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Entre ver e ser visto

O cinema guardou, ao longo de sua história, uma relação ambígua com sua pulsão escópica. O cinematógrafo – arte da ação = imprimir gestos, movimentos, ritmos num espaço-tempo determinado pelo próprio ato da impressão – tinha na curiosidade do olho-câmera uma espécie de ponto de atrito, usado tanto como metáfora de si quanto como motivos do olhar pela fechadura, adentrar espaços interditados ao público ou explorar dimensões da vida cotidiana inapreensíveis por diferentes razões. Porém, ao mesmo tempo que o cinema anedotiza o mundo, aguçando nosso voyeurismo pelo espetáculo da vida moderna, ele se exibe para nós, consciente de sua dimensão como agente e objeto do olhar: não raro, vemos olhares para a câmera nas vistas Lumière, atividades realizadas visando à revelação para quem vê (como a famosa refeição do bebê) ou mesmo encenações que ativamente atiçam o voyeur ao se expor para a câmera. Olhar e ser olhado: dinâmica diabólica moderna impregnada na Olympia, de Edouard Manet. O quadro cinematográfico vai sintetizar, potencializar, problematizar esse jogo. E esse complexo olhar-olhado será motivo do engano mortal hitchcockiano, do jogo de difusão do real em Welles, da perversidade em Lang. O cinema, não mais articulação de potências e recortes de mundos possíveis, mas cosmologia particular pela escritura de espaços e tempos até então impossíveis – uma arte da imaginação –, perturba essa dinâmica com a promessa voyeurística da quarta parede, olhar sem ser olhado: aquilo que foi naturalizado no espetáculo cinematográfico a partir das condições da sala escura de exibição e da projeção escondida em uma cabine atrás do espectador é, na verdade, uma construção dolorosa de uma não identidade, o público, o compartilhado pela coletividade que acompanha imagens de um mundo possível numa tela em branco, como um sono profundo antes do apocalipse, ao mesmo tempo que faz a experiência de cada um desses espectadores se amalgamar com o narrado na tela até o limite de criar um imaginário comum – ver um filme é, num golpe só, descoberta e amputação do que se experiencia e se partilha. É dessa (falsa) promessa que parte Os Olhos sem Rosto. A obra-prima de Georges Franju articula-se e reconfigura-se pela dimensão do olhar como um campo de possibilidades atmosféricas da ficção. Uma mulher dirige aflita por uma estrada escura, com árvores retorcidas brigando com o breu da banlieu de Paris. Ela olha pelo retrovisor para algo no banco de trás: uma pessoa, envolta num sobretudo, com um chapéu cobrindo seu rosto. Essa pessoa no banco de trás, por sua vez, não olha de volta. Mais uma vez o plano do retrovisor, mostrando o corpo inerte, montado com o olhar apreensivo da motorista, desvela uma relação entre o observador e o objeto de seu olhar. Logo percebemos que se trata apenas de um corpo morto. A faculdade de “olhar” não é apenas um exercício de curiosidade, é uma prova de vida. Vejo, logo existo.

É pelo olhar que chegamos a Christiane (Édith Scob). Primeiro, seu pai, dr. Génessier (Pierre Brasseur), um importante médico e pesquisador, é avisado da morte de sua filha. Ele vai ao legista para reconhecer o corpo e confirmar sua identidade. Regressado a sua casa, acompanhamos ele caminhar por diversos cômodos, acompanhando o trajeto que o leva até o quarto de Christiane, onde descobrimos toda a verdade: a garota está viva, e sua “morte” não passa de um golpe do médico para continuar sua atual pesquisa. Christiane teve seu rosto completamente lacerado por um acidente de carro causado pelo pai, que agora busca uma forma de restituir um rosto para a filha por meio de um transplante facial. Com a ajuda de Louise (Alida Valli), a motorista vista na primeira cena, eles raptam jovens estudantes loiras de olhos azuis em Paris para roubar-lhes o rosto e devolver a face aos olhos de Christiane, vivos dentro da máscara que utiliza para não revelar seu rosto morto. Génessier tem a ideia fixa de devolver à filha o rosto – a possibilidade de ser vista –; mas Christiane, presa na mansão isolada da família, quer ver. O impulso por varrer o mundo com os olhos nos leva a ver, pela primeira vez, o rosto mutilado de Christiane, ao assumirmos o ponto de vista de uma jovem raptada que, ao mesmo tempo, é objeto da curiosidade da personagem principal.

Assim, Os Olhos sem Rosto tem na defasagem entre o ato de ver e ser visto seu mote principal. Christiane percorre os espaços de sua casa procurando o laboratório do pai ao mesmo tempo que se esquiva deste e de sua assistente para ver a moça da vez que lhe cederá o rosto; Louise segue garotas pelas ruas de Paris, como numa pesquisa de campo para as possíveis vítimas de Génessier, que, por sua vez, figura pública, observada por toda a plateia na palestra que oferece sobre suas pesquisas, realiza experiências proibidas quando recluso em seu laboratório. O filme delineia a divisão entre os espaços de visibilidade que criam o jogo de suspense que segura a trama do filme. Afinal, Os olhos sem rosto é, à primeira vista, um filme de horror sobre um cientista louco, e esse gênero sustenta boa parte de seus efeitos primevos na curiosidade do espectador em olhar e a negação dessa visão – do sobrenatural, do monstruoso, do abjeto. Franju utiliza-se disso, mas transforma a polaridade: o espectador é o tempo todo estimulado a ver, penetrar nos espaços junto com as personagens, a observar as ações em sua integridade. No mais próximo que podemos chamar de uma “cena de horror”, acompanhamos uma descrição minuciosa pela câmera dos procedimentos de Génessier em ação no laboratório em mais uma tentativa de transplantar um rosto. São gestos simples e, provavelmente, comuns a uma cirurgia: a marcação da área a ser cortada, o manuseio do bisturi, o corrimento do sangue após a secção. Mostradas com tamanha secura, essas imagens procedurais, quase realistas, ganham uma dimensão extraordinária. Mas o extraordinário da situação de Christiane não está no horrendo de seu rosto ou no incômodo da máscara que nega a visão, mas na banalidade da situação. Christiane não pode encontrar seu namorado, sair de casa ou mesmo contemplar a si própria, já que, para não decepcionar sua filha, Génessier retirou todos os espelhos da casa. Todo pai protetor pode ser um Génessier; toda filha colocada no lugar de uma boneca de porcelana é uma potencial Christiane.

Então, as articulações e reconfigurações em torno do motivo do olhar-olhado de Os Olhos sem Rosto resvalam na questão da identidade: quem olha, quem é olhado e, principalmente, como olha ou é olhado. Desde a simulação da morte de Christiane, apagando sua identidade cujo rosto esfacelado é a imagem pública, até o ato de buscar uma nova cara para Christiane – e, portanto uma nova vida, novo nome, novos documentos –, a identidade é investigada em suas dimensões de superfície – rostos, aparências, reflexos, máscaras – e de profundidade – o âmbito privado revelando a vida escondida dos olhos públicos, o rosto coberto pela máscara, a cicatriz escondida pelo colar de pérolas. O tour de force entre Génessier e Christiane se dá no campo da identidade: o pai desejoso de dar à filha uma nova face, que represente uma nova vida; a filha vítima da ideia fixa do pai, escondida sob uma máscara que aprisiona a personalidade da qual ela não está disposta a abrir mão. Desse conflito, emerge um filme que não se enquadra simplesmente no filme fantástico, já que nada é propriamente sobrenatural, ou no horror, cuja promessa de medo e angústia não se cumpre propriamente pela surpresa, mas pelo comum; muito menos um melodrama trágico de personagens. Os olhos sem rosto é, nesse sentido, uma grande defesa da identidade como personalidade: Christiane é apartada de suas particularidades, das idiossincrasias e experiências que constituem uma existência singular que não pode ser reconstituída por qualquer superfície. Não me parece à toa que dois filmes recentes lidando com a(s) identidade(s) reverenciem de alguma forma a obra de Franju: em Holy Motors, de Leos Carax, o protagonista interpretado por Denis Lavant transita por diversas personas, guiado em uma limusine por uma motorista interpretada por Édith Scob (ao final, ela estaciona o carro na garagem e coloca a máscara de Christiane antes de sair para o mundo); já Corra!, de Jordan Peele, retoma o mote do “cientista louco” para desbravar a adequação de singularidades a uma personalidade predeterminada por estruturas de poder históricas, encontrando na disparidade entre persona pública e âmbito privado um denominador comum de horror. Nesses filmes não há cientista louco ou monstro do esgoto, apenas uma família branca tradicional tentando perpetuar seus privilégios culturalmente persistentes e um homem assumindo papéis da vida comum numa grande cidade: o cotidiano, o corriqueiro, o comum são o rosto implantado do abjeto. Como em Os Olhos sem Rosto a dinâmica fundamental dessa dolorosa constituição de uma identidade singular não se resume a quem vê e quem é visto, se complexificando na brecha entre olho e rosto: a condição de Christiane é uma fabulação em torno da situação de um olhar particular, que não se resume a simplesmente receber uma superfície outra que esconda sua personalidade em uma identidade estranha a si própria (o corpo inquieto rejeita a face transplantada). O olho sem rosto (metáfora da câmera, do/a cineasta?) pode ser assustador se encarado de frente, sem máscaras: ao mesmo tempo que se desvela para o mundo, ele o revela.


Neste mês, a Sessão Cinética exibe Os Olhos sem Rosto (1960), de Georges Franju, nos dias 12 de Abril, no IMS Rio, às 19h30, e 26 de Abril, no IMS Paulista, às 18h. Após as sessões, haverá debates com os críticos da revista e convidados/as.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Os Olhos sem Rosto será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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