O Rio nos Pertence, de Ricardo Pretti (Brasil, 2013)
fevereiro 11, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade
O horror do pertencimento
por Fábio Andrade
“Rio, seu mar, praia sem fim. Rio, você foi feito pra mim”.
Tom Jobim, “Samba do Avião”
Quando, quatro meses atrás, publiquei na Cinética um artigo de título “Com violência – Cinema em tempo de Brasil”, no qual tratava de certa desconexão do cinema brasileiro com o momento político do país, e da incapacidade da maior parte dos filmes em antecipar um certo estado de ebulição bastante sensível até aquele momento (e, em realidade, sua responsabilidade por intimidar, mesmo que inconscientemente, o derramamento da água), ainda não havia assistido a O Rio nos Pertence, de Ricardo Pretti. A oportunidade de contato com o filme veio praticamente um ano após seu lançamento original, no começo de 2013, no Festival de Roterdã. Bons filmes, naturalmente, não perdem a validade por conta de um ano. As proposições críticas, porém, são limitadas a partir da amostragem de que se configuram os pressupostos… são reflexões que torcemos para que sejam úteis, a despeito de sua origem necessariamente incompleta e quase acidental. Se eu já tivesse visto O Rio nos Pertence em Outubro, é seguro que teria reservado ao filme no mínimo um grande espaço de exceção dentro do texto.
É preciso, de partida, devolver as coisas ao contexto original e evitar, mais uma vez, a tentação de se tornar profeta de fato consumado – atividade que ocasionalmente me parece necessária, mas que nunca desejei como profissão de fé. De fato, O Rio nos Pertence – como, a rigor, todos os filmes tratados no artigo de Outubro de 2013 – antecede as manifestações de Junho e tudo que veio depois delas; logo, ele não pode ser encarado como uma resposta. Levar isso em consideração excessiva, porém, é relegar ao cinema um caráter meramente reativo e isolar 2013 como um momento de súbita exceção, enquanto, em realidade, os eventos se sucediam como eclosão (surpreendente, de fato, mas só em determinada medida) de uma conjuntura e de uma estrutura anterior que nunca fez muito esforço para se esconder. Com efeito, um dos grandes valores do filme de Ricardo Pretti está em não só dar conta dessa conjuntura e dessa estrutura que antecipam e condicionam o contemporâneo – de encontrar imagens que lhes sejam justas – mas também em reconectá-las a raízes históricas, sociais e culturais da história da própria cidade. A tragédia carioca é uma condição extemporânea, o que significa que um filme franco sobre a cidade será sempre um filme de assombrações.
O deslocamento em relação ao contexto, porém, periga se tornar um interessante carteado de pistas falsas. A começar pelo título, O Rio nos Pertence pode a princípio parecer ligado a uma ideia de reocupação da cidade bastante em voga no vernáculo pós-Occupy Wall Street e não muito distante das palavras de ordem mais próximas da natureza mesma das manifestações, os bordões que tentam fixar os movimentos sísmicos da Pólis. Fosse este o caso – como é, com exceção de alguns planos e procedimentos específicos, o do filme posterior de Ricardo Pretti, O Porto (2013), dirigido em conjunto com Clarissa Campolina, Julia de Simone e Luiz Pretti -, o filme traria para dentro da arte uma tentativa de articulação com uma política que está, em realidade, fora dela, e seguiria em seu manco farfalhar, arrastando os pés de barro do panfleto puro e simples, do kitsch, da arte que se quer apenas meio para uma ideologia que ela se contenta em veicular – algo mais claro em Tiradentes em um filme como Brasil (2014), de Aly Muritiba. Mas “a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de…” (Rancière). O longa de Ricardo Pretti passa longe de qualquer apreensão simplificada do potencial político da arte, e o faz principalmente por reconhecer que sua possibilidade de intervenção no mundo se dá, antes de tudo, pela transmissão íntima da sensibilidade e do toque do artista no próprio material que dá origem à obra; da possibilidade de o micro (a relação do artista com o mundo) rebater e iluminar o macro.
Para imprimir essa experiência de mundo, O Rio nos Pertence se firma em um regime de inversões. Antes de ser um clamor à reocupação das ruas diante de um processo disseminado de gentrificação – tema central de O Porto – que já é fenômeno conhecido e constante na história da cidade, a sensação de “pertencimento” no filme é sobretudo uma maldição, um mau agouro que surge em muros e cartões postais e que anuncia o desfecho de filme de horror que virá inevitavelmente em seguida. Pertencer, aqui, é uma espécie de possessão, mais do que de posse. O Rio nos Pertence começa fechado – um casal fetificado, feito gêmeos bivitelinos em um útero escuro – e distante – com uma relação falada em inglês, em um país qualquer, sem traço distintivo que rebata nas paredes de um apartamento sem janelas – com uma história de amor estrangeiro – de exílio, portanto – fadada ao fracasso. “Retornar é inevitável”, o filme parece dizer sem lamentar, e poderíamos afirmar que Marina (Leandra Leal) se vê obrigada a retornar à cidade, não fosse a verdade do filme muito mais cruel: em realidade, Marina nunca conseguiu partir.
A angústia, aqui, é inflamação de foro íntimo: como pode o Rio nos pertencer se, no fundo, ele nunca pertenceu a mim? O Rio nos Pertence não será nosso grito de guerra, bálsamo de ódio, lamento, catarse ou redenção, pois O Rio nos Pertence não nos pertence. Se há um sentimento que perpassa todo o filme, esse sentimento é o luto. Diante do luto, cabe recolhimento, respeito e silêncio. À crítica, porém, resta o consolo de que a palavra escrita é, também, uma forma militante de silêncio. E se o Rio de Janeiro hoje passa a impressão de ser um cadáver indigente que esfriou sem ganhar um obituário, resta olhar para as paisagens quase glaciais do filme – ao mesmo tempo tão próximas e tão distantes do Recife Frio (2009) de Kleber Mendonça Filho – e perceber que, mais do que uma inversão anedótica da cara de cartão-postal que a cidade oferece ostensivamente a cada agressivo dia de sol, O Rio nos Pertence parece muito mais próximo dos vermes sob a cerca branca de Veludo Azul (1986), de David Lynch, da loucura subcutânea sob a tez de Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo (1965), de Polanski, da cidade em combustão de Viver e Morrer em Los Angeles (1985), de William Friedkin. Importa menos a cidade de fato, e mais como a percepção do sujeito se projeta sobre ela – como a nuvem que cobre a paisagem na sequência final. Do caráter extremamente pessoal que atravessa todo o filme (e para perceber isso não é necessário saber que Ricardo Pretti, um dos expoentes da nova cena de cinema cearense, não só mora hoje no Rio, como também nasceu e cresceu na cidade), brota uma iconografia afetiva pervertida, deformada, que, embora partilhável, é articulável apenas dentro do universo do próprio filme. É uma iconografia que se alimenta da cidade concreta para transtorná-la em ficção. E não seria este suposto “outro Rio” – enfumaçado, acinzentado, envolto em uma pesada nuvem de desgraça – uma resposta apropriada a um projeto histórico de cidade que tenta suprimir sua concretude para oferecê-la como ficção? O Rio nos Pertence não adere a essa lógica, mas apenas reafirma a necessidade da lembrança de que a ficção é, também, terreno fértil para o horror.
Surge, daí, uma série (e não um inventário) de traduções precisas – ancorada com segurança no extraordinário trabalho de fotografia de Ivo Lopes Araújo, com quem Ricardo já havia realizado o excelente A Amiga Americana (2009) –, mesmo que por vezes desequilibradas (sobretudo no uso da música, eficiente mas demasiado próxima, demasiado concreta), do jogo de atração e repulsa entre figura e fundo, ser e paisagem, específico e geral, indivíduo e coletivo. E se essa relação é perversamente ambígua, fica a tradução – perfeita, pois literal – desse sentimento em uma caminhada em reverse em direção ao mar, dos passos que, por mais que tentem se afastar, são inevitavelmente traídos pelo magnetismo de seu próprio fim. Fica a paisagem encoberta pelos jornais que cobrem toda a extensão de uma janela (“com vista para o mar”, diria o corretor de imóveis) e jogam sobre o quarto vazio a instabilidade de um azul escuro que não parece ter lugar na palheta de cores da cidade. E, mais do que se eximir e apontar o dedo, O Rio nos Pertence se implica nesse mesmo processo: o uso de imagens da paisagem carioca ainda virgem e a aproximação com os planos de cartão-postal (do inferno, que seja) feitos pelo próprio filme o coloca como mais uma engrenagem em uma roda de sacrifícios da parte pelo todo, do momento pela História, do indivíduo pelo coletivo.
Porém, é justamente dessa contaminação do comum pelo indivíduo – de “uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão” (Rancière) – que emana a força do filme. Não à toa, Ricardo Pretti encontra força maior quando se distancia do protocolo que lhe era habitual, das personagens perdidas em planos gerais – comum a Estrada para Ythaca (2010) e Os Monstros (2011), mas em verdade já presente em um curta como Às Vezes é Melhor Lavar a Pia do que a Louça ou Simplesmente Sabiaguaba (2006) – e mergulha em uma decupagem mais variada e incisiva, mais próxima de Kyioshi Kurosawa do que da versão simplificada (e por vezes potente) de João César Monteiro dos outros filmes. Se Estrada para Ythaca, Os Monstros e No Lugar Errado (2012) eram feitos propositivamente coletivos, não deixa de ser curioso que este O Rio nos Pertence – sem dúvida um filme que parte de enorme sentimento de solidão, de quase insularidade – pareça menos preso a um ideal de autoria pregressa, mais receptivo aos caminhos que a matéria que está diante da câmera lhe oferece e, ao mesmo tempo, solicita. Por outro lado, se os filmes dos Pretti+Parente terminavam no beco sem saída retórico de serem todos “discursos sobre o método” – filmes que tematizavam o “como”, demandando do mundo certa postura de realização, e ao mesmo tempo abrindo mão de ser a prática dessa mesma postura -, aqui, Ricardo Pretti parece enfim encontrar uma matéria à altura da forma, um tema – se quisermos – que demanda um ataque frontal e diante do qual os “discursos sobre o método” não servem como escudo ou sistema de auto-preservação (como todos sabemos, as assombrações são capazes de atravessar paredes).
Para isso, o filme parece buscar uma chave mais propriamente expressionista, moldando e deformando o espaço concreto de forma a provocar alguns curtos-circuitos e contradições entre o que é externo e o que é interno às personagens (e, em última instância, ao realizador), sabendo que um não só não existe sem o outro, mas de fato pode condicionar a forma como ele existe (novamente, a maldição). O gesto do artista é o de delimitar o espaço sensível, os fatores em jogo, e provocar pequenas reações químicas entre o universo real e o ficcional, entre o Rio “de mentira” e o Rio “de verdade” – pois, na arte, o Rio “de mentira” pode ser uma expressão mais verdadeira da experiência concreta da cidade do que aquele que parece ser “de verdade”. Se, no mundo concreto, a perversão está em cruzar a fronteira, em ambicionar apagar o passado e construir um projeto de futuro como se fosse ficção, é pela via oposta que a arte encontra possibilidade de eloquência, e mesmo de efetividade, política. “Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política” (Rancière). Enquanto diversos filmes cariocas recentes fugiam do Pão de Açúcar e do Corcovado como o diabo foge da cruz, O Rio nos Pertence em nenhum momento nega essa natureza de cartão-postal da paisagem da cidade, tanto quanto localiza precisamente nesta natureza a causa de sua ruína.
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