivesse desde sempre marcado – plasticamente marcado, a ferro e fogo, a cada plano – pelo acontecimento decisivo da imigração. A face escura beijada por Judas, a escuridão do poema do Antero de Quental misturado às palavras do Ventura (como antes, na famosa “carta do Ventura”, havia o poema do Robert Desnos). Ventura e Vitalina são filhos dessa escuridão (que, no caso da Vitalina, é também a traição do marido, é também a chaga do patriarcado). E em Cabo Verde o beijo do Judas ainda não aconteceu, e é por isso que esse plano é tão decisivo pra iluminar – ou escurecer – não só esse filme, mas também os anteriores.

JG: É meio que o contraplano dos filmes anteriores, né? Esse geral da casa em Cabo Verde.

VG: É como eu sinto também. Em certa medida, é como se todos os filmes anteriores caminhassem pra esse plano. Que, por sua vez, ressignifica tudo o que veio antes (ou, no tempo diegético, tudo o que veio depois).

JG: Apesar do que se a gente pegar com atenção, a cada filme a gramática vai mudando. Tem obviamente uma unidade na aproximação, mas a forma se mexe bastante, cada um tem sua maneira. Desde o Casa de Lava, inclusive contando os filmes que não trabalham com os caboverdianos, se gente pegar filme a filme, muda bastante. Tô muito a fim de rever tudo, o Vitalina Varela me plantou muito essa vontade de voltar à obra anterior. A maneira de materializar o filme mudou e é curioso que aqui meio que deu uma volta. Encontrou Ossos de uma forma que nunca suspeitaria. Os tanques de guerra no Cavalo Dinheiro, os jogos de luz e saturação ali, já foram uma aparição muito marcante de um certo… Não sei se essa é a melhor palavra pra isso, de um certo maneirismo deste cinema. Sinto que essa não é a palavra certa. Mas como a recepção mais geral deste cinema, pelo menos até Cavalo Dinheiro, busca muito suas ferramentas no campo do documentário, quando vem este filme anterior ao Vitalina, foi uma emoção muito intensa, não só pelo que é o filme é, mas se revelava um certo coração destes filmes que as ferramentas ligadas a ideia de documentário estão longe de dar conta. Foi muito entusiasmante ver ali a evidência de que uma certa linha no modo de ver este trabalho estourava ali. Lembro de pensar: ou o pessoal que escreve sobre os filmes vai se mexer ou vai abandonar, porque, depois dessa, aquela roupa que sabíamos que nunca serviu bem, estourou. É um pouco como o Eduardo Coutinho também. Falo de recepção aqui. Quando vem o Moscou (2009), Um Dia na Vida (2010), a linha estoura. No caso do Coutinho, sinto que se produziu certo abandono ou desdém crítico em geral. No caso do Costa, não sei dizer. Mas vendo o Vitalina Varela, há traços de um “cinema grande”. Que se combina perfeitamente com a experiência de câmara, que é a que prevalece. Mas o universo do filme, da cena, pode se tornar grande, podemos ter um avião, plano de chroma key, enfim. Falar de recepção é sempre um redemoinho dificílimo de estabelecer um chão, onde quase sempre somos tragados. Mas, como quase todo grande cinema que inventa uma língua, que muda um campo, como é o caso dos filmes do Pedro Costa, há um problema de recepção. É natural, porque esses filmes inventam a recepção. Nós como críticos culturais, temos que perceber neles as ferramentas. Mas o que quero dizer é que a grandeza do Vitalina Varela é potencialmente atrapalhar uma leitura formalista eurocêntrica que só consegue ver nele chiaroscuro, pintura européia… Lembrei por causa do Vermeer. Que eu também pensei na hora, é direto, está ali. Mas o Vitalina… é um filme sobre o sentimento de uma mulher, de uma mulher negra, né? Tô ansioso para que o filme passe aqui no Brasil, no circuito. Por mais que obviamente a história da Vitalina seja exemplar sobre a migração caboverdiana em Portugal, no sentido de suas particularidades, aquilo é também maior, mais amplo. É um acontecimento com mais de uma idade, mais de uma medida. Adoraria que mulheres negras brasileiras de meia-idade ou mais velhas, pudessem ver o filme aqui, de coração aberto. Porque acho que há uma comunicação ali que fica por fazer, em termos concretos, na circulação do filme. E isso é um assunto hiper complexo, que pode potencialmente ser um vórtice aqui da nossa conversa. Mas sinto que o cinema do Costa é a potencialmente o adubo de um cinema negro que tome radicalmente certos materiais culturais de matriz africana como mote de trabalho. Sinto que estes filmes desejam isso. O mundo europeu, moderno iluminista, os modos de se relacionar de advieram dali impuseram algo que a filósofa Denise Ferreira da Silva chama de “separabilidade”. Tem a ver com uma certa maneira de dar inteligibilidade pela separação, que separa os humanos das coisas e tal. Sinto que um filme como Vitalina… fala de algo muito amplo, que potencialmente poderia produzir laços de empatia e comunicação que o trajeto de certa forma elitista a que este cinema em geral é confinado, essa circulação “separada”, sempre impediu. O luto de uma mulher negra que perde seu marido, que é alijada de seus filhos pelas forças do mundo, é uma das instituições mais amplas do ocidente, um fato histórico em looping há séculos. O que quero dizer: acho que tem algo interessante que é possível perceber numa perspectiva brasileira. É claro que o cinema clássico está ali, e tudo mais sobre o que já se escreveu, e uma certa tradição do retrato também. Sinto que nesse meu pequeno delírio aqui tem uma oportunidade em potencial de dissolver uma conversa muito ruidosa sobre a estranha ideia de “estetização” por exemplo. Nunca soube bem o que seria isso. Mas nesse caso, sempre é bom ir pra coisa concretas: Basquiat é estetizante? Fela Kuti? Nunca sei bem que assunto é esse. Porque sinto que a métrica oculta de quando se fala disso é uma métrica afinal de uma certa transparência eurocêntrica. Talvez eu tenha ido longe demais aqui, mas posso resumir isso tudo na ideia de que ainda há muito o que falar sobre este cinema, sobre este filme. E isso aqui tem imensamente a ver com a psicologia dessa personagem, com a dinâmica sociológica e histórica destes territórios em questão nos filmes. Enfim, pra terminar meu devaneio, há, inclusive dentro do filme, um embate sobre gênero. Vitalina acusa o Ventura/Padre de uma conspiração de homens. Sinto que para uma certa linha crítica que tem nos filmes do Pedro Costa seu bastião, isto seria impensável. Há um corte de gênero no que o filme explora, e isso é decisivo. Estamos falando de uma mulher, negra, e a experiência diaspórica vista daí é bastante diferente. Acho isto um fato riquíssimo que este filme traz.

VG: O corte de gênero me parece absolutamente fundamental. Talvez seja a primeira vez nesse cinema em que alguém desdiz algo que o Ventura propõe. O Ventura sempre foi esse repositório de razão e moralidade, essa figura que sempre diz a verdade, essa consciência inabalável dos filmes. A Vitalina é uma força disruptiva não apenas em relação a Portugal, mas em relação ao patriarcado – inclusive o caboverdiano. Eu acho decisiva a sequência em que os amigos do Joaquim vêm à casa dela e ela os expulsa. É a primeira vez que ela levanta a voz no filme. É uma palavra fortíssima, dita em tom grave e rascante: “Sai.” O Ventura/Padre em algum momento diz algo como: “Nós nos encontramos nesse luto. Você perdeu o seu marido e eu perdi a minha fé nessa escuridão”. O filme inteiro está ali para afirmar essa solidariedade entre os oprimidos, mas também para desfazer essa equivalência. Não há equivalência possível. Vitalina repõe essa diferença, constantemente, mais de uma vez. Todo o arco do filme é a Vitalina sendo abandonada – e se sentindo constantemente ameaçada – pelos homens do bairro, não é? Eles prometem ajudá-la, mas ela tem de consertar o telhado sozinha. Ela se confina em casa. Não é por acaso que ela é recebida pelas mulheres no aeroporto. Ou que, no momento em que o casal de vizinhos vêm visitá-la, ela se concentra inteiramente na mulher, que está doente. Sobre a estetização, acho que tem uma conversa que precisa urgentemente ser feita. Desde No Quarto da Vanda (2000), o Pedro Costa já era acusado de “pintar vitrais” em meio à miséria. Ao mesmo tempo, aqui no Brasil, eu aprendi a ver Pedro Costa sendo constantemente lembrado de que haveria um tal corte radical entre o Ossos e o No Quarto da Vanda, como se houvesse uma guinada decisiva em direção ao documentário e um abandono da artificialidade, de certa imposição da mise-en-scène, do roteiro, e tal. Eu acho que isso nunca aconteceu. Ao menos não do modo como muita gente diz e que alguns depoimentos do próprio Costa sugerem. Eu tive a chance de rever todos os filmes depois de ter visto Cavalo Dinheiro, no ano passado, na retrospectiva do Costa em Curitiba, e a sensação que ficou pra mim foi a seguinte: o cinema do Costa, já desde o Casa de Lava, é uma constante e intensa articulação entre essa herança europeia, essa herança do “grande cinema” ou da “grande arte” europeia, e essas outras artes, que não são europeias, e que são tanto artes da palavra, artes da narrativa, artes do corpo, artes da vida, e que vêm do contato desse cineasta com esses outros artistas e esses outros territórios. Um exemplo que me parece evidente: os monólogos do Ventura/Padre nas derivas pelas vielas de Vitalina Varela, aqueles versos-devaneios-profecias, repetidos, como uma ladainha. O Pedro Costa não descobriu isso sozinho. Essa herança não vem da tradição cinematográfica ou da tradição pictórica européia. Ao mesmo tempo, ele não está registrando nada. Ele está criando outra coisa, nessa articulação constante. Eu acho importante a gente retomar a distinção que a Susan Sontag faz entre estilização e estilo. A estilização é uma imposição do gesto sobre os materiais. O estilo é outra coisa: é a invenção de uma singularidade no contato com os materiais. Os filmes do Costa têm um estilo, muito reconhecível. Assim como, aliás, um filme como Killer of Sheep (1978) também tem. Charles Burnett é estetizante? Eu também não sei o que essa palavra quer dizer. Mas ele tampouco está registrando algo. Ele está inventando um estilo a partir de uma experiência intensa de atenção, de trabalho, de criação com um território. Aqui em Belo Horizonte, o filme foi exibido no contexto da retrospectiva da Margarida Cordeiro e do António Reis. E pra mim foi muito marcante perceber como esse método de composição do Costa e de seus colaboradores, essa articulação entre a tradição artística e a experiência cotidiana dos territórios – que também é artística – tem na trilogia de Trás-os-Montes um grande modelo. Trás-os-Montes (1978) e Ana (1982) são documentários? Acho quase impossível afirmar isso. Ao mesmo tempo, são ficções no sentido tradicional? Também acho difícil dizer. Há uma mistura constante, por exemplo, entre o que vem da tradição da pintura europeia e o que vem da experiência vivida dos habitantes daquele território. No caso dos filmes do Costa, isso se torna ainda mais extraordinário, porque as histórias, os personagens, os materiais artísticos, vêm não do norte de Portugal, mas de África. Ou melhor: de uma experiência diaspórica, de um desterro muito particular, que vai dar em formas artísticas – e formas de vida – fortemente sincréticas (o crioulo é, talvez, o exemplo maior). E os filmes serão, sempre, sobre as potências e as impossibilidades da tradução. Sobre as irrigações entre uma coisa e outra, mas também sobre as arestas desse encontro.

JG: Você falou coisas aí que me tocam muito. É uma mulher rodeada de homens, e isso compõe a hostilidade do ambiente. Tá numa casa, mal construída segundo ela, que cai reboco na cabeça dela, que é construída por um homem. Uma das linhas de entendimento do enredo é uma mulher presa num mundo de homens, é uma imagem bem direta disso, ela está condenada a isso. Não quero dizer com isso que um “mundo de mulheres” seria um idílio, mas o filme é insistente nesta caracterização, nesta linha de diferença. Isso é muito interessante. Talvez obrigue a revermos o No Quarto de Vanda de outro jeito. Será? Fiquei com vontade. Acho que você trouxe uma chave ótima, com essa da Sontag, pra dar algum chão para a discussão que é muitas vezes feita num empirismo meio estagnante: estilização e estilo. Perfeito. Em Vitalina Varela eu não sei onde começa a matéria e onde começa o tratamento que se dá a ela. Porque, como você falou, atravessa a língua, a arquitetura, as linhas conceituais do trabalho se tornam muito densas porque elas englobam as muitas dimensões do filme. O cinema dessa turma capitaneada pelo Pedro Costa é sim, como tu disse, uma encruzilhada. A própria geometria espacial muitas vezes te essa forma, em “X”, né? A gente vê os vértices da parede no texto, e o quadro tem duas saídas em diagonal. As linhas de circulação são bastante esse cruzamento de diagonais.

VG: Essa indistinção entre a matéria e o tratamento que você menciona é justamente o ponto da distinção entre estilização e estilo feita pela Sontag, no ensaio “Sobre o estilo” (On style). Peguei aqui o livro e queria citar brevemente. Quando ela fala de estilização, numa tradução rápida, ela diz o seguinte: “‘Estilização’ é aquilo que está presente numa obra de arte precisamente quando um artista faz a distinção perfeitamente prescindível entre matéria e maneira, tema e forma. Quando isso ocorre, quando estilo e tema são distintos, ou seja, contrapostos um ao outro, pode-se falar legitimamente de temas a serem tratados (ou maltratados) numa certa estilização”. Bem mais adiante, ao definir o estilo (ela o define várias vezes, mas essa definição me parece particularmente preciosa pra nossa conversa), ela diz: “O que é inevitável numa obra de arte é o estilo. Na medida em que uma obra parece certa, justa, inimaginável de outra forma (sem perda ou dano), reagimos a uma qualidade do seu estilo. As obras de arte mais atraentes são aquelas que nos dão a ilusão de que a(o) artista não tinha outra alternativa, tão inteiramente ela(e) está concentrada(o) em seu estilo. (…) As grandes obras de arte parecem secretadas, não construídas”. É a impressão que eu tenho quando estou diante de filmes como Vitalina Varela ou Killer of Sheep. Não a de um gesto imposto sobre uma matéria, mas a de um mundo tão singularmente forjado por um olhar, que ele se confunde com o próprio mundo. Um olhar que eu gostaria de tirar aqui do domínio absoluto do artista individual e demiurgo, e pensá-lo como um olhar que se manifesta na obra. Um olhar construído intersubjetivamente, mas singular. Por outro lado, a ideia de “estetização” parece supor como seu contrário alguma espécie de crueza ou de ausência de formalização, como se fosse possível existir algo como uma obra de arte sem estilo, um não-sei-quê bruto que emerge do mundo na superfície da arte, sem passar pelo trabalho formal. Nessa toada, vamos perdendo a chance de pensar, como estilistas, como estetas, artistas tão extraordinárias como Grace Passô ou André Novais Oliveira, por exemplo.

JG: Sim. Nesse caso, destas artistas que você cita, o prejuízo de uma leitura nessa chave é imenso. Há evidentemente muito mais para ver. A ideia de formalismo precisa ser repensada. Na belíssima entrevista que a Kenia Freitas fez com o cineasta estadunidense Christopher Harris para o catálogo do FestCurtas BH 2019, eles comentam sobre a relação entre os modernismos europeus e elementos de matriz africana por exemplo. Tem um nó histórico aí que precisa ser desfeito, e cujo efeito me parece que será a dissolução da ideia de formalismo – que me parece estar próximo ao que falamos aqui sobre a Sontag. Porque, eu que estou longe de ser um estudioso, quando vejo certas esculturas, certas pinturas, de povos originários daqui da América do Sul, por exemplo, aquilo é absolutamente “formalista”. No sentido de que o fazer, as ferramentas, a arbitrariedade das linhas, as proporções de uma escultura, estão evidentemente colocadas, na sua diferença. O que quero dizer: esta ideia vaga de uma arte “imediada” que ampara essa crítica meio “gasosa” da “estetização”, ela toma por modelo uma ideia que só se aplica a um certo modelo de arte, onde se performa uma ideia muito específica de despojamento. Sinto que isso tem muito a ver com informação também. È moralmente mais angustiante, hoje, em 2019, ver Vitalina Varela, ou …Vanda, sem um certificado de garantia de que todo envolvido na produção do filme é amigo, ou foi tratado bem, essa coisa que usualmente se chama de processo. O que sabemos é que o Pedro Costa está há mais de 25 anos trabalhando com as mesmas pessoas, sobre um mesmo processo histórico, nos mesmos territórios, lapidando uma pesquisa artística que me parece uma das mais decisivas deste século, em todas as artes; Vitalina e Cavalo Dinheiro foram filmados durante um ano e meio, cada um. Se o filme não bastasse, essas evidências para mim são muito eloquentes. Isso é um trabalho de longo prazo. É a melhor ficção seriada do nosso tempo (talvez só Twin Peaks seja páreo), e o que é espantoso é que parece constantemente em movimento. Dede Casa de Lava, eu acho o próximo filme inacreditavelmente mais forte que o anterior. Se a gente pegar alguns artistas que deram as cartas no século, não vejo ninguém fazendo isso com sua obra, desta maneira. Pegando Apichatpong, ou Claire Denis, Hong Sang Soo, nem mesmo a Martel, o trajeto não é tão consistente e para o alto. Mas voltando para o que falava antes: o vício em informação, em matéria de leitura rápida, aumentou hoje. Você já soube de uma galera jovem que vê filmes antigos,em reprodução acelerada? Isso é um fenômeno grande. O que quero dizer: como o contexto se moveu, um filme como Vitalina… talvez pareça para o ansioso de 2020 mais “lento”do que …Vanda parecia há 20 anos atrás. Mas se você se entrega à experiência são filmes que te oferecem muito, são abundantes, há dezenas de coisas pra fruirmos o tempo todo. Quando falamos de densidade não é parecer pedante, ou parecer coisa de “intelectual”, é porque são filmes saturados de estímulos se você aceita o pacto que eles propõem. Que é um pacto de opacidade: você não irá entender tudo, porque entender tudo é uma ideia superestimada. Entender quer mais dizer dominar do que fazer relação. A gente “entende tudo” de uma canção do Cartola? Óbvio que não. Mas a gente entoa aquilo alto, canta junto, com o corpo todo, pronto, o trabalho está feito. É preciso entregar o corpo todo à experiência destes filmes. Última coisa que quero comentar sobre o que você falou, que une pelo menos o André Novais e os filmes aqui em questão, uma coisa muito simples e concreta. Esses filmes mostram gente preta pensando. Filmam gente negra pensando. Isso parece algo simples mas não é. Suponho que a impressão de velocidade do plano por parte de certos espectadores será diferente. Para quem acha que pessoas negras não pensam ou não está plenamente acostumado a esta ideia, deve ser um calvário assistir a estes filmes. Porque eles estão ocupados em esculpir pela exterioridade imensos mundos interiores de seus personagens. Isso, historicamente é muito relevante. Fiquei lembrando de uma expressão muito corrente que sempre me cai mal ao ouvido: “gente simples”. O que tá em jogo aqui é uma torrente que destrói completamente essa ideia tão capenga – para não dizer outra coisa. A gente sai com a sensação corporal inclusive, que pela vida dessa mulher, e dessas pessoas, atravessam forças de muitas naturezas, saberes, histórias, códigos, luzes e escuridões, cujo saldo é tudo menos “simples”. Para haver “gente simples” é preciso que haja os “não simples”, portanto, é uma ideia insustentável. Muitas vezes essa coisa meio vaga de tecer objeções sobre estilização pressupõe um certo binômio tácito: gente simples, forma simples. Eu discordo veementemente disto. Sinto que muitas vezes, sem perceber, a crítica age de maneira pensando que personagens, atores e tal, são pessoas burras, que não conseguem perceber o que o trabalho dos filmes faz com as imagens delas. Me recuso a acreditar a priori que pessoas sejam burras.

VG: O que o Pedro Costa tem feito poderia ser comparado aos muitos anos em que a Margarida Cordeiro e o António Reis voltaram a Trás-os-Montes, mas esse gesto tem um ponto de comparação ainda mais antigo: em termos de método, é comparável ao Cézanne pintando a montanha Santa Vitória a vida inteira. Posso estar exagerando, mas em termos de método me parece uma comparação justa. E isso, como você disse, vai inteiramente na contramão da pressa contemporânea, ao afã de decodificação, ao predomínio da informação como regime quase exclusivo. Mas tem uma outra coisa aqui: ao dizer isso, eu não quero recolocar no seu lugar velho e decrépito o fantasma do autorismo. O próprio Pedro Costa disse na retrospectiva dele em Curitiba: “Eu não acredito em talento. Eu acredito em atenção, trabalho e um pouco de decência”. Você pode imaginar qual foi a reação da cinefilia mais tradicional a essa afirmação. Uma frase dessas é o extremo oposto àquele ridículo editorial da Cahiers du Cinéma de um tempo atrás, em que eles ressuscitavam de maneira quase naïf, quase juvenil, a palavra “gênio”, pra celebrar a excepcionalidade de certos cineastas contemporâneos (um grupo bastante heterogêneo, aliás). Mas indo adiante: como pensar a singularidade desses filmes sem recorrer de forma simples ao gênio do autor como categoria de análise, mas ao mesmo tempo sem negar o trabalho formal intrínseco a essas obras? Me parece algo da maior importância. Como você disse, há muitas forças atuando ali. Ao mesmo tempo, elas estão organizadas de forma singular numa matéria plástica, sonora. Eu me lembro sempre de uma expressão da Gilda de Mello e Souza no maravilhoso ensaio que ela escreveu sobre o Blow-Up (1966) do Antonioni: “a autonomia incontrolável das formas”. Há sempre algo que excede o gênio, a intenção, o processo, e que talvez seja justamente a parte da arte nisso tudo. Sobre “gente simples”: eu tendo a achar que todo o trabalho do Pedro Costa como artista consiste em fazer justiça à exuberância e à complexidade das pessoas que ele tem encontrado ao longo desse caminho. E se os filmes se tornaram mais complexos, mais grandiloquentes, mais cheios de camadas, mais acachapantes como experiência estética, não é porque o artista se impôs sobre o material (o que seria o sinônimo da estilização), mas porque para estar à altura do Ventura ou da Vitalina foi preciso fazer esse movimento. Outra coisa que sempre me vêm à mente é uma frase que está no O Som da Terra a Tremer (1990), da Rita Azevedo Gomes: “Para se conseguir a verdade é preciso compor. O artifício é obrigatório”. Não estou seguro se podemos falar de uma exacerbação progressiva do artifício nesse cinema (insisto: ele está lá até mesmo no …Vanda), mas é um fato que em filmes como Cavalo Dinheiro ou Vitalina… há uma exuberância visual e sonora mais aparente. A meu ver, essa exuberância tem a ver com uma consciência cada vez mais pronunciada da envergadura estética e da complexidade existencial dessas pessoas.

JG: Essa coisa do gênio me parece uma ótima bola. Tava lendo ontem um bonito texto no volume Cem Mil Cigarros, que saiu em Portugal sobre o cinema do Pedro Costa, onde há um texto do António Guerreiro onde ele diz: “Estamos nas antípodas do cineasta demiurgo, e o filme é uma criação das figuras que o percorrem. Criadoras de mundo e não objetos manipuláveis, são elas que delimitam a existência. Não são função de outra coisa, não representam papéis, não são símbolos; são presenças expostas, corpos dotados de uma imanência política. E por isso, por não serem apropriáveis, por sentirmos que elas nos nomeiam a nós muito mais do que nós as conseguimos nomear, todas estas figuras são escandalosas.” Poderia fazer toda nossa conversa acerca deste trecho, há muita coisa aí, mas a questão do antípoda do “autor” se expressa. Porque afinal o autor é uma fantasia cristã e monoteísta. Tem um texto recente meu onde sugiro isso, mudar a coisa para um modelo panteísta. Que não seja fundado também sobre a separabilidade que falei no começo, nem no que a Jota Mombaça disse outro dia numa fala do MASP: “a ficção hierárquica do humano”. É preciso mexer nos modelos de entendimento para que se perceba que diminuir as hierarquias que convergem para ideia de humano é uma ação de abundância, de ampliar o entendimento da ideia de vida, de expressão, de autonomia. Cinema tem tudo a ver com isso. Sinto que hoje há um impasse – e um filme como Vitalina… dá sugestões de como resolvê-lo – quando se fala da ideia de descolonização, dos discursos e tal. Virar esse jogo passa necessariamente abandonar a ideia de “humano”, e portanto a ideia de “humanização”. Estamos, como comunidade, preparados moralmente para isso? Abandonar a ideia de animalização como pejorativa? É um trabalho danado de reforma das categorias. Há uma outra face disso, um pouco lateral, mas relacionada, é que estes filmes são também matéria de uma intensa discussão sobre modos de produção. São feitos quase inteiramente com um set mínimo, durante um longo período de tempo. Isso é a antípoda do que se estabeleceu. Falo sempre isso para jovens, para pensar produção estética e politicamente. A equipe de Vitalina… pode gastar uma semana para fazer um só plano. Esse cinema também é relevante como pensamento econômico também. Converso às vezes com gente que produz filmes e essa ideia da super concentração de um plano de filmagem em o menor número de dias possível é algo que muita gente não pára para pensar. O mito do profissionalização. Quando o Pedro fala dessa coisa do talento, a questão é essa, de certo artesanato. Outro dia em conversava por zap com um amigo e falávamos de uma coisa muito brasileira, de um certo registro com combina o artesanal e o grandioso, uma coisa sem medo, de intensidades abertas, que coloca para jogo inclusive sua forma que pode ser vista como precária. Mas me interessa a ligação entre o artesanal e o grandioso. Vi uma peça com um pastor evangélico aqui há poucos dias que me tocou também por isso, por este cruzamento. O cinema português, me parece que sua linha de força sempre foi uma certa energia artesanal, e acho que o brasileiro, à sua maneira, também.

VG: Eu não tenho dúvida de que esses filmes podem ser uma inspiração e tanto pro cinema brasileiro, e eu acho que a chave está muito mais no método do que na superfície visual dos filmes. Não dá pra gente cair de novo na armadilha da importação de uma fôrma estilística, porque isso vai dar ruim. O Brasil é outro mundo. Mas essa energia artesanal, se combinada a outras energias que estão muito presentes no cinema brasileiro de várias épocas, como o improviso na precariedade ou a apropriação antropofágica do elemento estrangeiro, pode inventar coisas.

JG: Sim. E Vitalina Varela vai entrar no circuito comercial aqui em 2020. Isso é inédito, os outros nunca entraram. Apesar de haver razoável fortuna crítica, essa obra é muito menos conhecida do que deveria por aqui. Portanto, amplia-se as possibilidades deste cinema poder ser semente. Acho que o contato há de ser rico. Vejamos.


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