O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), de John Ford (EUA, 1962)

fevereiro 17, 2014 em Dalila Martins, Em Vista

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Um estranho interlúdio
por Dalila Martins

O Homem que Matou o Facínora (1962), do ‘cacique irlandês’ John Ford, não é apenas um western, mas um ensaio sobre o western. Constitui-se como ensaio na medida em que é um filme “mais dinâmico que o (…) tradicional, por causa da tensão entre a exposição e o exposto (…) mas, ao mesmo tempo, mais estático, por ser uma construção baseada na justaposição de elementos (…), embora esse caráter estático seja, ele mesmo, fruto de relações de tensão até certo ponto imobilizadas”. Transponho tais palavras de O Ensaio Como Forma, pois, segundo Theodor Adorno, essa é a única via possível de aproximação entre ensaio e imagem. Purismos à parte, elas ressaltam com precisão a mise en scène de Facínora, que não somente analisa a colonização do Oeste pela investigação de sua origem e teleologia, mas, sobretudo, pela compreensão do impulso metamórfico de sua mística, que controverte seus princípios. A ambiência icônica e a tipificação características do estilo fordiano ganham uma dimensão de comentário crítico, porque estão dispostas numa estrutura narrativa anacrônica, acionada através de um flashback e de um flashback dentro do flashback, abismalmente. É como se todos os procedimentos empregados na fatura de um western contivessem em si o gérmen do arruinamento. O apelo do presente editor do jornal Shinbone Star (Carleton Young) ao então senador Stoddard (James Stewart) – “I have a right to have the story”, americanamente pragmático e calcado no Direito – sintetiza o ímpeto reflexivo e deslocado da trama. A história reivindicada é o que motiva o casal Stoddard a retornar à cidadela de Shinbone, após tantos anos de metiê político, em Washington D.C.. Mesmo antes da explicação proferida sobre a causa da visita, contemplando vida e morte do então desconhecido Tom Doniphon (John Wayne), o tom macambúzio de Facínora já se impõe audiovisualmente, pela fotografia, pelo cenário, pelo figurino e pela atuação: deduz-se prontamente que se trata de um trabalho de luto.

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Acostumado com o technicolor dos filmes de Ford desde o final dos 1940, o espectador é surpreendido pela fotografia estóica de William H. Clothier, em um preto e branco nada exuberante. O plano médio que mostra o ex-xerife Link Appleyard (Andy Devine) e a Senhorita Hallie (Vera Miles), então Senhora Stoddard, é a própria duração da melancolia. Sentados um ao lado do outro em uma charrete, seus olhares se perdem ora no horizonte, ora em suas recordações.

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Tal reenquadramento – por um leve, quase estático, movimento de aproximação da câmera, depois de um estranho faux-raccord – pesa por conter uma substância que aponta, com fugacidade, para o fora-de-campo. O fora-de-campo, que será apresentado posteriormente, é aludido por contraste, pelas mudanças visíveis e audíveis enumeradas por Hallie: eis uma nova cidade, agora com escolas, lojas, igrejas e postes de eletricidade, bem distinta daquela com que estava acostumada, de becos escuros, habitada por bêbados cambaleantes em jogos de azar e constantemente amedrontada pela ameaça de forasteiros. A antessala da casa funerária, onde Ransom Stoddard conta sua versão dos fatos, está repleta de objetos antigos e empoeirados do Velho Oeste que habitou, como uma espécie de museu esquecido. Inversamente proporcional é o cenário do flashback que se deixa transparecer enquanto constructo, ou seja, enquanto uma criação mental que exemplifica teorias ou uma percepção que combina memória e acontecimentos atuais. A transição de um período a outro redefine alguns semblantes e institui tantos outros em uma densa atmosfera de suspensão. O deserto, entretanto, pela constatação de Link, permanece igual (“Desert’s still the same”), apesar da sua falta de monumentalidade perante a primazia de tomadas internas. A afirmação se refere, talvez, a uma segunda natureza da palavra deserto – não no sentido geográfico, já que o deserto foi irrigado e agora é fértil, produtivo, e nem tampouco no sentido messiânico, pois, na concepção de Hallie, tornou-se o jardim do Éden, onde frondam macieiras (“Aren’t you proud?”) – mas no sentido do wilderness, um termo de difícil definição por aludir a um estado de espírito variável, contudo sempre vertiginoso, e geralmente associado a um lugar fronteiriço.

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Em seus escritos, Henry David Thoreau associava esse lugar fronteiriço a onde quer que um homem enfrente um fato. O Homem que Matou o Facínora é justamente a impressão da lenda como fato. “This is the West, sir, when the legend becomes fact, print the legend”, esclarece Maxwell Scott ao rejeitar a história revelada por Stoddard. O importante não é desmascarar o mito contando a verdade, mas salientar sua função social na concepção da História: quando o processo histórico ganha um catalisador, ele é irreprimível. Grande parte do filme se passa nos bastidores: a antessala funerária onde a confissão é testemunhada; a cozinha do casal de suecos onde Ranse corteja Hallie com discrição; o escritório do Shinbone Star onde Dutton Peabody (Edmond O’Brien) redige sua notícias; a edícula que Tom erige para Hallie em seu rancho; o bar em que Liberty Valance (Lee Marvin) bebe e joga na espera de ser confrontado por Stoddard; o beco em que Pompey (Woody Strode) aguarda para levar Ranse embora da cidade; etc. É do poscênio que o espectador observa à distância o surgimento da lenda de quem matou Liberty Valance e o decorrente espetáculo político da nomeação de uma vaga no Congresso para a discussão acerca da demarcação de limites estatais. Envergonhado pela autoria do assassinato a sangue frio, Stoddard deixa o espaço da eleição, mas Doniphon o convence a desistir da derrocada, revelando um detalhe crucial do ocorrido. No flashback dentro do flashback, um plano geral, tomado a partir de uma viela parcamente iluminada, mostra Tom e Pompey, cada qual em uma borda, na espreita do duelo entre Rance e Valance, até o tiro fatal do rifle de Doniphon – como se a extensão do entendimento fosse inerente à amplitude do campo de visão. Semelhante esclarecimento de viés, pelos modos transversos da imagem, é a entrada triunfal de um cowboy à la Tom Mix na tribuna, uma deturpação comercial televisiva em meio a um filme sóbrio. Demonstram-se, assim, as coisas como realmente são, suas relações paradoxais entre aparência e essência – um perfeito Realismo brechtiano, como gostaria Jean-Marie Straub. Analisa-se a maneira pela qual os ornamentos da sociedade, em uma determinada conjuntura histórica, interferem nas aspirações individuais legítimas. Há uma mudança significativa operada por John Ford na adaptação do conto de Dorothy M. Johnson, em que o senador não confessa a ninguém a falácia de sua peripécia. No filme, o dilema moral se afasta da esfera psicológica e se estende ao domínio público, a conveniência deixando de ser voluntariosa para cingir-se à convenção, à ideologia.

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Tais aspirações individuais legítimas são ecos dos ideais peregrinos. Pilgrim, aquele que percorre uma jornada até um local sagrado, é justamente o apelido cunhado ironicamente para Stoddard, que rumou ao Oeste inspirado pelo conselho de Horace Greeley, jornalista, abolicionista e fundador do Liberal Republican Party: “go West, young man, go West and grow up with the country”. Os antigos preceitos correspondiam à conquista do território inóspito, à expansão das fronteiras e à invenção de novos caminhos para a civilização. A natureza hostil era um empecilho a ser eliminado sem misericórdia; não obstante, o embate que o Homem travava com o mundo natural estimulava o desenvolvimento pessoal virtuoso, longe das amarras da sociedade – os denominados self-made men. Mas o Oeste era tão livre e tão vasto, as barreiras para o aperfeiçoamento pessoal eram tão remotas, que os pioneiros dificilmente tinham consciência de que algum risco à igualdade poderia advir da competição por recursos naturais. Com o povoamento efetuado e aperfeiçoado, a dialética entre indivíduo e imensidão (junto à sua aura espiritual) fora esgotada, transfigurando tais valores para a medida da problemática explicitamente capitalista, com suas relações de classe. Contra a barbárie propriamente humana, então, a lei se fez necessária e o herói desbravador perdeu seu prumo. É o que a “lógica brutal do flashback” em Facínora, de acordo com a   exatidão de McBride e Wilmington, acaba por provar: o pioneirismo é um mero catalisador de inevitáveis forças históricas. E sua figura exemplar é Ransom Stoddard, homem criado no Leste, representante da lei e do ensino e futuro agente político, cujo aporte na região ao Sul do Rio Picketwire, ou Rio Purgatório, dá-se, entretanto, por meio de violência. Em um assalto a uma diligência, depois de ter seus livros rasgados por defender uma viúva – as normas e a etiqueta de nada serviriam, apenas as armas -, é brutalmente chicoteado pelo bando de Liberty Valance, o mesmo que atua como uma espécie de milícia a mando dos ganadeiros do Norte, para a manutenção de uma zona livre de legislação e fisco. A contradição se coloca: seus modos são civilizados, mas sua motivação é a vingança. Mediam-se paixões primitivas, adequando-as à coletividade, eis a tensão até certo ponto imobilizada.

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Outra crise dos princípios clássicos americanos é precipitada no ato de fincar raízes. O Homem que Matou o Facínora é o revés do enraizamento. O cacto florido é duas vezes arrancado do solo – um gestus: primeiro, como um agrado de Tom Doniphon a Hallie, para cultivo em seu canteiro atrás do restaurante onde serve pratos; depois, como o adorno sepulcral com que Hallie homenageia seu falecido pretendente. A planta carrega, então, a carga do fracasso da constituição da família desejada, é o símbolo da impossibilidade. Se em outros westerns, mesmo nos mais obscuros, o núcleo familiar é frequentemente desmembrado e erodido, há sempre uma força agregadora que incorpora elementos heterogêneos, respeitando suas peculiaridades. Esta é, inclusive, a idiossincrasia do cinema de John Ford. Seu apreço por tipificações, em que “cada personagem habita seu pequeno mundo e o satura com a vibração de sua alma”, adentrando o terreno gallagheriano, é uma aposta no estabelecimento da harmonia frente ao caos da realidade. Pois as identidades se fortalecem no pertencimento, ainda que a totalidade permaneça fragmentada. Não importam os percalços, seus filmes parecem bradar, a felicidade há de triunfar através daquilo que é extraordinário justamente por ser lábil. Segundo Walter Benjamin, “a felicidade é o que liberta aquele que é feliz das cadeias do destino e da rede de seu próprio destino”, entretanto, a outra face da moeda de troca é o sacrifício, que delineia o traço de caráter. Após salvar Stoddard da morte certa pela mira de Liberty Valance, Tom ateia fogo à sua casa por não suportar a escolha amorosa de Hallie. O incêndio quase o mata e ele parece vagar sem paradeiro desde então, tal qual Ethan Edwards (o mesmo John Wayne) em Rastros de Ódio (1956). “I’ll be around”, são suas últimas palavras à senhorita. “Às vezes, o herói fordiano se assemelha a um herói hegeliano: sua presciência inata leva a comunidade para o próximo ideal, mas ele mesmo está fora da história biológica” e “embora seja um pilar da sociedade, ainda é um marginal”, tal é o apontamento de Tag Gallagher. Seu sacrifício – sobreviver sozinho como assassino a sangue frio – purifica o mito; sua utilidade – legitimar a lenda da valentia em prol da comunidade – dinamiza a História.

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O Homem que Matou o Facínora toca sem rodeios nas feridas da história americana. E também nas de toda mitologia do Oeste. O imaginário do western abarca índios, cowboys, foras-da-lei, xerifes, saloons, prostitutas, jogatina, caravanas, fortes, a cavalaria, etc. Porém, é raro que negros sejam contemplados nas obras acerca do assunto, apesar da existência de alguns célebres, como o cowboy Nat Love, famoso por sua façanha em um rodeio em Deadwood, Dakota do Sul, ou Bass Reeves, agente federal a Oeste do Rio Mississippi. Na contramão da cultura, John Ford escalou Woody Strode, um renomado atleta de decatlo e futebol americano, para o protagonista de Audazes e Malditos (1960), o sargento Rutledge, convidando-o a atuar também em Terra Bruta (1961) e Sete Mulheres (1966). Em Facínora, Strode interpreta Pompey, o leal ajudante faz-tudo de Tom Doniphon. É ele quem cobre a retaguarda de Tom em incidentes azafamados pelo bando de Valance; dirige a construção do quarto anexo para Hallie no rancho; cuida dos cavalos da propriedade; provém o transporte da fuga de Stoddard; salva seu patrão da tentativa de suicídio. Todavia, não possui nem sobrenome e atende ao ordinário, ainda que, pela parte de Tom, não intencionalmente pejorativo, ‘my boy’. Assim também, sem rancor e revolta, fica à parte, abaixo dos cidadãos, digno em sua postura resignada, impedido de votar na celebração da jovem democracia. O cineasta não faz da questão o tema central, mas a destaca em algumas sequências, como na cena em que Tom se embebeda amargurado, depois de flagrar Hallie abraçada com Ranse, e confronta a posição do barman que se nega a servir clientes afrodescendentes. A mais contundente, entretanto, orquestrada de maneira a devir exemplar, é a cena da aula sobre moral e cívica, em que Stoddard indaga sobre o regime de governo dos EUA e sobre a Constituição promulgada. “It was written by Mr. Thomas Jefferson of Virginia and he called it Constitution”, Pompey arrisca a resposta. “Declaration of Independence”, o professor corrige. E Pompey prossegue, hesitante, “and it began with the words… we hold these truths to be self-evident…”, admitindo não lembrar da continuação. Ransom, então, completa: “That all men are created equal.” E pontua, com ironia, que muita gente realmente esquece dessa parte – uma referência clara, tragicômica, bem ao estilo fordiano, à escravidão em tempos de luta pelos direitos civis.

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Estruturalmente, pode-se concluir que O Homem que Matou o Facínora funciona por duplicação qualitativa: História x mito; wilderness x jardim; indivíduo x sociedade; felicidade x sacrifício; etnia x cidadania, etc. E o emblema desse enredamento de duplos é a paridade dos planos de abertura e encerramento do filme. Suas pontas apresentam o mesmo trem – quiçá não literalmente o mesmo comboio, mas provavelmente os mesmos dormentes, em uma mesma época, os anos 1960 – aproximando-se e partindo do local onde a câmera se encontra. O ângulo das tomadas é também o mesmo, mostra montanhas ao fundo e os trilhos na diagonal, cortando do canto inferior esquerdo até o meio da borda direita, de modo a demarcar o ponto de fuga, mas a deixar uma boa porção de céu à vista – um terço do enquadramento. Essa divisão em terços tensiona o direcionamento do olhar: sugere que o espectador acompanhe a linha do trem em profundidade, mas enfatiza a planificação do horizonte – o que instaura certa maleabilidade em uma geometria euclidiana. Apesar das semelhanças, há uma diferença crucial e aberrante no movimento e na luz: o plano de abertura é fixo, sua iluminação condiz com a fotografia do restante do filme, porém o plano derradeiro é tremido e lavado. Difícil precisar se é uma câmera na mão ou um tripé cambaleante, uma falha no contraste da cópia ou uma superexposição intencional, mas o efeito é seguramente arrebatador. Principalmente, considerando o primor pictórico com que John Ford compunha seus quadros e sua mise en scène – um estudioso das pinturas de Charles Schreyvogel, de temática western, com muitas cenas de ação. Ademais, independente do fotógrafo com quem trabalhava, seus movimentos de câmera sempre foram sutis e cadenciados. Por que então fazer desse plano o corolário? Tal procedimento estilístico não deixa de repercutir o lastro do Cinema Verdade e do Cinema Direto, efervescentes na década de 1960: uma determinada fatura documental, de cunho sociológico, contraposta à Hollywood ficcional de cores saturadas, dos anos 1950. A apropriação expressionista da linguagem do documentário – a inserção de uma triste balada na banda sonora coroa a emoção – gera dobras temporais. Sabe-se que a imagem observada foi captada nos anos 1960, mas talvez aquele trilho, além de remontar ao período progressista de implementação das ferrovias nos EUA, em meados do século XIX, tenha sido de fato construído naquela data. Ford parece querer evidenciar um curto-circuito entre História e Eternidade: sua perspectiva é a da retrospectiva. A paisagem é incerta, um entrave à contextualização, fazendo do presente, nas palavras do dramaturgo Eugene O’Neill, “um estranho interlúdio em que suplicamos ao passado e ao futuro a atestarem que ainda estamos vivos”.

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