aformadaagua-header

Sobre as formas positivas

Na superfície, A Forma da Água organiza todos os seus elementos nos lugares mais apropriados e adequados. A fábula característica do cinema de Guillermo Del Toro se desenvolve na fricção entre a representação de um mundo e uma época fáceis de identificar num mínimo conhecimento histórico (a Guerra Fria e a corrida armamentista entre norte-americanos e russos) e a entrada do fantástico como desestabilização das regras desse mundo (o homem-anfíbio encontrado num rio da América do Sul, referência extraída diretamente de O Monstro da Lagoa Negra, filme de 1954 de Jack Arnold). Os personagens têm imediata simpatia, o apartamento de Elisa (Sally Hawkins) fica em cima de um cinema decadente e nostálgico, a cenografia por onde os corpos circulam se descompromissa de ambições realistas e propositadamente se assemelha a construções de estúdio que dialogam com o caráter fantasioso da narrativa. Montado o palco, vem o enredo, que trata de opressão e poder a partir da relação entre Elisa e o anfíbio (Doug Jones) e das consequências desse envolvimento nas demais pessoas ao redor.

A configuração de A Forma da Água retoma os mais instigantes aspectos da obra de Del Toro, trabalhados em especial a partir de A Espinha do Diabo (2001) e cujo ápice se deu em O Labirinto do Fauno (2006). A imbricação entre fundo histórico conflituoso (Guerra Civil Espanhola ou Guerra Fria) com referenciais da literatura e do cinema fantástico se tornou a marca do cineasta mexicano e um forte diferencial em relação a seus parentes mais próximos nos EUA (Steven Spielberg e Tim Burton), inclusive quando ele se envolveu em franquias de quadrinhos, casos de Blade II (2002) e do díptico Hellboy (2004 e 2008). Se até então as fábulas do realizador se fixavam no poder da imaginação e da ficção para enfrentar as grandes forças externas do mal, no novo filme há uma formatação mais evidente de apresentar trama e atmosfera de maneiras menos agressivas. É um filme do qual o espectador se despede, após a sessão, se sentindo bem, esperançoso e flutuante, acreditando que a força do amor shakesperiano entre Elisa e o anfíbio foi capaz de conter parte da destruição provocada pelo belicismo entre nações. Sai a fabulação como instrumento incapaz de “se fechar em uma moral reconciliadora” ou de conseguir “restituir o que foi perdido” ou de viabilizar algum “retorno à inocência” (como escreveu Francis Vogner aqui mesmo na Cinética a propósito de O Labirinto do Fauno) para dar lugar à fabulação que… consegue fazer tudo isso sem agredir ninguém.

A fábula em A Forma da Água se adequa a um tipo de sensibilidade contemporânea bastante em voga na produção industrial norte-americana que busca valorizar a conciliação e a união das diferenças, fazendo disso o grande movimento vitorioso de sua dramaturgia. Antes de serem figuras marginalizadas social e politicamente, os protagonistas do filme são tratados dessa maneira nas interações uns com os outros. Eles estão carregados de estereotipias que os mantêm facilmente assimiláveis nas funções exercidas para que a mecânica do enredo caminhe tranquilamente. Elisa é muda, sonhadora, adorável e também sabe o que é sexo; Giles (Richard Jenkins) é idoso, artista em crise, adorável, gay, fã de filmes musicais e usa peruca para flertar com um atendente de balcão; Zelda (Octavia Spencer) é negra, engraçada, adorável, tagarela, tratada com indiferença pelo marido e está sempre disposta a se encrencar pela amiga; o espião soviético (Michael Stuhlbarg) é engajado e impetuoso, apesar de não tão adorável. O homem-anfíbio é o agregador de todos eles: será para tirá-lo da instalação militar que o grupo de amigos vai se unir. A maneira como o filme opera essas relações sem muita discrição aparece, por exemplo, na recusa inicial de Giles em colaborar na empreitada de Elisa. “Ele nem é humano!”, argumenta, no que ela responde: “Se não fizermos nada, nós também não seremos”. Irritado, Giles sai de casa, vai para a confeitaria, é rejeitado e humilhado pelo rapaz que o atrai e volta a encontrar Elisa agora disposto a salvar o monstro.

aformadaagua1

O filme se mostra atento às representações positivas de quase todos em cena para constantemente escamotear conflitos a cantos onde mal possam ser vistos, mas que de alguma forma apareçam aqui e ali para não se dizer que se trata de um mundo alienado e alienante (procedimento inverso ao de O Labirinto do Fauno). O pano de fundo da Guerra Fria é só isso, um pano de fundo, ou a simples ambiência dos dramas que se estará a ver por duas horas. O filme, faz assim, um movimento simultâneo de avanço e recuo: deixa ausente a alegoria política trabalhada em A Espinha do Diabo e O Labirinto do Fauno em prol apenas do prazer da fábula (algo que se via em Círculo de Fogo e A Colina Escarlate), mas não se libera de falar da geopolítica dos anos 1950 como se nela buscasse alguma legitimação de viés histórica. Em A Forma da Água, o objetivo dos personagens adoráveis (ou seja: o russo não está incluído) não é retirar o anfíbio para que ele não seja usado pelos militares na corrida armamentista, e sim evitar o sacrifício de uma figura tratada como naturalmente diferente e selvagem e por quem a mulher sem fala se apaixonou. (O russo, depois, se alia ao grupo por conveniência.) São movimentos de individualidade que se travestem de coletivo porque assim ficam mais sedutores – e porque, afinal, quem há de ser contra? De um jeito bem mais competente, Del Toro faz o mesmo manejo de peças que Ken Loach em Eu, Daniel Blake (2016): no fosso entre a instituição que oprime e a justeza das lutas individuais, mártires surgem do cotidiano proletário e são construídos como exemplos de resistência; só que a resistência, em ambos os casos, vem de interesses essencialmente individuais.

Traços de ruptura nessa equação – ou de ranhuras que pudessem retirar o filme de seus cantos de conforto – são pontualmente iniciados, mas nunca levados adiante: o canal da TV é trocado logo que entra o noticiário sobre conflitos nas ruas (“Não quero ver isso!”, grita Giles); a criatura come o gato da casa, mas é compreendido como “um selvagem que não sabe ser de outro jeito”; Elisa aparece nua a se masturbar diariamente na banheira, mas o ato sexual com o anfíbio é apenas referenciado numa piadinha de genitália com a amiga debochada; a violência bruta (dedos decepados, peles cortadas, gatos devorados) é tratada com relativa parcimônia, quase jump scares sem muita potência. Nada, portanto, que possa minimamente retorcer as engrenagens ultrapassa os limites de um certo bom gosto arthouse nem ameaça o ritmo harmônico dos objetivos nobres. O poder do monstro de curar feridas é sintomático: todo o filme é uma constante cura, um continuado reparo de quaisquer ruídos que retirem sua fabulação do lugar de redenção e salvação. É o poder encantatório do cinema usado na amenização de contradições; é o filme como recadinho de verso da folha de calendário.

Para reforçar seus procedimentos, A Forma da Água introduz um vilão apenas detestável, mas nunca efetivamente perigoso. O chefe militar de segurança Richard Strickland (Michael Shannon) entra como ameaça imediata, mas, ainda que sempre demonstre ódio ao outro e ao diferente, ele é estratégica e mentalmente limitado. Poucos vilões recentes em Hollywood são tão estúpidos, o que facilita bastante que os demais personagens (até o cientista comunista) cumpram seus objetivos sem parecerem, de fato, correr grandes riscos para além do casual. Strickland é incompetente e incapaz até mesmo para morrer no desenlace do filme. Se Shannon se diverte na interpretação caricata do vilão, sua própria presença cênica já dava indícios de que se tratava de um antagonista perturbado e desequilibrado, afastando ainda mais um pouco qualquer tensionamento. O distanciamento entre o inimigo de dedos apodrecidos com sua família doriana (só mais um dado cartunesco para compor o quadro) e o grupo de amigos sempre passos à frente dele apenas reforçam que, mesmo com alguns obstáculos e feridas pelo caminho, vai dar tudo certo. E esse afago, o filme oferece para tranquilizar. Claro que nada disso é acaso ou “falha” de Del Toro como roteirista e encenador, e sim articulações estéticas deliberadas, no que a maior consequência é proporcionar o bem-estar da segurança de que o inimigo até parece difícil de derrotar, mas, em sua estupidez, pode ser engabelado com razoável facilidade.

aformadaagua3

A Forma da Água promove uma ruptura no trato com a fábula fantástica que o próprio Guillermo Del Toro gastou anos desenvolvendo e que tem contemporâneos expressivos – caso, em especial, de outro imigrante em Hollywood, o indiano M. Night Shyamalan. No mesmo 2006 em que O Labirinto do Fauno chegava aos cinemas, estreava também A Dama na Água, agora uma espécie de primo maldito do filme mais recente de Del Toro. Em ambos, entidades surgem do meio aquático para alterarem o dia a dia de uma pequena comunidade de párias sociais; em ambos, proteger a entidade é a missão assumida pelo grupo. Porém, não se podia pensar em filmes mais distintos – inclusive na recepção do público e da crítica. Se Shyamalan se interessa abertamente pela contradição e pela complexidade dos tipos humanos na relação com a fábula como algo que não será capaz de enlevar o espírito humano a seus melhores patamares morais (e ele continua fazendo isso com brilhantismo, vide os recentes A Visita, em 2015, e principalmente Fragmentado, no mesmo 2017 de A Forma da Água), Del Toro oferece a devida reparação às feridas alheias que ele mesmo contribuiu para cavoucar em tempos não tão distantes.

O que se tem na delirante e emocionante história de amor entre Elisa, o homem-anfíbio e todos aqueles que os ajudaram a enfrentarem o mal para estarem juntos é o encaixe ideal e inofensivo do cinema da desopilação e da conciliação, o posicionamento da emoção acima da confrontação, o enfraquecimento das possibilidades políticas das relações em cena em prol da celebração de uma partilha de sensibilidades positivas que a todos contamina, o risco de uma “nostalgia deslocada”, como escreveu Elie Aufseesser aqui na revista ao analisar La La Land (2016). O perigo dessas escolhas, para citarmos novamente Aufseesser, é cair na afirmação da irrelevância – no caso de A Forma da Água, irrelevância da política e irrelevância da fantasia.


Leia também: