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Nas garras do medo

A experiência do ser jovem no século XXI é indissociável da proximidade claustrofóbica com as mais diversas e espessas camadas de uma ansiedade imperativa sobre a tônica do cotidiano. Formar uma existência social enquanto juventude pós-digital implica construir aprendizado e mudança a partir de enfrentamentos e de negociações diárias com os impulsos de controle de um nêmesis pós-moderno. O preço do fraquejo é um abismo de identidade própria, que só costura unidade geracional pelos reencontros familiares com corredores sem fim, portas para salas escuras e janelas com vista para paisagens sem horizonte. É a casa mal-assombrada da qual não se pode escapar impune. Cada visita, uma nova cicatriz; cada nova cicatriz, uma nova bifurcação no labirinto de ruas esburacadas e truculentas que marca a fuga de um país das maravilhas ao avesso. O Slender Man, criado em 2009, como produto da internet, é uma personificação mítica pioneira de tais assombrações que circundam os jovens do mundo digital como os dementadores circundam os prisioneiros de Azkaban no universo de Harry Potter. Em Slender Man, é a credibilidade veemente que as protagonistas conferem às imagens do universo virtual que dá vida e alimenta a ameaça profunda do mito do homem sem rosto: o pacto do desespero que emerge não é o ponto de partida, mas o fim de um labirinto já muito percorrido. É a resposta ao paroxismo de um acumulado de cicatrizes psíquicas; é um vírus pronto para penetrar uma psicologia enfraquecida pela ansiedade e amedrontada – e por isso se aproveita dos jovens, representantes das mentes em formação do planeta, ainda em processo de assimilação das circunstâncias de perigo da ordem social instalada. Ele é a expressão psíquica das últimas consequências da tomada de consciência desse processo de assimilação; o que logicamente supõe, como comentário, que o verdadeiro monstro mítico, invencível e indestrutível não é o Slender Man, mas a natureza social que o produz.

Antes de invocar o homem sem rosto, as protagonistas pesquisam, leem comentários na internet sobre o assunto e um comentário se destaca, em especial para Katie (Annalise Basso) – justamente a primeira do grupo a se tornar vítima: o anúncio de que a vinda do Slender Man significaria uma porta de entrada para um mundo mágico, para um lugar alternativo. A relação clara que se estabelece é a de que o interesse se promove em função de um sofrimento anterior, na busca a todo custo de um escape; e que ele apareça como fácil e miraculoso, é um forte atrativo, afinal o que pode ser mais sedutor para uma jovem internauta do que a sugestão quase publicitária de que “basta clicar em um vídeo e toda sua realidade mudará”? É uma juventude patologicamente frustrada com a incapacidade de encontrar subterfúgio, porque os problemas são deslocalizados; são sentimentos e atmosferas que ultrapassam barreiras geográficas, é um estar-no-mundo em colapso. O que Slender Man compreende são as inferências de tais condições para a revisão de uma estrutura social vigente e para uma proposta formal de abordagem cujas essências são uma síndrome de antecipação permanente. A antecipação, por ser fundante dos sintomas da ansiedade, é a infraestrutura contemporânea de direito de um filme de terror sobre a juventude que se constrói como filme de atmosfera – resignando dignamente os jump scares –, pois o medo maior decorre da constante e interminável sugestão do monstro e não do contato de fato. O terror, como o suspense, é uma operação emocional de depósito e não de susto.

A associação de que a violência social estaria sujeita à mesma simbiose que ocorre entre antecipação e terror – consumando-se como violência genuína aquela que espontaneamente gera desespero pela ininterrupta antecipação permanente –, é o que fundamenta a questão central do filme: nada tão afligido pela violência social de antecipação permanente como a vivência de uma mulher em um mundo pautado pelo feminismo, em que a consciência dos riscos e das ameaças de uma sociabilidade patriarcal é intensamente estimulada. Slender Man funde o diagnóstico dos escopos da ansiedade contemporânea imbuído na simbologia do homem sem rosto a um sofrimento social da mulher de longuíssima data, a fim de visualizar os pontos de interseção que se formam, os resultados que se inauguram a partir de tais pontos e o que eles significam para uma análise das condições sociais e psicológicas de existência social da mulher no mundo digital pós-feminismo. A primeira insinuação de manifestação do Slender Man que efetivamente embala uma significativa carga de suspense, na sequência em que Hallie (Julia Goldani Telles) e Lizzie (Taylor Richardson) estão sozinhas em casa e escutam barulhos suspeitos, revela que os sons não vinham do homem sem rosto, mas do pai de Katie, Sr. Jensen (Kevin Chapman), que havia invadido aquele espaço privado. Nos filmes de terror, esse recurso tão usual – de desmentir as expectativas de uma tensão gradativamente construída – é o momento de respiro, o famoso “ufa!”, que tranquiliza a plateia por adiar a vinda do monstro. Em Slender Man, o aparecimento do Sr. Jensen – no lugar do esperado homem sem rosto –, não provoca alívio algum, pois o que ocorre é a substituição de um predador por outro. Aquele homem, naquele instante, naquela posição e com aquelas intenções, é tão assustador quanto o Slender Man, já que o grau exorbitante de perigo apresentado por um agressor masculino não requer que ele seja um monstro sobrenatural, pelo contrário. Ele é só um homem comum disposto a se aproveitar plenamente das suas condições de poder, de seus privilégios. É uma equalização do potencial de ameaça entre homem e monstro, que se diferenciam por pura circunstância.

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O gênero cinematográfico do terror, à luz dos pensamentos sociais contemporâneos, talvez seja o campo iconográfico privilegiado para uma revisão histórica crítica da representação da mulher nas imagens do cinema de gênero. A equalização, que já em primeira instância toca em opressões sociais inegáveis, é sobretudo muito ressoante por se respaldar, com intuito de ressignificação, em um acervo de imagens que converte um estigma de histeria feminina em código de gênero. O esqueleto narrativo de praxe dos filmes americanos de terror, principalmente se tratarmos de um subgênero como o slasher, é a relação de predador e presa, na qual um homem psicologicamente deformado desconta suas pulsões psicóticas em uma mulher simbolicamente preparada para reiterar a histeria pelo prisma da capitalização dramática. Como o epicentro do cinema de gênero é a repetição – e, nos melhores filmes, a metamorfose – de códigos previamente situados, sob o encargo da mulher, nos slashers americanos, ficou o fardo de representação da vítima histérica; não à toa, temos o termo scream queens (rainhas do grito) como referência para atrizes que marcaram o gênero. A quase institucionalização da repetição molda uma abstração da possibilidade de significados contingentes em nome de um significado permanente: o fato de uma mulher estar representada como vítima deixa de se tornar objeto de reflexão ou questionamento para se tornar meramente composição de gênero. Slender Man parte desse vácuo para reivindicar uma significação, para submeter uma renovação que imponha, à representação, a cobrança de significado contingente, pois a escolha de conservação inalterada dos códigos já é formação de discurso.

Se ambos os encontros entre Hallie e Tom (Alex Fitzalan) evocam, para Hallie, sentimentos de desconforto e pavor – um em nível sutil e outro em nível violento –, é porque a identificação do potencial de ameaça transcende a cognição lógica e atinge diretamente o corpo. A violência não começa no ato, mas na antecipação de sua possibilidade, que já prevê a dor e as medidas de fuga ou confronto; por isso a simbologia da opressão, que Tom carrega, antecede a sua culpa. Apesar da inocência quanto a um gesto explícito de violência física ou psicológica, o distanciamento espontâneo de Hallie é notadamente justificado, pois ele é um mentiroso irredimível – que deixa de assistir ao vídeo após afirmar que assistiria e depois assiste tendo prometido que não assistiria. A angústia de Hallie é instintiva, de resposta imediata, pois é a noção incorporada de uma correspondência entre história e vivência que formata os preparos para uma experiência social presente. O marco de transformação perceptiva, com o surgimento de um estado de alerta e de consciência coletiva, que em realidade teria sido proporcionado pelo feminismo, ao escavar uma bagagem milenar para configurar um sistema de pensamento em torno de opressões históricas – a fim de erradicá-las –, em Slender Man é oferecido com absoluta precisão temporal: o contato com o vídeo que cria uma ruptura definitiva, um antes e um depois. A correlação entre a consciência feminista e a consciência do Slender Man, que no filme ocorre por um procedimento de localização inconfundível, elabora, de modo imperativo, o anúncio de uma mudança drástica. Slender Man torna inquestionável o argumento de que o divisor de águas do antes e depois é um evento da ordem de um cataclismo irremediável. Se as cenas anteriores ao vídeo são óbvias, beirando o cafona e o caricatural, é porque são imagens de um mundo – e de uma iconografia – em decomposição, prestes a desabar. Qualquer ideia de vida que preceda o reconhecimento do Slender Man é fabular; não há como retroceder, a guinada histórica está dada, resta reconstruir e se reconstruir a partir dela.

O pessimismo é patente no filme, certamente, uma vez que todos os conflitos são marcados pela eventual superação das consequências do perigo sobre a consciência de suas causalidades, no entanto não há de que se duvidar da crença depositada nos esboços reconstrutivos. O pessimismo só é matéria-prima da ambientação emocional porque os caminhos primordiais da resistência são desacreditados pelas protagonistas. Slender Man é, logo, um filme sobre o otimismo da mudança precisamente por se dedicar à exposição de um retrato do derrotismo da descrença; a escuridão do fim, afinal, é o grito pela luz do recomeço. Quando as protagonistas vão à floresta e sentam lado a lado em sororidade, de olhos vendados, elas são unificadas por uma fé comum na batalha de resistência e, por um instante, enquanto a convicção permanece intacta, o homem sem rosto é repelido. Ele se mantém nas sombras, à espera da fresta na qual o medo se torna maior do que a força e o desespero maior do que a fé, para atacar – no caso, quando Chloe (Jaz Sinclair) se levanta e tenta fugir. Separadas, elas se tornam vítimas fáceis e é a gradativa separação – física e afetiva – do grupo, diante da crise, que consagra a derrota inevitável. Slender Man é um filme-atestado das gravidades decorrentes do abandono de soluções que ele próprio reitera e o final é de uma franqueza bruta quanto à fatalidade como único ponto de chegada possível desse abandono: Hallie desaparece ao ser absorvida por uma árvore sob o controle do homem sem rosto; ela é, literalmente, engolida pela natureza social que a oprime. A ausência de perfis psicológicos aprofundados – com personagens que existem mais em relação ao conflito do que a uma história pessoal – deflagra: não é sobre aquelas mulheres e sim sobre as mulheres.

O Slender Man, por ser uma incógnita do horror, uma figura sem face que pode vir de qualquer lugar a qualquer momento, capaz de agir sobre a ansiedade e o medo das mais variadas formas – desde a incitação da loucura, do delírio, do suicídio até a consumação da agressão física e do sequestro –, é a perfeita referência de um imaginário popular para se aproximar dos atributos cotidianos de terror específicos à experiência social feminina. O elemento identitário definidor do monstro no filme de Sylvain White é o fato de ser referido por pronomes masculinos; as protagonistas não o chamam pelo nome. A ameaça não é o Slender Man em particular, mas a figura masculina a qual ele encarna e confere um poder mítico. É um pressuposto bem direto de que, por trás do rosto sem face, há, a um só tempo, uma representação gráfica e atmosférica de um horror social muito real e contemporâneo e a sugestão de que o Slender Man poderia mesmo ser qualquer homem. Se o que difere o homem do monstro são as circunstâncias de poder, nada tão representativo de uma utopia de dominação masculina como a invencibilidade onipresente do homem sem rosto. Slender Man é, portanto, um filme não sobre um bicho-papão, mas sobre o estado limítrofe de causa e consequência de um mundo patriarcal, que se ancora na iconografia de um monstro mítico para chegar ao sobrenatural como recurso emergencial de autópsia da estatura de urgência de uma realidade sistematicamente velada e abrandecida.

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Se a sua estética do terror é regida pela densidade da constância e não pela superfície da intermitência, é porque as preocupações orbitam muito mais em torno do efeito prolongado advindo das inferências políticas da ação do que do efeito passageiro do sobressalto. Para tocar na complexidade que rodeia as soluções reiteradas, o dispositivo atmosférico é anunciado: vídeos ao vivo nos celulares acompanham a aproximação entre o monstro e suas vítimas. A imagem digital do celular é o registro da insuficiência do registro. A invisibilidade do Slender Man na captura documental esgota o olhar objetivo e factível – tipicamente machista – sobre o sofrimento feminino, pois a verdadeira presença não está no que se vê, mas no que não se vê; no que escapa à imagem, porém não ao olhar sensibilizado pela experiência com a opressão. O Slender Man surge como uma assombração virtual, imaterial – ele atravessa portas e paredes nos vídeos –, uma abstração espectral do pavor, acima de quaisquer barreiras físicas e geográficas; a busca por comprovação material das suas ações é irrelevante e incapaz de resolver os tormentos emocionais ou negar a violência, porque, em uma sociedade patriarcal, a comprovação material da violência, apenas passível de ser legitimada por meio da aprovação de um olhar machista, está fatalmente sujeita à negligência. A imagem é impotente por se esperar dela a totalidade das razões e da compreensão por trás da violência, quando, em realidade, ambas a extrapolam imensamente, o que faz com que ela esconda muito mais do que revele. Ela não formará, por si só, para o olhar machista, a empatia, a consciência e a sensibilidade que antes desse contato eram inexistentes e que são indispensáveis para o relacionamento com as questões por ela colocadas. Enquanto não houver entendimento consensual de que a violência é infinitamente maior do que a imagem da violência, não poderá haver mudança significativa.

Slender Man reafirma que para assimilar a imagem, é preciso antes desprezá-la. Quando Chloe é agarrada pelo monstro, a câmera a situa à frente de um espelho no qual não se vê nenhum reflexo que não o dela, muito embora ela continue sendo sufocada. É a imagem do além-imagem, ou mesmo da pré-imagem, quiçá da não-imagem. A verossimilhança e o reconhecimento do sofrimento só podem se efetuar por um processo de identificação com uma experiência social e emocional carente das fronteiras de uma representação mimética da violência. Pura e simplesmente, é uma questão de ética: trata-se de acreditar mais naquela mulher do que nas imagens que estão sendo construídas sobre ela. Se a violência precisa passar pela imagem para se tornar realidade, então, ao espectador é posta uma escolha moral da qual não se pode esquivar: ter fé em Chloe ou ter fé na imagem.

Deixe a imagem morrer.


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