Sobre ruínas, fronteiras e fantasmas

julho 16, 2013 em Colaborações especiais, Em Pauta

Pulse (2001), de Kiyoshi Kurosawa

Pulse (2001), de Kiyoshi Kurosawa

por André Keiji Kunigami (colaboração especial)

“Reforme as regras do mundo”.

Jovem sequestrador, em Charisma, de Kyioshi Kurosawa.

“O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa sobre nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sobe do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”.

Walter Benjamin, “Sobre o Conceito de História”.

Kiyoshi Kurosawa nos ensina a ver ruínas. Entre as ruínas físicas e imaginárias de um capitalismo que se imaterializou, o cineasta narra, em espaços sombrios, aquilo que não se captura. Nos filmes, estas ruínas, em vez de lugar de acúmulo, de congelamento do passado, tornam-se lugar de indistinção. Construções abandonadas, apartamentos escuros, depósitos de eletrodomésticos usados e periferias urbanas – até mesmo uma floresta ganha os aspectos fantasmagóricos de uma ruína. Em Sonata de Tóquio (Tōkyō Sonata, 2008), o espaço imaculado do capital na metrópole corporativista de arranha-céus e escritórios brancos – a antítese da ruína – torna-se uma ruína de si mesmo. É desta ruína que emerge a possibilidade de uma ruptura que, no entanto, não é nem um “ontem” nem um “amanhã”, mas uma dialética.

Não à toa, os filmes de Kurosawa são habitados por fantasmas (maboroshi, yūrei), juntando-se a uma grande parcela da produção fílmica contemporânea. Por vezes, como em Bright Future (Akarui Mirai, 2003), Charisma (Karisuma, 2000) ou Sonata de Tóquio, os fantasmas se materializam e se transformam em águas-vivas, árvores, ou numa cidade inteira, contaminando os corpos dos personagens; outras, os fantasmas se confundem com as máquinas e com a tecnologia, contaminando a própria enunciação fílmica e o espectador, como em Pulse (Kairo, 2001). São fantasmas imanentes a uma modernidade que já nasceu ruína. Esses fantasmas encontram-se na materialidade do nosso mundo, interrompendo-o, turvando as fronteiras do projeto moderno: vida/morte, natureza/cultura, centro/periferia, trabalho/lazer. Nessa erupção da indistinção, Kurosawa propõe uma potência de revolução – “pequena revolução”, como diz a canção nos créditos finais de Bright Future.

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Pulse: a invasão do quadro.

Jacques Derrida escreve que todo arquivo tem uma dimensão freudiana (e vice-versa): fundando-se em uma relação com a morte, necessariamente traz em si uma marca de futuro, no qual o passado vai irromper como presente (“Mal D’Archive: une impression freudienne). Como a ação de um arquivista que reprime o documento que monumentaliza, de fins do século XIX em diante, o Japão viu-se em um constante arquivamento do passado, que se dividia entre monumento atemporal, com o nacionalismo imperialista do excepcionalismo japonês, e resíduo indesejado no processo político de “superação da modernidade,” o qual se estendeu por todo o século XX nas políticas da direita japonesa em relação à memória fascista da guerra. De todos modos, a modernidade apresentou-se como problema, como um novo que se colocava como algo distinto do “velho.” No procedimento espectral da história, que nunca se completa, a questão da modernidade – seu imaginário tecnológico, seus processos subjetivos, seu aparato político e sua estrutura industrial de captura do tempo – produziu fantasmas que disputam a pureza do futuro no decorrer do presente. Como disse Harry Harootunian, são esses fantasmas que irrompem “para assombrar e perturbar o presente histórico” (“History’s Disquiet: Modernity, Cultural Practice, and the Question of Everyday Life”). Neste sentido, o próprio projeto moderno – berço da tecnologia da fotografia, do cinema, e do Japão – é ele mesmo uma ruína desde seu princípio: ruína feita de ruínas, choque de um desejo de progresso com a inexorabilidade da simultaneidade. O projeto da modernidade foi o de eliminar a ruína em prol da pureza de um futuro, mas a contaminação e a impureza retornam constantemente, como um excesso justo, preciso e estrutural.

No Japão pós-industrial da nossa recente virada de século, em que se exauriu até o limite aquele “tempo homogêneo e vazio” do progresso moderno, como descrito por Walter Benjamin, os filmes de Kiyoshi Kurosawa nos remetem a um cruzamento de temporalidades e espaços que nos leva de volta àquelas encruzilhadas da modernidade de um século atrás. Se, de fato, nem nas sociedades industrializadas, ou pós-industrializadas, a modernidade jamais alcançou sua pureza almejada de tábula rasa do passado, de puro futuro, isto se dá porque ela sempre foi uma espera, um desejo. Mas entre a espera que forja um controle sobre o porvir (afinal, espera-se algo já esperado), e a inespera do arrebatamento – ‘inesperado’ – daquilo que interrompe a espera, há uma diferença fundamental à própria relação política entre indivíduo e história. É colocando-se nela e problematizando esta diferença, a própria aporia moderna, essa brecha definidora, que o trabalho de Kiyoshi Kurosawa torna-se eminentemente uma prática política da dialética. Nesta dialética, dois eixos se colocam nos filmes de Kurosawa, os quais se relacionam de forma intrínseca: a gradual contaminação do humano pelo não-humano e a interrupção do tempo cotidiano pela catástrofe ou pelo impensado.

O não-humano

O não-humano engloba a própria imagem – que aparece como personagem sob a forma das telas dos computadores em Pulse, nas quais habitam os fantasmas que contaminam a internet. Mas este não-humano também é a própria tela-interface entre diegese e espectador. Em determinado momento do filme, quando Harue (Koyuki) está no seu quarto, observamo-la através de duas imagens: a do “filme” (diegese narrativa) e a do vídeo transmitido na tela de uma televisão – cuja imagem aponta para uma terceira presença, que não é a nossa nem a de Harue, mas de uma outra câmera. Harue se levanta, passa por nós e pela tela do televisor, entra em um quarto, caminhando em direção a este segundo dispositivo de imagem, cuja transmissão acompanhamos. Quando ela adentra o ambiente, passamos a vê-la do ponto de vista dessa segunda câmera – nosso olhar já não é mais só nosso. O filme deixou de ser somente aquela instância que narra: passamos a ser o fantasma, incorporados no olhar dessa câmera de vídeo que não se materializa senão na imagem que produz. Se, antes, víamos o corpo de Harue transmitido na tela da televisão, de repente vemos seu rosto e seus braços a nos abraçar, como se fossem nossos olhos os próprios produtores desse circuito videográfico. Vídeo, fantasma, filme e espectadores: todos possuem igual possibilidade de agência.

Nós vemos o olhar do fantasma-vídeo.

Nós vemos o olhar do fantasma-vídeo.

Nós somos o olhar do fantasma-vídeo.

Nós somos o olhar do fantasma-vídeo.

Nós somos o olhar do fantasma-vídeo.

Nós não estamos em nenhum lugar.

Esta lógica do circuito e da contaminação (kairo, título original em japonês, significa justamente circuito) encena o que Bruno Latour chama, em “Jamais fomos Modernos”, de o “testemunho dos não-humanos”, atualizando e invertendo o medo das máquinas e seus perigos, que jaz no cerne da divisão entre a cultura e a natureza que acometeu modernos tão distintos quanto Marx e Heidegger. Aqui, não somente o não-humano se posiciona, como age e nos faz agir/sentir, ao mesmo tempo que se iguala, ainda que por um instante, a todos nós. Estas telas e outros não-humanos são capazes de fazer com que a divisão entre a alucinação e a realidade caia por terra, transformando o humano (incluindo nós) em nosso próprio outro. À maneira do abjeto, como entendeu Julia Kristeva, elas ameaçam as distinções e fronteiras entre sujeito e objeto a partir de dentro dos próprios sujeitos: “Não eu. Não aquilo. Mas tampouco ‘nada’” (“Powers of Horror: an essay on abjection”). Se o abjeto é condição do humano – ou dele nasce, através da morte do orgânico transmutado em inorgânico – em Kiyoshi Kurosawa, os não-humanos são análogos a abjetos fluxos corporais que vazam lentamente de rachaduras no corpo-mente racional do espaço da cultura, evidenciando e questionando os limites do humano e sua histórica zona de distinção (Kristeva alerta que a abjeção é ambígua. Deleuze diria: desterritorialização e reterritorialização. “Abjection is a resurrection that has gone through death (of the ego). It is an alchemy that transforms death drive into a start of life, of new significance” (Kristeva, 1982: 15)). Se no final as fronteiras são reestabelecidas, não é sem alguma alteração na sua composição, uma reavaliação das leis e suas fragilidades. Os efeitos não estão prescritos, mas são antes premissas.

Essa abertura para a fala da imagem e das coisas – diria WJT Mitchell, em “What do Pictures Want?: the lives and loves of images”: abertura de um espaço para o “desejo das imagens”  – encontra abrigo privilegiado no cinema e na arte contemporânea, em muitos exemplos como Harun Farocki na Alemanha, Cao Fei em Hong Kong, Alice Micelli no Brasil, Jia Zhang-ke na China, Apichatpong Weeresethakul na Tailândia. Em Kurosawa, porém, a abjeção da técnica ou da “cultura” pode causar medo e até morte. Em seus trabalhos, o que está em questão é justamente a fronteira que cai por terra quando vemos que uma árvore, uma água-viva, ou uma tela de computador podem nos interpelar e reorganizar o mundo inteiro. Não somos soberanos. A força poietica da técnica é estendida a todos. O que Kurosawa nos mostra é que não há uma imagem ou/contra mundo, cultura ou/contra natureza, não-humano ou/contra humano, mas sim uma fronteira indiscernível. Portanto, a máxima heideggeriana de um ‘mundo tornado imagem’ deixa de proceder – e a noção de responsabilidade se amplia. Kurosawa, em entrevista à revista Kinema Junpō, diz que se trata de, ao se dissolverem as barreiras, também se dissolver a normalidade, a partir do interior da diegese. E, nesse momento, todos nós nos tornamos implicados, “todos nós passamos a habitar aquelas ruínas”.

Essa força que emana de ruínas move as narrativas de Kurosawa, em que o mundo é reorganizado por agentes improváveis, num percurso que nasce do fascínio e chega à contaminação – processo atravessado pelo dissenso. No filme Charisma, uma árvore supostamente rara, chamada de “Carisma”, exerce poder tamanho que é disputada por três grupos em uma briga política que se estende ao próprio sentido da floresta e de sua existência: deve ser salva, sacrificada, deixada de lado? Uma árvore moribunda no meio de uma floresta cinzenta, nos arredores de Tóquio, instaura um conflito político e expõe as forças que atuam sobre aquele espaço supostamente “natural”. Involuntariamente inserindo-se neste contexto, Yabuike, policial demitido após uma operação mal sucedida, interpretado por Koji Yakusho, sai de Tóquio para a floresta, com o intuito de “escapar do mundo”, e acaba por tornar-se o mediador dessas disputas. “Reforme as regras do mundo”, dizia o bilhete entregue a Yabuike por um jovem sequestrador. Em vez de salvar o político refém do sequestrador, o policial lê o bilhete e sai de cena, acarretando sua expulsão da corporação. Mas quais são as regras do mundo?

A não tomada de lados – ou a decisão de não proteger o Estado partindo de um de seus mais imponentes aparelhos, a polícia – diz respeito a essa “reestruturação” das regras. Mais do que uma paralisia ou equivalência entre fatores quaisquer, trata-se de uma responsabilidade e de um entendimento. É em uma floresta em vias de morrer, com a mediação de Yabuike nos conflitos em torno da árvore Carisma, que vemos a potência política desse não-humano, “apenas” uma árvore, de reestruturar as regras de um jogo dominado pela captura racional e moderna daquilo que se supõe natureza e diferença. Em meio a uma disputa entre três grupos (uma cientista, um grupo de homens organizados com interesses na raridade da árvore, e um reminiscente habitante de um hotel em ruínas na floresta) pela posse da árvore milenar que resiste em meio a uma floresta moribunda, é justamente a ausência de desejo sistematizado do ex-policial desprovido de uma agenda racional – e, portanto, em dúvida – que permite que a floresta aja e faça uma outra política. Qualquer árvore é qualquer árvore: como diz o próprio Yabuike, não há um todo contra o uno, todas são apenas “árvores ordinárias”, assim como ele é um “homem ordinário”. Mas não se trata de um laissez faire neoliberal, produção de consenso e equalização das diferenças. Yabuike nos mostra que nas ruínas de uma floresta qualquer existe uma possibilidade de política que pode fazer emergir a potência do dissenso de onde não se espera. É desse não-capturado que nasce um devir revolucionário que pode interromper o fluxo da normalidade. “Você veio à floresta procurar liberdade?”, pergunta Kiriyama (Hiroyuki Ikeuchi), habitante do hotel abandonado, a Yabuike, espantado com a ingenuidade do habitante da cidade-cultura na crença de que floresta não é cultura, espaço destituído de agência ou desejo. (Eduardo Viveiros de Castro já nos ensinou que a floresta é cheia de cultura). Não se trata da “natureza” do pré-moderno atemporal, que interrompe a “cultura” do moderno a posteriori: mas sim de uma mudança ontológica do próprio conceito moderno de cultura e sua necessária dimensão política. Uma expansão da pólis operada por aquilo que ficou à margem.

Como uma fantasmagoria, um “anjo da história”, esta ruptura, esta micro-revolução, vem dos espaços das ruínas através destes agentes não-humanos, como uma espécie de impensado. Através da temporalidade de um corte, é como uma sutil catástrofe que se impõe sobre o cotidiano, este tempo que não se deixa capturar, como disse Maurice Blanchot (“A Fala Cotidiana”), mas que também é o campo onde todos os poderes e organizações atuam. O tempo do trabalho, o tempo que é capturado pelo capitalismo, é justamente este tempo invisível do cotidiano. Quando uma catástrofe-revolução se impõe, a capacidade da história de se reorganizar fora das expectativas ordenadas retira do humano sua posição de sujeito absoluto – como a loucura, que faz ruir todo o projeto de normalidade, sendo-lhe intrínseco e absolutamente dependente. Não à toa, o perigo de morte vem sempre acompanhado do fascínio com a possibilidade de uma nova vida. Quando as águas-vivas se alastram pelos esgotos de Tóquio, em Bright Future, elas ao mesmo tempo matam e encantam com seu brilho fluorescente. É também o fogo do hipnotizador de Cure (Kyua, 1997), que atravessou a história desde os primeiros passos da modernidade na era Meiji, instaurando o turvamento entre vida e morte em fins do século XX, por meio de de um fascínio que atravessou séculos.

Bright Future (2003), Kiyoshi Kurosawa

Bright Future (2003), Kiyoshi Kurosawa

É nesse rompimento das fronteiras que se amplia a esfera do não-humano. Nesta zona indistinta das ruínas, as margens e suas pessoas, excessos do capital global, tornam-se também não-humanos – “Muselmänner”, diria Agamben: os únicos com potencia de transformação. Quando entramos no escritório corporativo com Nimura (Joe Odagiri), de Bright Future, o qual se transformou ele mesmo na água-viva que tanto o fascina, presenciamos um quase-humano interromper o ordenamento majoritário normalizado e desregular o tempo maquínico daqueles executivos, que param para observá-lo. É justo Nimura, que decidiu não organizar o seu tempo e recusar o trabalho regulamentado, quem opera a transformação, transmutado em água-viva. O cotidiano neutralizado pelo capital pós-industrial, padronizado e asséptico, é interrompido por uma força inesperada que vem de fora – catástrofe e revolução: política do inesperado. Capital e suas bordas, moderno e não-moderno, a grande corporação dos executivos engravatados e o espaço do ferro velho, tudo é atravessado por algo que os torna parecidos. Por vezes, a indiscernibilidade é tão grande que as fronteiras implodem: os cômodos sujos do hospital em Cure, os quartos escuros de Pulse.

Em Sonata de Tóquio, este procedimento é radicalizado e o espaço de fora é já, desde o princípio, indiscernível do espaço de dentro. A fronteira mesma é um fantasma, uma ausência, uma ruína. A vida organizada de uma família de classe média começa a ruir quando Ryūhei Sasaki (Turuyuki Kagawa), o pai/marido, é demitido da empresa onde trabalha, a qual passa a contratar mão-de-obra barata vinda da China. Aqui, a ruína é o próprio sistema, abjeto por natureza. Quando vemos Ryūhei tornando-se mais um dos corpos sem rumo que vagam pelas margens de Tóquio, juntando-se a mendigos, moradores de rua, e toda sorte de lúmpen do capitalismo contemporâneo, o que ocorre é a abertura de uma fenda operada pelas próprias forças que a pretendem rechaçar: o dentro/fora torna-se uma impossibilidade. Num movimento de resistência, quanto mais invisíveis, mais visíveis se tornam esses corpos-fora-de-quadro. Quanto mais abjeto se torna Ryūhei, mais ele reproduz aquilo que o cancela, mais ele se torna o próprio sistema que do qual foi expelido, proibindo o seu filho Kenji (Kai Inowaki) do uso não-produtivo do seu tempo através das aulas de piano. Como um analfabeto estético, ele não sabe o que fazer com seu tempo, não admite uma nova forma de vida para si ou para os outros, e se torna tão autoritário com seu filho quanto aqueles empresários que tanto odeia por não o contratarem. Enquanto isso, seu filho mais velho, Takashi (Yū Koyanagi), decide se alistar para o exército estadunidense, tornando-se uma clara metonímia para a escalada do discurso da direita conservadora que se alastra no país – e no filme. A catástrofe se anuncia e é esperada. Mas esta catástrofe é paradoxal, por ser perene: ela é o próprio cotidiano.

Sonata de Tóquio: Ryūhei e as margens da cidade

Sonata de Tóquio: Ryūhei e as margens da cidade

A interrupção dessa catástrofe vem da própria narrativa, numa reviravolta que se passa em uma noite. Um assaltante fracassado invade a casa dos Sasakis e sequestra a mãe/esposa Megumi (Kyoko Koizumi), e entre os dois se inicia uma relação de violência e afeto que dura uma noite. O filho Kenji, após ser agredido pelo pai por tomar aulas de piano, foge e dorme em uma prisão, dividindo a cela com homens adultos. O pai Ryūhei corre pelas ruas, onde é atropelado por um carro e dorme no meio-fio, como um corpo morto. Uma noite se passa, eles retornam à casa. Nada muda, porém tudo mudou. Mudou o regime estético onde se encontram aqueles indivíduos e seus corpos – mudou o próprio filme. Se entendemos a narrativa como produção de desejo, um desejo em espera eterna e já capturado pelo fluir “natural” das ações, o que encontramos em Sonata de Tóquio é sua interrupção e renovação pelo inesperado que surge de seu próprio interior. Como o capitalismo precário, a narrativa fílmica é sua própria ruína.

* * *

As ruínas, as máquinas, e o questionamento do humano não são temas novos para o cinema contemporâneo – japonês ou não. Contudo, Kiyoshi Kurosawa traz algo diferente do corpo que vira máquina, como acometido por uma doença, visto nos filmes de Shinya Tsukamoto, ou mesmo a viscosidade abjeta da revolta do vídeo de David Cronenberg; distinto também da natureza encantadora de Naomi Kawase, ou dos escuros e perigosos bairros da máfia de Takashi Miike. Kurosawa propõe uma plácida força pulsante da ruína que encontra-se por todos os lados. Lembro aqui de outras ruínas: as fotos de Yutaka Takanashi, da década de 1960 – um crucial momento do pós-guerra, em que o projeto moderno de progresso despontava como um rolo compressor e o passado era friccionado em contato inevitável com o presente, em prol de um futuro purificado. Eram os anos 1960 no Japão, do boom econômico, dos Jogos Olímpicos de Tóquio, da higienização do passado, e da renovação das relações político-econômico-militares com os Estados Unidos. Esta década viu a erupção de uma potência revolucionária no país, que se alastrou por todo o Japão por conta do movimento contra a renovação do Tratado de Segurança EUA-Japão (Anpo), em 1960 e 1968, evidenciando buracos na produção/captura moderna dos desejos. A modernidade, objeto renovado, mais uma vez, mostrava sua face de ruína.

Nas fotos de Takanashi, participante da revista Provoke, que movimentou a fotografia no pós-guerra japonês, o que vemos é que os fantasmas e as ruínas, já estavam presentes no cerne do “progresso” em direção ao novo que se instalava na sociedade japonesa e fazia proliferar esses humanos-não-humanos. Fotografando as grandes cidades japonesas em transformação, especialmente Tóquio, Takanashi captava a impureza que já assombrava as metrópoles desejosas de futuro. Espaços escuros, pessoas-robôs, objetos animados: ruínas de uma modernidade prometida.

Toshi-e, Yutaka Takanashi, 1968.

Toshi-e, Yutaka Takanashi, 1968.

Como Takanashi, mas com a imagem movente e irrecuperável do cinema, Kiyoshi Kurosawa propõe uma política do estranhamento – unheimlich, como disse Freud – através da ambiguidade do familiar que é assombrado pela quebra de suas fronteiras com o não-familiar. Tóquio, espaço de grande parte de seus filmes, é este lugar onde as temporalidades se cruzam à maneira das inúmeras linhas de trem que cortam o corpo da cidade. O fluxo contínuo do cotidiano é sempre interrompido, de forma sutil, por uma outra temporalidade. Se os anos 1960 foram o “fim do pós-guerra”, como anunciado pelo discurso triunfalista de então, Kurosawa nos alerta que o fim não aconteceu jamais, mostrando-nos a necessidade de entendermos a positividade imanente à ameaça da ruína e da catástrofe que nos acompanha.

Sonata de Tóquio (2008), Kyioshi Kurosawa

Sonata de Tóquio (2008), Kyioshi Kurosawa

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