A montagem de 15h17 – Trem para Paris reforça sempre a ideia de destino final, um funil que aponta para o encontro inevitável no trem do título entre os três protagonistas e o terrorista do ISIS que virão a desarmar. Algo reforçado pela opção por deixar que as primeiras etapas deste evento fatídico se desenrolem via flashforwards interrompendo periodicamente a progressão narrativa entre os blocos centrais da ação. Assim como no pouso forçado de Sully, Eastwood volta aqui seu foco para um evento dramático real que transcorre em questão de poucos minutos. Se no filme anterior se dilatava o acontecimento retomando-o constantemente e dividindo o olhar entre o piloto-herói e todas as outras pessoas que de alguma forma participaram do pouso, aqui o fato é um destino final de uma ficção de formação. A ideia de destino é reforçada inclusive na maneira em que o texto sublinha os eventos que levam os protagonistas ao trem e as várias oportunidades que eles têm de mudar o rumo de suas ações.
A este destino inevitável que a montagem e o texto emprestam ao filme, contrapõe-se a banalidade das imagens. Se desde que Tom Stern assumiu a direção de fotografia dos filmes de Eastwood em 2002, reforçou-se ainda mais um gosto pela imagem rebuscada, um jogo de claro e escuro, um clima crepuscular e uma concentração que reforçava o desejo do diretor de se vender como o último grande cineasta americano, nada pode estar mais distante deste 15h17. É o filme mais simples e direto da carreira de Eastwood, com suas imagens esvaziadas de qualquer adorno. São planos transparentes, numa redução ao mínimo que é parte fundamental da estratégia do filme. O único conceito que lhe resta é justamente a presença dos três rapazes representando a si próprios e o despojamento completo com que são apresentados. O terceiro ato que mostra os amigos de férias na Europa é chocante em como nos desarma na sua simplicidade. O Instagram é invocado muitas vezes ao longo do filme e o que vemos nestas sequências não está muito distante do material de algum stories de férias, pau de selfie e tudo mais. Não fosse o esforço mais demarcado da decupagem, poderia se imaginar que Eastwood estaria a reorganizar material achado como num Pacific americano.
Este encontro entre a ligeirice do que se coloca em cena e a força motriz da narrativa é o princípio que organiza a 15h17. Estamos afinal num filme sobre a ideia do “excepcional” americano. O Destino Manifesto que justificou a barbárie supremacista da corrida ao Oeste reconfigurado em termos contemporâneos e mundiais. Muito do incômodo que o filme provoca é da forma como este olhar sobre o mundo é exposto ao olho nu sem mediações ou distanciamentos. Compreensível dada a configuração da geopolítica mundial atual, mas o fascinante aqui é o ruído que este encontro diz sobre ele, do confronto entre o banal e o excepcional, entre o momento de heroísmo e o acordar de ressaca após a farra da noite anterior em Amsterdã e pensar “caralho não acredito que dancei no poste no palco ontem”. O filme todo opera no sentindo de esvaziar boa parte da ação (às vezes em detrimento de sua força dramática: o primeiro ato com as crianças se arrasta bastante por conta disso). O que sobra nesse esvaziamento são alguns poucos marcos culturais: a igreja, o exército, Hollywood. O cinema está lá o tempo todo seja nas referências aos próprios filmes de Eastwood ou como a visita ao coliseu é mediada por lembranças de Gladiador. Ou mesmo do tom derrogatório com o qual se referem recorrentemente a Paris, reforçando mitificações dos americanos quanto aos franceses, a mesma França que afinal sempre foi muito mais tolerante com Eastwood-artista do que seu país de origem.
Não se trata de imaginar Clint Eastwood como algum secreto grande crítico do ideário americano, mas reconhecer no seu olhar o espaço para observação ampla das suas idiossincrasias. Quando, por exemplo, após o confronto do trem, observamos o protagonista exausto e ferido a relembrar de quando garoto rezava para que Deus lhe permitisse servir como “seu instrumento de paz”, é impossível não pensar que este destino final se deu num confronto com um terrorista islâmico que provavelmente se imaginava-se também um instrumento de Deus. De fato, um dos aspectos mais fascinantes de 15h17 é a forma como ele promove o encontro entre cristianismo e militarismo americano como ideais que se reforçam mutualmente. Há algo disso também no recente Até o Último Homem, de Mel Gibson, mas ali antes de mais nada essas forças existiam para animar a violência masoquista do autor. Em 15h17, elas são uma forma de ver e estar no mundo, potencialmente assustadora (quantas vidas já foram desperdiçadas para que americanos brincassem de instrumentos de paz divina?), mas exposta com uma clareza rara. Afinal, o que este mandato divino acarreta nos dias de hoje? É essa pergunta que o filme reforça repetidas vezes.
Há uma coincidência de que assim como Lady Bird, de Greta Gerwig, 15h17 se passe, nas suas sequencias americanas, em Sacramento. São filmes muito parecidos, ambos animados por esse desejo do “excepcional” e levando à mesma conclusão: é no cinema, no estatuto da imagem contemporânea que este destino manifestado do século XXI se completa. Em Lady Bird, é no nosso conhecimento extra-filme de que a obra é parcialmente autobiográfica – e, portanto, a garota que sai de Sacramento para ingressar na escola de arte em Nova York vai depois virar atriz de sucesso com cacife e talento para fazer este filme – que se reveste esse caráter excepcional, para além do relato de formação e revolta/paz com as raízes que constitui a narrativa. Em 15h17, seu primo republicano, os heróis na vida real Stone, Sadler e Skarlatos vão poder ser também heróis de Hollywood com o mito maior Clint Eastwood por traz das câmeras. Não basta o heroísmo, não basta a certeza de que a vida tem um significado maior, assim como não basta o talento de Lady Bird: é ali na imagem que vemos que este destino maior pode por fim se resolver. Ambas as narrativas da classe média trabalhadora americana apontam a mobilidade social contemporânea por este privilégio de controle da mitificação da própria imagem. Se o sucesso na conquista do Oeste se mediria em ouro ou gado, nas posses que eles permitiam, o sucesso do destino manifestado contemporâneo é de ter Clint Eastwood a mão para dirigir o mais caro e elaborado stories de instagram que se tem notícia. Se o Destino Manifesto na expansão americana se justificava através de um pretenso pacto civilizatório, agora ele é uma expansão do eu.
Tudo se resolve no corpo desta imagem esvaziada mencionada lá no começo. É fascinante pensar o que o estatuto da ficção de 15h17 propõe: uma ficção frágil sempre à beira da auto-sabotagem. Eastwood optou por rechear o filme de atores conhecidos pelo trabalho em comédias, o que sempre adiciona um elemento de distanciamento a mais no que vemos. A presença de Stone, Sadler e Skarlatos não serve para reforçar a autenticidade das imagens como poderíamos imaginar pelas convenções, mas seu artificio. Estamos muito mais perto de Serras da Desordem do que Gabriel e a Montanha, mas numa versão americana que acredita no ato de narrar mesmo quando puxa sua ficção rumo ao máximo de esgarçamento. A ficção acredita por completo neste destino manifesto enquanto o artesanato das imagens aponta para seu limite. Fiquemos com Sganzerla: “A “câmera” realiza, então, um trabalho difícil: o esvaziamento do heroísmo das personagens. São esvaziadas de qualquer inteligência, de moral, de psicologia, de sociologia, de utilitarismo, de dependência ao espaço e ao tempo etc.; o que subsiste é a visão pura delas. As personagens de Hatari!, de Howard Hawks, são, realmente, heróis vazios.“ Ao filme de Eastwood não cabe resolver suas contradições, mas existir dentro delas.
Leia também:
- Heróis de lugar nenhum, por Marcelo Miranda
- Um olhar, por Filipe Furtado
- O estranho com nome (chamam-no céu), por Rodrigo de Oliveira
- Marketing do apaziguamento (ou conciliação), por Cléber Eduardo
- Dois lados de uma soma dialética, por Cléber Eduardo
- Sangue em calda de sorvete, por Fábio Diaz Camarneiro
- O mundo não é seu, por Pedro Henrique Ferreira
- Heróis e vilões, por Arthur Tuoto
- Em frente à lanterna mágica, por Raul Arthuso