Lincoln, de Steven Spielberg (EUA, 2012)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Raul Arthuso

lincoln6

Em frente à lanterna mágica
por Raul Arthuso

O cinema americano sempre se dedicou a representar sua política, porém no período de governo Barack Obama, passado o trauma do 11 de setembro e as inseguranças da era Bush, é que os filmes retomaram um diálogo mais aberto com ela. Nos primeiros anos da última década, os filmes diziam muito mais sobre as personagens e seus enredos do que sobre as relações (dialéticas) entre as figuras históricas e os contextos passados e presentes. As figuras de poder retratadas por diretores de renome como Clint Eastwood ou Oliver Stone guardavam alguma distância moral, manifesta em como o melodrama moldava os destinos da nação e a questão politico-social que as envolvia, como o apartheid ou as conspirações no alto escalão imperial, seja com Mandela em Invictus ou com Alexandre, no filme homônimo de Stone.

Algum tipo de desinibição atingiu Hollywood na era Obama. Os filmes se debatem com o contexto atual americano depois de uma nova recessão econômica e certa desilusão com a esperança prometida pelo atual presidente americano. Mais do que isso, em diferentes intensidades, Inimigos Públicos, Bastardos Inglórios e J. Edgar, por exemplo, tentam lidar diretamente com contextos históricos, buscando representações particulares para expressar a relação das personagens com o mundo, e não apenas fechado no enredo melodramático como modelo. J. Edgar, de Clint Eastwood, é caso interessante: mesmo tomando Mandela e Edgar Hoover figuras muito distintas, há uma questão de olhar que muda entre Invictus e J. Edgar. Pois, no primeiro, o herói melodramático é modelo moral para as personagens em seu entorno e, se há uma mudança política, ela se dá menos por suas ações do que por seu destino manifesto – e aí mora o melodrama como forma; em J. Edgar, por sua vez, o filme passa de uma ligação superficial com certo sentimento do mundo a um “teatro da política” de fato, com a descrição do processo histórico e da trajetória da personagem servindo não apenas à emoção do filme como também a uma pedagogia que encara o cinema como uma consciência da História, com a vantagem, em relação aos livros de história, de poder mostrar, mise en place.

Lincoln, de Steven Spielberg, é, nesse contexto, o mais descaradamente pedagógico filme sobre figuras históricas e políticas dessa leva do cinema americano, em que a noção de representação é central, não apenas pela idéia de distância espelhada da figura real do mais mítico presidente dos Estados Unidos e sua presença no corpo de Daniel Day-Lewis maquiado e vestido à imagem e semelhança de uma gravura impressa nas páginas dos livros, como por ser um palco da política, onde as personagens não agem segundo a História, mas realizando-a in loco (ainda que num lugar qualquer em Studio City, Califórnia). Pois, há, de alguma forma, – e aí reside a pedagogia – a necessidade de espelhar o momento atual – não de construir uma alegoria da atualidade a partir de Lincoln, mas de usar esse momento como um “caso exemplar”.

Não é casual que, apesar de seu título personalista, Lincoln não seja uma biografia, e sim a descrição de um momento particular de sua presidência, quando se apresenta a dificuldade de aprovar a emenda da abolição da escravatura. O exemplo ilustrado pelo filme serve ao governo Obama, imerso nas dificuldades em aprovar reformas sociais latentes há algum tempo na sociedade americana, pela guinada conservadora contra mudanças urgentes e a truculência tanto de conservadores quanto de liberais nas discussões políticas. Mas, também, Spielberg traz à baila o jogo de câmara necessário para o desenrolar político, com compra de votos, venda de cargos, relatividade moral. Não há um julgamento do mito de Lincoln, pois isso não é o fundamental, mas sim a necessidade de deixar claro que a representação é feita para o nosso tempo, com finalidade mais importante para esse contexto que para a História. As discussões em Lincoln giram em torno do futuro, da posteridade, do julgamento posterior, ou seja, o tema discorrido é endereçado ao fora de campo (em todos os sentidos) e não às resoluções de câmara. Se há uma maturidade notável de Spielberg em relação a outros dramas históricos (e não apenas os seus), ela está em afirmar a inutilidade de “desvendar a lenda” e construir uma colméia em torno disso.

Essa idéia reside em buscar no teatro – de onde saiu o material-base do último filme de Spielberg, Cavalo de Guerra, e o roteirista Tony Kushner – e seu dispositivo o chão onde se firma Lincoln, como a Casa Branca filmada com baixa luz e cenografia que reduz o espaço a uma forma reduzida como o palco, onde a presença se faz essencial; portas que funcionam como coxias por onde se tenciona a economia de tempo e fluidez das cenas; e o contraste desses ambientes internos escuros com a imagem icônica clara da parte externa da casa presidencial, reforço da estrutura arquitetônica do teatro, no qual o espaço cênico é plástico e muitas vezes não se comunica com a fachada da construção. O Congresso é literalmente o “teatro da política”, os discursos são ações cênicas e os outros congressistas são espectadores que reagem ao espetáculo. Os discursos, em Lincoln, são não mais que monólogos, textos ensaiados e encenados aos presentes, com marcações de posições, posturas e direcionamentos de olhares calculados para atingir o efeito desejado. São discursos que são preparados – comprados ou não, convincentes ou não, genuínos ou não – em salas anexas, íntimas como outros pequenos teatros paralelos.

lincoln7

No mais belo momento do filme, Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones) mente sobre suas convicções para conseguir apoio para a emenda da abolição. Enquanto opositores protestam, a câmera mostra a primeira dama (Sally Field) no balcão do salão – outra referência à espacialidade do teatro – comemorando o ato do congressista, enquanto sua criada negra sai às pressas do lugar, demonstrando ambigüidade de sentimento quanto ao que acabara de ver. Há, aqui, um duplo movimento: a teatralidade que, longe de revelar o mito, expõe a superfície da representação e cristaliza as figuras históricas da fábula política em torno da abolição da escravidão como exemplos, lendas, mitos; e o direcionamento do olhar para o presente, na figura da criada, que parece já “antever” as dificuldades das lutas sociais no século XX e início do governo Obama, como a consciência pedindo a visão atenta do espectador não apenas para a História, mas para o futuro. Interessante, então, é a cena em que Stevens chega em casa com a cópia da emenda para sua criada. Com a câmera posicionada no interior da casa, a porta é aberta pela mulher para a entrada de Stevens, criando aí uma aparente relação entre eles. Stevens vai tirando a roupa, desfazendo sua figura pública, tirando a peruca para revelar sua reluzente careca, e deitando-se à cama, quando sua “criada” deita-se com ele, mostrando, na verdade, a relação do casal, num verdadeiro desmonte que remete ao fim da peça, única sequência de “revelação” do filme. Lincoln não quebra a quarta parede; mostra-se, contudo, consciente de realizar-se em frente a ela. Daí talvez certa insistência com a autenticidade in loco às custas de expor o academicismo da decupagem latente em todos os dramas de Spielberg.

lincoln8

Essa representação da política não é inovadora, porém há uma diferença de postura em relação a exemplos recentes dentro do cinema americano. Em O Homem da Máfia, de Andrew Dominik, por exemplo, a política aparece margeando a narrativa principal: logo na seqüência de créditos, vê-se um homem andando por um túnel enquanto a banda sonora traz em primeiro plano o áudio do debate entre Barack Obama e John McCain durante a campanha presidencial. Em paralelo correm, então, o final dessa história, que elegeria Barack Obama, e a trama do filme. Se eles não se tocam frontalmente até a última cena, a trama principal já prepara o terreno para o comentário político: Jackie Cogan, o matador de aluguel encarnado Brad Pitt, tem um serviço a fazer para chefões da máfia. Ao contrário do gângster corriqueiro, Jackie pouco age, negocia longamente com um intermediário entre ele e os mafiosos, contrata um outro matador que sofre de depressão e não consegue fazer o trabalho… a contra gosto, então, Jackie tem de fazer o serviço que adiara por todo o filme, pois não gosta de simplesmente matar, mas fazê-lo “suavemente”, o que parece ecoar a retomada da imagem internacional do governo americano pelos democratas de forma bem articulada por Barack Obama e seu imperialismo-soft.

Há, com isso, a desconstrução da figura do mafioso, do gênero cinematográfico, da narrativa clássica, abusando de comentários cínicos sobre esse universo, diálogos espertos e manipulações plásticas da imagem – distorções ópticas, efeito especial, câmera lenta e acelerada – que demonstram o saber-fazer do realizador e uma possível superação do mero produto industrial em um filme de autor. Por isso mesmo, não é de se estranhar que o encontro entre a narrativa política (a eleição de Obama) e a trama principal (o filme de gangster) se dê nessa chave: Jackie assistindo, junto do intermediário, o discurso da vitória de Barack Obama, destrincha-o enquanto discute com seu interlocutor sobre o pagamento do serviço. Após ouvir Obama dizer pela televisão “… para restabelecer o sonho americano e reafirmar a verdade fundamental de que, apesar de muitos, somos um só…”, seguido por um comentário jocoso do intermediário que acha o preço cobrado pelo serviço absurdo, Jackie faz um longo monólogo sobre o mito da nação americana e termina dizendo: “Esse cara quer me dizer que vivemos numa comunidade? Bobagem. Eu vivo nos Estados Unidos, e nos Estados Unidos você tá sozinho. Os Estados Unidos não são uma nação. É apenas negócio. Agora, me pague”.

kinopoisk.ru

O Homem da Máfia (2012), de Andrew Dominik

O mundo de O Homem da Máfia não permite a inocência, nem mesmo uma possibilidade de mudança; desmistifica o quase-mito quando a esperança ainda era a música do momento. Quando Jackie afirma, um pouco antes, que os Estados Unidos como nação é um mito criado por Thomas Jefferson, apenas um branco mimado, escravista, cansado de pagar impostos aos ingleses, não é apenas a idéia de nação que está em jogo, mas a própria História, já que o presente e seu discurso de esperança tornam-se apenas política – pragmatismo puro. Em O Homem da Máfia, a política é um discurso de peso negativo; não há experiência transmissível, o discurso histórico é vazio, poço de ambigüidades e interesses escusos, pois galgado no pragmatismo; é forma, e deve, portanto, ser desconstruída, não como alternativa de se chegar a um novo discurso – e novas esperanças –, não como tomada de consciência, e sim como um gesto de desespero, somado aqui a uma esperteza cínica auto-suficiente (“nos Estados Unidos você tá sozinho”). O diálogo só é possível quando a neblina dos discursos (os interesses) dispersar, algo remotamente provável no capitalismo financeiro atual.

Há ainda um caso como Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, em que existe um jogo com o mito e o contexto presente com as diversas referências de discurso ao Occupy Wall Street, o pathos da revolução socialista soviética e a própria carga mitológica do super-herói que mantém a ordem. Mas, na outra vertente, há uma ambigüidade nos retratos em geral, seja dos julgamentos revolucionários – as pessoas são condenadas de forma autoritária pelas razões certas, algumas vezes –, seja de sujeitos da ordem, agora tornados inimigos públicos, como o comissário Gordon e Harvey Dent. Ou seja: há uma descrença geral e irrestrita do discurso político da ordem e da revolução que eleva potencialmente a gestalt de O Homem da Máfia.

darkknightrises

Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), de Christopher Nolan

Então, o exercício de hermenêutica do filme de Nolan leva a um caminho sem saída, pois feito sobre pedregulhos. Se todos esses dados são reconhecíveis e apreensíveis (Occupy como pathos; Wall Street como locação-base; socialismo como sombra; a idéia de nação justa e seu pragmatismo político como dúvida), sua conjunção no filme é um amontoado de estilhaços num campo de batalha que se assemelha a alguma visão política, mas sem o nexo inevitável do contexto que a cristaliza. A impressão é de que, se o filme se refere a Occupy Wall Street, ele não fala efetivamente dele; se há alguma visão sobre as revoluções socialistas, não é disso que se trata; e, em última instância, se há alguma abordagem do momento político americano sob a batuta de Obama, isso em nenhum momento é efetivo. A política de  é poligâmica, levanta questões a todos os gostos, como o hipócrita que apenas se permite jogar a poeira para o alto sem vontade de assentar qualquer idéia… que não afirma para não se comprometer. As figuras estão ali, falta-lhes substrato, o ponto alto do vazio anti-histórico, que se reflete na relação entre mito e representação (ou o jogo destes com o espectador) na qual o mito não encarna nenhum valor que não o de produção e inteligência do próprio filme.

O corpo-a-corpo entre esses filmes, porém, não serve para valorar Lincoln como uma obra-prima e O Homem da Máfia e Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge como representantes da apatia do mundo frente à expertise cinematográfica. É possível traçar uma diferença de postura com os mitos, a política e a representação talvez ligadas à diferença geracional. Nolan e Dominik, formados numa era de maneirismo latente, buscam o imaginário coletivo como matéria para a afirmação de um discurso que serve menos ao contexto atual e seu tempo que à auto-afirmação enquanto realizadores dentro da indústria americana e do cenário auteuriste internacional. Spielberg, por outro lado, mostra-se, em Lincoln, consciente de sua posição enquanto diretor consagrado, alguém que sabe ser ouvido com atenção e cujas imagens sobre uma figura importante terão reverberação certa.  A carreira, marcada por mitologias e fabulações, muitas delas relacionadas ao pai ausente, encontra em Lincoln o pai da nação moderna americana, cuja necessidade de ser reencontrado é urgente, e, em sua trajetória na aprovação da emenda da abolição, o conselho paternal de um fabulista para seu tempo. Quando Lincoln diz a seus assessores sobre a pressa em aprovar a emenda no congresso “Enquanto eu puder. Agora. Até o fim desse mês. E eu quero que vocês me apóiem”, é o pai falando ao filho, narrando um conto em frente ao jogo de luz e sombra de uma lanterna mágica.

Share Button