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Era uma vez, num castelo assombrado

Ainda nos créditos iniciais, em tela preta, a suave voz masculina anuncia o plot enquanto tocam os acordes da banda Goblin: “Suzy Bannion decidiu aperfeiçoar suas técnicas de balé na mais famosa escola de dança da Europa. Ela escolheu a celebrada academia de Friburgo. Um dia, às 9h da manhã, ela deixou o aeroporto Kennedy, em Nova York, e chegou à Alemanha às 22h40, hora local.” Após os créditos, a primeira imagem é o painel eletrônico anunciando os voos que pousaram. Num travelling, a câmera se movimenta para a direita e enquadra várias pessoas no desembarque. O primeiro choque: a iluminação do lugar é avermelhada e antinatural. De partida, Suspiria – entre a trilha sonora intermitente, a narração descritiva e a fotografia colorida – nos instala num universo bastante específico: estamos num conto de fadas, e tudo pode acontecer.

Essa relação é constitutiva de Suspiria. O roteiro do filme tem assinatura do (então) casal Dario Argento e Daria Nicolodi. A inspiração veio dos relatos da avó de Daria sobre a época em que, jovem, foi estudar numa escola de dança cujas professoras eram praticantes de ocultismo e magia negra. Depois do sucesso de Prelúdio para Matar (Profondo rosso, 1975), Argento estava com vontade de variar sua abordagem no terror. Encontrou na bruxaria o tema que lhe interessava, e na avó de Daria a gênese de uma mitologia. Tendo realizado uma série de gialli (filmes policiais italianos de mistério e assassinato) nos cinco anos anteriores, Argento só experimentou efetivamente o cinema de horror com Suspiria, lançado em 1977.

O impressionante nesse seu primeiro passeio pelo horror é que Argento pega a rota da narrativa feérica, colocando a si mesmo no papel de orador (“falando” por imagens e sons) para amedrontar a quem o vê e ouve utilizando estímulos audiovisuais exacerbados. Para isso, o diretor transita pelos sentimentos das personagens (e não por seus arcos dramáticos) e os transfigura em imagens de pavor. Com isso, deixa-se hipnotizar pelo fascínio com os ambientes e as luzes e com os espaços e a música. Importam pouco (quase nada) os desdobramentos narrativos de Suspiria, ou sua intriga e suas revelações. A apresentação oral, no off dos créditos, tem muito mais o objetivo de resgatar o indefectível “Era uma vez…” das histórias infantis do que localizar o espectador num eventual estopim de enredo.

Suspiria é um devaneio ilimitado por situações simultaneamente escabrosas e maravilhosas das construções visuais de Argento. Ele é habilidoso no profundo controle de cada cena, no barroquismo e no excesso de movimentos e cores, gritos e perseguições, na extravagância das mortes e no nojo dos vermes que despencam do teto. A “princesa” do filme é Suzy (Jessica Harper), jovem doce e sonhadora, sugada para um pesadelo repleto de portas misteriosas, quartos abandonados, paredes ultravermelhas de desenhos geométricos, mordomos mudos e sombrios, mitos assustadores e passos noturnos que atravessam as paredes. A escola de dança é um castelo assombrado, de passado nebuloso, marcado pela bruxaria e por segredos inconfessáveis nas madrugadas secretas das mulheres que o administram. Não há príncipes salvadores nessa fábula: as garotas tomam a ação para si, ora sendo condenadas por suas ousadias, ora invadindo terrenos para onde não foram convidadas, causando mudanças drásticas no status quo.

Argento não busca o controle absoluto da narrativa (como Alfred Hitchcock), nem a moral que comanda o mundo (segundo Fritz Lang), tampouco o maneirismo das imagens (marca de Brian De Palma). O diretor italiano se vincula a outro mestre: Mario Bava, precursor do cinema de horror na Itália ao codirigir com Riccardo Freda, em 1957, o cultuado Os Vampiros (I Vampiri). Nos anos 1930 e 1940, o fascismo proibira a produção de filmes de terror no país. Somente na segunda metade dos anos 1950 é que alguns cineastas decidiram encarar o que era visto como tabu. O sucesso de Os Vampiros e a experiência de Bava com fotografia o tornou o mais celebrado realizador do gênero na época. Ele dirigiu títulos essenciais, como A Maldição do Demônio (La Maschera del Demonio, 1960), As três máscaras do terror (I Tre Volti della Paura, 1963) e justamente aquele que virou referência para os gialli que se notabilizaram na década seguinte: A Garota que Sabia Demais (La Ragazza che Sapeva Troppo, 1963), por muito tempo conhecido no Brasil como Olhos Diabólicos.

Quando estreou na direção, em 1971, no giallo O Pássaro das Plumas de Cristal (L’Uccelo dalle Piume di Cristallo), Argento deixou explícito o fascínio pelo estilo de Bava, mas já apontava outros caminhos que pretendia seguir. Suspiria é o ápice e a depuração da herança baviana, que aparece no prazer proporcionado pela imaginação e na liberdade de trafegar por um mundo de regras espaciais próprias – algumas delas distantes das leis do outro mundo (o real) que nos cerca. Exemplos são sucessivos: uma personagem é atacada no quarto, e no plano seguinte ela está ainda sendo atacada, só que no corredor do prédio; outra garota perseguida tenta escapar pulando por uma janela, e então a câmera revela um emaranhado de cabos cortantes logo abaixo. Mas Suspiria também nos lembra constantemente de aflições próximas a nós: toda morte é causada por algum objeto, instrumento ou criatura que nos permite identificar o tipo de dor provocada. A ambientação é de fantasia, as angústias são de um sonho ruim.

O filme herda dos gialli do próprio Argento a relação entre memória e acontecimento, ou a encarnação de uma imagem que, represada no fundo das lembranças e bloqueada pelo trauma, é retomada em momento-chave do enredo. O leitmotiv típico argentiano (que ele, ao seu modo, absorve do seu assumido fascínio por Blow-up, de Michelangelo Antonioni): ao chegar à escola, durante uma tempestade, Suzy ouve uma garota (assassinada algumas cenas depois) balbuciar palavras, mas não entende exatamente o sentido do que ela diz. Ao longo de todo o filme, Suzy tentará se lembrar ou conectar as falas da vítima, sabendo que ali estará a resolução de sua busca. Só que não basta recordar: é preciso ter instrumental suficiente para fazer as conexões. Enquanto a personagem não estiver minimamente no mesmo ponto em que estava a garota morta, de nada adiantam as palavras. O quebra-cabeça proposto pelo filme, então, é falso, pois ele só se resolve com informações externas e até então ausentes. Argento coloca em dúvida a própria natureza dessa imagem que volta, dessa lembrança que insiste em se estabelecer como mais um dado a atormentar Suzy.

A busca pela imagem esquiva se relaciona diretamente, afinal, ao imaginário de Daria Nicolodi e das histórias de sua avó. Pois Suspiria é exatamente uma junção entre quimeras, por isso mesmo heterogêneo e sem limites. A experiência do filme não é só a de assistir a ele, mas principalmente a de vivenciá-lo, de habitar os devaneios de Suzy, de se relacionar afetivamente com a força da arquitetura oferecida por Argento. A pictorialidade do filme nos hipnotiza não só pela beleza das imagens e pela concatenação com o trabalho de música e som, mas porque é também um aspecto de submersão em um universo de encantamento, no qual o vermelho, o azul e o amarelo convivem harmoniosamente com a morte e em que o sorriso só é possível diante do alívio de um castelo em chamas.

A fotografia de Suspiria, captada por Luciano Tovoli com técnicas de sobreposição de películas, é outra personagem no filme. Argento disse em entrevistas que suas referências visuais foram os desenhos animados de Walt Disney e as paletas hipersaturadas do Technicolor usado pelo cinema norte-americano dos anos 1930 e 1940. Também herança de Bava – especialmente do alucinado Seis Mulheres para o Assassino (6 Donne per l’Assassino, 1964) –, a utilização das cores como estética reforça a adesão ao fantástico de Suspiria e subverte a tradição do filme de horror, até então muito mais relacionado ao preto e branco ou ao uso comedido e expressionista da luz para ocultar ou distorcer elementos do cenário. No filme de Argento, quanto mais cores, mais perigo, terror e encantamento.


No dia 28 de Setembro de 2017 às 19h, a Sessão Cinética exibe Suspiria, de Dario Argento (Itália, 1977) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Suspiria será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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