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Desterrar, irromper

Diante da terra, perfurada e remexida, como contemplar o horizonte e o desconhecido? Ali, onde o céu já não é capaz de englobar uma coletividade, como se dava em boa parte dos faroestes norte-americanos, como ir ao encontro de uma comunidade? Western é um filme que reverbera latências, que opera nos intervalos, entre a precariedade das fronteiras, das formas de vizinhança e da comunicação. Não basta, então, que o herói solitário de Valeska Grisebach seja apenas um forasteiro alemão, um pistoleiro envelhecido e melancólico que alcança um pequeno vilarejo no interior da Bulgária a trabalho. É preciso que ele se identifique, ainda que dubiamente, junto aos soldados vindos de qualquer lugar, aos homens apátridas e sem identidade que atuam junto ao grupo de mercenários da Legião Estrangeira, para que seja mesmo impossível forjar a continuidade de uma nação, mesmo quando se trata de hastear uma bandeira. Ao invés de revolver a terra, “um pouco como se deve reconstruir uma estrada” (para dizer como Deleuze sobre os heróis dos faroestes americanos), Western propõe-se a cavar buracos. Junto aos corpos e rostos de atores não-profissionais e aos espaços no interior da Bulgária, próximos à fronteira com a Grécia, o filme é irrigado por questões políticas urgentes, como as dinâmicas migratórias contemporâneas, as disputas territoriais e a xenofobia. No entanto, ele não se encarrega nem de tomá-las como horizonte de perspectiva, nem como mote para dar lugar a soluções precárias. Por vezes, é como se as experiências históricas o permeassem apenas o suficiente para apontar suas linhas de força para fora. Referências à presença alemã no território búlgaro, assim como às relações da Bulgária com a Grécia ou com o comunismo são convocadas de modo muito sutil. Podemos lembrar, por exemplo, um estranho lugar encontrado pelo protagonista e seus colegas alemães no meio de um campo já de noite, que eles não conseguem dizer se trata-se de um bunker ou um estábulo. Um signo potente da guerra e de um vestígio histórico é capaz de se confundir com outro absolutamente banal. O mundo, assim, mobiliza delicadamente o filme e lhe confere uma espessura própria.

Ao adentrar no universo operário dos homens alemães, que não acolhe a presença das mulheres (a não ser que sob a forma do assédio e do galanteio), Valeska Grisebach retrata as dinâmicas masculinas do trabalho e da vida, seus enfrentamentos corporais e disputas fálicas, mas também a fraternidade nas refeições coletivas, nas pequenas brincadeiras, no belo gesto de um operário cuidar, por exemplo, dos cabelos do outro. O filme se ocupa, de modo geral, de formas de dualidade, às vezes mais severas, às vezes mais amenas. Como essa que se situa entre a brutalidade e a delicadeza da vida dos operários – partilhada também pelos homens búlgaros. Ainda que as representações de cada grupo, entre locais e estrangeiros, se componham de modo bastante particular, não parece haver uma oposição radical entre eles. Afinal, no interior da hostilidade alemã, há momentos de fraternidade; e, no interior da fraternidade búlgara, há também momentos hostis. Não que o filme tenda a produzir um tipo de equilíbrio entre as representações, operando seus contrapesos. Há, pelo contrário, uma assimetria de forças muito bem representada e, por vezes, esse vilarejo no interior da Bulgária aparenta ser coeso demais, quase idealizado, ao passo que a representação dos alemães parece, de antemão, mais crítica.

Contra a ameaça possível de idealizar o vilarejo e seu provincianismo harmônico, ou caricaturar a barbaridade dos operários alemães que precisam erguer a bandeira de sua nação pátria e produzir afrontas contra os moradores locais, Grisebach suspende as certezas de um lado e de outro, produz nuances, interpõe lacunas, dá lugar a traduções mal feitas, apresenta problemas de comunicação. Em meio à suspensão, o filme não constrói delimitações seguras entre os mundos dos alemães e dos búlgaros, e não propõe ser Meinhard (Meinhard Neumann) uma figura mediadora entre os dois. A questão, talvez, seja abordar suas dualidades um pouco como intervalos, interessando menos a disposição frontal de um mundo contra o outro, mas daquilo que dá entre os dois. Se Western aborda, então, confrontos e antagonismos, não é por esperar nem um tipo de reconciliação possível, nem que uma parte venha, de fato, devorar a outra (lembrando a fala do protagonista que diz: “no mundo, ou você come ou você é comido”). O interesse não é por um embate que resulte em uma dessas formas de fusão. É, antes, um encontro das diferenças que, nem por isso, torna-se menos violento.

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As caracterizações física e expressiva de Meinhard Neumann, ator que dá corpo ao protagonista homônimo, são fundamentais para a força e construção cênica do filme, e revela um primoroso trabalho junto aos atores não-profissionais convocados por Grisebach. O corpo mirrado que encena um operário da construção civil e, supostamente, um ex-militar, já com as costelas aparentes e sem músculos, contrasta com a precisão de seus gestos e movimentos, com a densidade do seu olhar e a dura expressão de seu rosto, num misto de força e fragilidade que se torna matéria sensível do próprio filme.

A aparição desse rosto, resiliente e envelhecido, diante do horizonte convoca também outras imagens, como metáforas sutis que endereçam algumas questões. Em certo momento, por exemplo, no alto de uma montanha, uma pedra aparenta ter a forma do rosto de um homem a contemplar o céu. Diante da semelhança, apontada pelos personagens, vemos essa montanha em um plano um pouco mais fechado. “Lá em cima há uma energia boa para lutar”, diz Adrian (Syuleyman Alilov Letifov), o búlgaro que se torna amigo de Meinhard. Em outra cena, ele constrói um pequeno muro de pedras, colocando-as lado a lado e acertando suas irregularidades com um martelo: “as pedras também têm uma face”. Ora, como fazer, então, para que as forças do mundo venham atravessar um rosto, moldá-lo sob a força de um braço ou da simples passagem do tempo? Como exceder um gesto contemplativo, mobilizar sua energia de luta, engajar-se nas formas de vizinhança de um território?

Como lembra Deleuze – em sua bela análise sobre os faroestes publicado em A Imagem-Movimento – em Rastros de Ódio (1956), de John Ford, um dos personagens dizia sobre a América: “é um grande país, a única coisa maior é o céu”, apontando para a possibilidade de acolhimento de um todo, vislumbrado na aparição do horizonte. É preciso, claro, ter em vista as diferenças históricas e geográficas entre a amplitude continental do território norte-americano e sua expansão para o Oeste, e a limitação geográfica dos estados-nações europeus (onde as disputas pelas fronteiras ganha uma outra complexidade e, muitas vezes, atravessa décadas de conflitos). De todo modo, se o reestabelecimento da ordem e de uma estabilidade comprometida, assim como os elementos de formação e fortalecimento de uma nação mobilizam boa parte das narrativas dos faroestes norte-americanos, em Western, a aparição de seus signos produz deslocamentos – talvez, justamente pelas fraturas latentes no interior dos territórios na Europa ocidental e oriental, e pelos traumas históricos e coletivos a que a emergência do nacionalismo alemão, por exemplo, já deu lugar.

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A referência ao gênero cinematográfico não se dá apenas a partir de uma indicação certeira, mas não taxativa, do título do filme. Estão lá alguns de seus elementos-chave: a chegada dos forasteiros, a comunidade interiorana, a presença do pistoleiro, os duelos, os cavalos, as belas paisagens… No entanto, o modo com que o filme joga com eles lança a impossibilidade de abranger qualquer totalidade comum. A unidade de uma paisagem e de um horizonte inexiste, ainda que a recorrência de sua aparição atravesse todo o filme. Somos apresentados a um herói melancólico e desterrado, cuja nacionalidade ora se esvaece, ora se reforça. Enquanto alguns anseiam pelo fim do trabalho e pelo retorno a seus lares, ele diz: “nada me prende em casa, eu não tenho casa”. No entanto, não se trata nem de reinventar a casa familiar, nem de se submeter ao fechamento de uma nação. De certo modo, não é com a estabilidade e a coesão do céu que Western joga: é com a fragilidade das rochas, entre a pedreira de Adrian, que as implode, e a máquina usada para construir as bases da hidrelétrica de Vincent (Reinhardt Wetrek), o líder dos operários alemães, que as perfura. Com um vigoroso trabalho da dramaturgia, dos enquadramentos e da montagem, Grisebach produz uma cena pronta para ser irrompida: a construção de uma atmosfera tensa parece multiplicar ameaças e, a qualquer momento, algo terrível ou grandioso parece prestes a acontecer. Como quando, em um território estrangeiro, um corpo se lança junto a outro no escuro – essa imagem simples, mas muito simbólica, acionada pelo filme em diferentes momentos.

O curioso talvez seja que a Legião Estrangeira Francesa, em que Meinhard se projeta, ainda que seja para reinventar sua identidade em um novo país, é aparentemente admirada pelos personagens que tomam o protagonista, a partir daí, quase como um herói, interessados no número de pessoas que ele executou e quantas patentes foram acumuladas, o que Meinhard se recusa a responder, dizendo que a morte é mais complicada que se pode imaginar. A corporação que tem em seu código de honra, o seguinte princípio: “cada legionário é seu irmão de arma seja qual for a sua nacionalidade, a sua raça, a sua religião”, é a mesma que atuou fortemente para reprimir lutas anti-colonialistas em muitos lugares do mundo, em direção ao fortalecimento das soberanias nacionais. Em meio às democracias liberais, a necessidade de erguer muros e delimitar bem as fronteiras tem alcançado um paroxismo aterrador, que se alimenta, cada vez mais, do desejo por “uma comunidade sem estrangeiro”, para lembrar a formulação de Achille Mbembe no livro Políticas da Inimizade, comentado pelo ativista Mamadou Ba em um texto de sua autoria cujo título nos devolve a pergunta: “como curar o desejo de apartheid?”. Se as figuras do imigrante e do refugiado têm atravessado questões políticas vitais, atualizando os signos e as formas de segregações, o filme de Grisebach trata de abrir uma brecha para pensar a possibilidade de um futuro partilhado em comum, mesmo que seja ali, onde se constituem os mundos dos homens brancos europeus. O gesto político de Western se dirige ao que há de mais potente nas fronteiras: um modo de aproximação que opera, a um só tempo, formas de junção e disjunção, sem apartar as diferenças, nem subsumi-las em uma unidade.


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