anoiteamarela-cabecalho

A noite iniciática

“Ô Frâiche nuit, nuit transparente, Mistère sans obscurité; la vie est noire et dévorante; ô frâiche nuit/ nuit transparente, donne-moi ta placidité/ (…) mon coeur bouillonne comme une urne; ô sainte Nuit, nuit taciturne, fais le silence dans mon coeur”

Lieder de César Franck, letra de Louis de Fourcauld

“The process of delving into the black abyss is to me the keenest form of fascination”

Howard Phillips Lovecraft, The Nameless City

O primeiro plano de A Noite Amarela é um close de uma menina que contempla o Infinito, e no rastro desta iniciática oblação cósmica seguem-se um fondu, e mais outro que arremata por nos desterrar num buraco negro aberto no centro de uma mão, à primeira e definitiva vista de um filme que vai acabar por ser consumido por esta retórica de absorção da noite tópica de uma viagem de comemoração e rememoração adolescente à la Linklater pela Noite arquetípica do Totalmente Outro que habitou talvez os melhores épicos intimistas-unheimlich de Kiyoshi Kurosawa, realizando um sincretismo sempre bem visto pelo crítico que vos fala entre a Reinvenção da Origem que está no horizonte da adolescência possível e a danação “fins últimos” que assombra todo filme de horror, sobretudo mais secretamente subjetiva quando Unheimlich (em Schelling, Freud, Jentsch e Hoffman a “estranheza familiar” consiste na permanência de um rastro energético que envenena o ar familiar, efeito de um conteúdo recalcado que novamente acede à superfície, que se atualiza). Mas caberia aqui uma oposição, sempre maniqueísta, monista, e portanto sitiada por antagonismos de letra e de espírito, sob o ponto de vista do fenômeno fílmico e suas análises, entre um filme de horror mais exuberante, expressionista, histérico mesmo, e o Segredo sussurrante de Kammerspiel, tinto de entropia subjetivista e de luz intermitente, de um filme que só se revela se ocultando, como evidencia complicando (falarei mais adiante disto, mas estabeleçamos que a oposição entre a evidência Física e a supra-vidência metafísica é uma das mais poderosas táticas de investigação fenomênica do filme), como é o caso de A Noite Amarela? Aqui, convivem com um crescendo de intimidação fantasmática e recíproca imantação quântica, o lumièriano plano panorâmico de amigos que interagem entre si e com o mundo – e um plano obscurecido no in extremis da invisibilidade, ou do hors champ tópico, mais próximo da beirada do campo – de uma jornada no coração das trevas do experimentalismo cinematográfico, de sua figuração limítrofe: em que dimensão devemos confiar a nossa experiência do olhar? A Noite Amarela não é um filme passível de ser enclausurado sob um Codex lumièriano ou mélièsiano (embora estejam lá, com propósitos de cooptação fascinatória, o onipresente fondu, o contracampo epifânico, a profundidade de campo vertiginosa, a elipse). Ele existe plenamente no interstício, como interstício destas duas experiências a princípio opostas do olhar, embora a esta altura sempre seja necessário lembrar aos leitores a sentença de Godard segundo a qual o teatro pujante de Méliès consiste “antes de tudo em um documentário sobre uma representação da Cena teatral”, como invocar Jacques Lourcelles e Pascal Bonitzer para pensar que Lumière sempre ensaiou, remontou e mesmo auto-parodiou seus planos em aparência investigativos da res clássica, mas profundamente ancorados em estratégias de confecção ficcional da imagem a princípio.

Mas afinal de que dimensões nos fala este filme secretamente evidente, manifestamente obscuro, densamente rarefeito e progressivamente carcomido em seu interior pela alteridade metafísica radical, como também inauditamente rico em senhas de acesso a universos paralelos que, ao contrário do que nos pode aparecer em séries de terror mais tematicamente expressionantes como o Alien (onde o Homem é que se converte naquela alteridade “pedra no sapato” de que o monstro deve se livrar se quiser levar a cabo o processo de entropia anti-humanista de que suas garras se asseguram como de um fórceps absolutamente necessário para a manutenção do equilíbrio cósmico)? Só os são paralelos à medida em que o filme nos ensina a vê-los como co-extensivos, reciprocamente englobantes, à imagem dos conteúdos e continentes “bonecas russas” de investigações metafísicas ontológicas e fenomenológicas de que o cinema é uma arte tardia a experimentar os prodígios vertiginosos de experimentação fantasmática. De que dimensões tratamos aqui? – e isto excetuando-se o dado de base de que o filme consiste num thriller iniciático adolescente de que se parte para não voltar, uma vez que a iniciação de que se trata ao longo e ao cabo de A Noite Amarela consiste na lida, in crescendo aprofundada, com o Totalmente Outro, com o absoluto fora de campo ao qual não se acessa em todo filme (sobretudo um filme que se alimenta de suspense, de suspensão aqui dos dados espaço-temporais infra-estruturais da representação, mas é bom se ressaltar que o fora de campo em qualquer filme só se desvela absolutamente no a posteriori do último plano) senão ao arremate do filme, como the end de. Dado isto, como pode o filme nos levar a conceber estas dimensões que descreverei a seguir como absolutamente co-dependentes uma da outra?

anoiteamarela-01

Vocês se lembram daquele super-enquadramento (um cadre dentro do cadre), quando a câmera vai abandonando os perfis das amigas enquadradas diante de um televisor onde se transmite o conteúdo de uma fita VHS (fórmulas, escritos, o desenho do Angelus novus de Paul Klee no frontispício de um livro, imagens Remember me? do avô cientista de uma das garotas, na casa de praia de quem acabaram de chegar) para, progressiva e deliberadamente acabar por aprofundar a superfície-écran do televisor, confundindo-a com a superfície-insuspeitamente profunda, por natureza profunda do plano de cinema (e se poderia falar exatamente o contrário da imagem televisiva, superficial por excelência, com o parênteses diegético que deve ser levado em consideração aqui de que esta exibisse a finitude radical do grão do VHS, índex evidente de que a imagem passou por uma experiência, no caso analógica, de que como à semelhança da imagem de cinema esta sofreu o embate com o mundo para chegar até a casa do espectador)? Mas continuemos com este método de raccord diretivo: lembram-se das luzes intermitentes, ou mesmo lembram-se enfim da completa escuridão – e para ser equilibrado, equidistante, e falar como os dialetas: da revogação da luz – de que sofre a experiência do filme, de que o filme se torna o lócus privilegiado no seu terço final? Max Plank, fundador da física quântica, dizia que fenômenos macroscópicos como a super fluidez e a supercondutividade só teriam sentido se “considerarmos que o comportamento microscópico da matéria é quântico” (Curso de termodinâmica). E lembram-se portanto de que estas imagens superfluidas e supercondutivas possuem, pelo uso retórico da intermitência da luz e do fondu enchainée, perto do final do filme, uma natureza quântica, e que através desta superfluidez etc, as percepções mundanas das subjetividades no filme se perseguem reciprocamente, se imantam, se implicam, e desaparecem numa mesma ausência de luz (oxímoros sempre falarão melhor que eu)? Que acedemos enfim a uma experiência metafísica, ou supra-física, ou mesmo quântica? Que tudo é apenas modus operandi de dizer, mas que o que se deve reter destas diferentes transcrições de língua é que chegamos ao tête à tête com o Totalmente Outro? Lembram-se , voltando o DVD até os minutos iniciais, de que um dos amigos que vão passar o final de semana neste recanto mais recuado da Paraíba relembram que o seu avô ou pai possuía um matadouro? Lembram-se, ou enfim se dão conta, de que o fora de campo sob a qual o filme se coloca em seus primeiros deslocamentos sensórios possui como fora de campo a moeda fiduciária do sangue dos animais? De sacrifício, falamos? Sim, de sacrífício; ao cabo do filme, falamos de sacrifício? Sim, talvez. Mas prosseguindo até a conclusão a princípio impossível deste raciocínio maiêutico… não veem que a imagem super-enquadrada do plano das duas meninas diante do televisor (ou diante de uma imagem de VHS retransmitida pela televisão) é um Limiar a partir do qual todas estas dimensões do filme de Ramon Porto Mota se embaralham, se confrontam, se perseguem, e finalmente se reconciliam sob a escuridão? Neste lento travelling para diante que nos leva dos perfis ainda enquadrados das moças para a profundeza enfim revelada da imagem de VHS, sintetiza-se de uma forma ainda apreensível pela representação, e portanto ainda clara, classicamente visível (e o filme vai progressiva, deliberadamente, abandonando esta visibilidade clássica de um plano de cinema mais em campo e contracampo, em nome de uma invisibilidade completamente devedora da noção de fora de campo). Lembram-se agora do sangue dos animais? Sim.

Na história do cinema, há um filme eminentemente elementar sob o ponto de vista do gênero de horror, um filme primeiro e último, um quase slasher metafísico dos anos 1950 no qual se abordou (sim, mas falamos de um slasher metafísico aqui também, porém já não mais no cadre do classicismo) a questão do Totalmente Outro, ou do fora de campo encarnado numa figura de tão assustadora não-encarnada, que de forma tal em sua grandeur nature diabólica não poderia a princípio caber em nenhum plano de cinema, e em sua primeira versão acabada infestou de tal maneira terrificante a sua entrada em cena que impediu a sua disseminação por qualquer outro plano, sobretudo se plano-sequência (que Jacques Tourneur já conhecia, já praticava antes de muitos modernos). Trata-se de A Noite do Demônio (1957), de Tourneur. A produção e o próprio Tourneur se obrigaram a mostrar o Demônio em um dos primeiros planos do filme, mas eu conheço um texto seminal de Jean-André Fieschi no qual este defende com uma retórica digna dos grandes pais latinos que o Diabo deveria ter permanecido enrustido na coxia do filme, e portanto o assombrasse por uma espécie de radiação quântica (voltemos a Plank). Em todo caso, que esta desaparição tomada de tal forma e com tal método acabasse por se tornar a secreta Caixa de Pandora de que o mágico Tourneur (há um mágico-mago no filme, aliás, que tirava de sua cartola muitos daqueles primeiros prodígios de quando o cinema ainda era uma arte de feira, aliás, Karsberg) ia desvelando, prestidigitação a prestidigitação, o conteúdo imarcescível e sublime da caixa até seu fundo primordial, o fundo dos fundos. Não se lembram agora de A Noite Amarela? A diferença é que em A Noite do Demônio (ou no Convite a um Pistoleiro, de Richard Wilson e seu deus ex machina, em 1964, ou nos filmes que Val Lewton produziu para Mark Robson e Tourneur nos anos 1940) encontrava-se Deus ao final do caminho. Deus pode ser concebido aqui como um fundamento racional, causalista e sincronicamente orientado, um happy end reconciliado no qual todos os abismos entrevistos ao longo do filme quase-experimental-mas-ainda-clássico serão suturados por uma Revelação que há de preencher as brechas e despenhadeiros prognosticados ao longo do filme, e tudo solucionar, dando enfim ao sorriso irônico de Dana Andrews o seu sobranceiro pano de fundo. Se A Noite Amarela é um eminente filme tardio, é porque nele as figuras condensadas ou rarefeitas do fora de campo (ou, para falar como quando acreditávamos nas coisas, já que o classicismo foi antes de tudo uma questão de crença: do Totalmente Outro) se revelam com uma frequência de tão obscena só visto em filmes ultra-experimentais como os últimos Stan Brakhage, que só estacaram em seu questionamento radical do matiz, da textura e do ritmo da película cinematográfica quando já nada havia para aprofundar, e então os filmes em nitrato rutilante nos revelam suas superfícies gloriosamente coloridas a mão. Em A Noite Amarela, filme experimental iniciático sobre um bando de adolescentes que detém como objeto da própria experiência aquilo que preexiste a qualquer experiência, e portanto impunemente jamais poderia ser considerado objeto para nada a não ser devaneios de moribundos num mundo pós-pós do qual a luz foi completamente abolida, e assistem por nós da cabeceira do último sonho vestígios de presença como ersatz de entes.

anoiteamarela-02

Falei mais acima em algumas dimensões: sim, Lumière e Méliès (os planos panorâmicos dos meninos dialogando entre si e interagindo com o mundo, mas isto eu já disse; a luz intermitente do terço final simulando uma lanterna mágica desregulada para que a Ausência fosse enfim vista em campo, e não mais a presença clássica, o uso tantas vezes muito brilhantemente funcional da elipse); a visão finita, infra-estrutural, infra-enquadrada que se confronta à visão vidente metafísica super-enquadrada, ou o relativo estatismo de um mundo habitado ainda por planos newtonianos e um mundo atomizado até seus últimos estertores de figuração, quando quântico ou energético; e falei também em um Waking Life (2001), de Richard Linklater, que encontra Pulse (2001), de Kiyoshi Kurosawa, para um conhaque? Sim, falei no início, um tanto ainda balbuciante. Mas a sequência extraordinária que me vem agora à cabeça é aquela na qual este filme multi-dimensional, que assombra para revelar algo demasiado relevante para permanecer na coxia, onde se extrai um uso mais político (sim, uma vida ativa, uma hermenêutica da força) para este embate perpétuo entre mundos, percepções e representações cuja atração e imantação recíprocas A Noite Amarela se encarrega de nos mostrar com resfolegante assédio: é quando do confronto no posto de gasolina entre a gangue punk das meninas e os caras mais adestrados segundo a “língua de todos”, para ficar nos eufemismos. Talvez seja o primeiro olhar ressentido filmado no despertar deste século, ou em todo caso, aquele de que mais consequências se implicam dramática e plasticamente: uma boa nota de rodapé aos estudos de Daniel Sibony sobre o racismo. É uma sequência admirável na forma como a violência se refrata em planos closes e médios muito incisivos em seu punch de onomatopéias canibais (a garrafada na cabeça, o rosto que sangra sobre o asfalto) e se apazigua, se modula mais irônica como panorama de uma geração nos planos de conjunto, que correspondem como em uma sonatina em dó maior tocada por Bud Powell aos primeiros planos. É tudo muito intensamente afrontoso, mas muito inventado pela cabeça do diretor também (eu já disse que o filme é também bela, polifonicamente escrito, e, como apesar da sua progressiva rarefação figurativa, tudo ainda se dá a ver segundo um découpage muito claro e escorreito até o final?), e nisto me lembrou muito tantos filmes do horror italiano, que com tão pouco dinheiro preferiam dar à montagem, cosa mentale do cinema puro, a função primordial de restituir num plano de nitrato retirado a fórceps de uma sequência virtualmente infinita o plano precisamente recortado, a navalha de olhos saltados ou vísceras amealhadas: este confronto formal e material entre dois mundos que decidiram que um só vai existir plenamente se tiver como fundamento a planície de todos os cadáveres acumulados do outro grupo, autóctone mas rival até o último espécime. Dito isto, já disse por aqui que se os garotos sonham é porque estas mãos são teleguiadas pelo espelho de Orfeu (que John Carpenter “roubou” nas sequências mais obscenas de O Príncipe das Trevas, de 1987), e que ao final eles se sonham outros do mesmo sonho, de um mesmo futuro que mal cabe no pretérito imperfeito deste agora que já não mais é? É aliciando-nos por seus oxímoros, pelo idioleto de seu gestos e por um alfabeto de cinema muito idiossincrático, muito reinventado pela própria cabeça de Ramon Porto Mota, que A Noite Amarela, filme esquizo multidimensional, existe. Como a flor azul de Novalis, é o lugar onde coabitam o digressivo e o mágico, o casual e o causal, a infra-física do mundo aí e a supra-metafísica do Mundo ausente ou porvir. Numa época de polarizações tamanhas e tão tacanhas, ser um cinema do interstício é uma arte para poucos.


Leia também: