Restrospectiva Vermelho Profundo

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima

* Cobertura da 9a Mostra Cine BH

O Desejo do Morto (2013), Ramon Porto Mota

O Desejo do Morto (2013), Ramon Porto Mota

Terror, um gênero brasileiro
Paulo Santos Lima

O terror é o gênero possível no Brasil. Sua marginalidade (na história do cinema, inclusive), sua natureza extremamente cinematográfica, herdeira da trucagem e do fantástico, dos parques e do primeiro cinema, sua condição de revelar uma segunda camada, mais obscura e profunda, seu caráter transgressivo (como a comédia brasileira já teve, mas o que já foi Simão, o Caolho, do Cavalcanti, uma chanchada do Manga ou Watson Macedo, ou as comédias cariocas dos anos 1970 e as crônicas amorosas da Boca, hoje é a comédia desgraçada que decorre da TV em tudo que esta tem de protocolar, conservadora e pouco cinematográfica), seu desinteresse pela “pureza”… enfim, tudo isso coincide com um estado de coisas típico da experiência cinematográfica brasileira em excelência. Se os filmes policiais merecem também um olimpo na cinematografia nacional (e um espaço neste texto), é por estarem em raia próxima à do terror, por seguir uma certa gramática alternativa ao modelo mas trazendo uma essência tão fiel ao determinante gênero policial quanto reveladora de um contexto de margem, este do Brasil, país cujo drama está na tragédia do desfalecimento de projetos ou de uma derradeiro desvio de percurso: Barra Pesada (Reginaldo Farias, 1977), Eu Matei Lúcio Flávio (Antonio Calmon, 1979), O Amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974), O Marginal (Carlos Manga, 1974), O Rei da Boca (Clery Cunha, 1982), alguns dos filmes mais próximos “do gênero”, mas carregando certa deturpação material que nem é a do filme B americano, mas de um Brasil na beira do penhasco. Bacana lembrar que Inácio Araujo, crítico da Folha, num texto recente do espaço de TV Paga do jornal, encontrou síntese que explica por que um filme policial como Segurança Nacional dá errado (ou, na palavra dele, “é ridículo”): querer ser filme americano mas não ser, pois o cinema americano estabelece um pacto entre espectador e instituições ao passo que aqui há uma rejeição às instituições. É desse tipo de desastre que os filmes de terror brasileiros não sofrem. Porque há uma certa paridade absoluta entre o nacional e o estrangeiro, tanto no lugar que o gênero ocupa no contexto cinematográfico mundial quanto nos paradigmas e gramática de realização.

A história do cinema de terror no Brasil é de excelência. Não apenas pelos filmes  firmarem contato (orgânico e definitivo) com o país, revelando os infernos, a zona escura, o indescritível, o impossível, através de uma imagem que condiz com um mundo atraente e brutal que é este nosso país, mas porque sua figura capitular, José Mojica Marins, assina um cinema de alta finesse estética que troca o diálogo com a literatura fantástica e gótica feito pelos clássicos americanos e europeus dos anos 1930-1960 pelo diálogo com uma cultura popular que aproxima o filme de uma matéria mais primitiva e brasileira. A obra de Mojica é um pórtico continuado por outros cineastas: do magnífico hibridismo entre comédia e terror no cinema de Ivan Cardoso, nos anos 1980, e o refinamento de um estilo em Dennison Ramalho, nos anos 1990, às experiências “estudantis” independentes nos anos 2000 (lembremo-nos que M. Night Shyamalan esboçou seu futuro cinematográfico em empreitadas caseiras) e uma crença na tradição do terror, por exemplo, na forte obra de Rodrigo Aragão, cuja produtora, a Fábulas Negras, tornou-se um nome referencial.

Se a carta de filmes do Fábulas Negras é mais fiel ao que é convencionado como cinema de terror, a partir do gore e do foco no efeito (sem com isso ser menos forte, pelo contrário), a Vermelho Profundo, produtora de Campina Grande (PB) que teve uma ilustrativa retrospectiva nesta edição do CineBH, não é menos afinada ao cinema de gênero, mesmo operando numa chave mais híbrida, aparentada dos exploitations norte-americanos dos anos 1960-1970, entrecruzados entre ficção-científica, biker movie, horror etc. A Cinética já tem um ótimo texto sobre a produção de curtas na Paraíba, o que passa pelos filmes desta produtora, que trabalha junto a cineastas independentes e outras formas de parceria cinematográfica e entre diretores. A Vermelho Profundo tem um currículo diversificado, com projetos de séries de TV, filmes policiais, comédias etc., mas o recorte feito pelo CineBH na verdade dizia respeito ao thriller, terror, filme de gangue, drama, documentário… Porque os filmes da produtora – no geral, grandes exercícios de cinefilia e de estilo – acabam coincidindo com um certo tom e olhar sobre o mundo (diegético ou mesmo de visão de mundo). Filmes híbridos, com gêneros misturados, só que assentados no terror porque mantém certos paradigmas gramaticais do gênero, mas sobretudo por repetir um olhar de intervenção crítica (reveladora) sobre um certo mal-estar. Mesmo o exploitation não é uma facilidade, mas sim uma “sensacionalização”, o que significa uma espécie de incômodo e sublimação em meio à catarse pretendida.

Mais Denso que Sangue (2012), Ian Abé

Mais Denso que Sangue (2012), Ian Abé

Talvez o exemplo mais próximo desse cinema de consumo (e apelo) rápido seja Mais Denso Que o Sangue, de Ian Abé, sobre um homem que vai à forra contra um homem e seu grupo de motoqueiros. Do reprocessamento à rebeldia pós-beatnik anos 1950 dos biker movies e uma mise en scène de western no duelo final, o que vem ao caso é um lastro sombrio sobre o qual o enredo está engendrado. A economia quase sintética de elementos em cena, algo do Mad Max de 1979, abre espaço para a figura do antagonista, que participava duma encenação de Semana Santa e, por isso, sua imagem é, literalmente, a de Cristo. Antes de ser visto pilotando sua motocicleta, apertando gatilho de arma e chutar seu inimigo ao chão, como um Cristo justiceiro, ele já será um Cristo desvirtuado, tão distante quanto semelhante do cânone.

Esse Cristo possui uma nódoa, uma mesma substância impura dos filmes de exploração, de um certo cinema B e, claro, do terror. Um documentário como Enquanto a Justiça Tarda, de Fabiano Raposo, parece estar em mesma gleba do terror de Os Mortos, de

Os Mortos (2015), Jhésus Tribuzi

Os Mortos (2015), Jhésus Tribuzi

. O primeiro fala sobre o grupo de extermínio Mão Branca, cujos atos e impunidade são tão sinistros quanto o enredo de Os Mortos: o antigo morador de uma casa à venda (vivido por Tavinho Teixeira, genial) arma um aparato com o qual ele poderá estudar melhor uma misteriosa mancha na parede, o que perturba o encanador contratado para justamente consertar o vazamento. O aparato, na verdade uma câmera conectada a um computador cuja tela em nada difere das nossas, será a base macabra da tensão. Todo a expectativa estará numa cotidiana situação, esta dum ícone de carregamento de conteúdo de página girando quase ad infinitum. O aparato tecnológico tem força, vinculando os dois personagens (o encanador tem apenas os SMS do celular como zona de fuga daquele espaço), mas sua presença não é pro fetiche ou para o filme-dispositivo, e sim como inevitável item cotidiano, de vida comum, extra-diegética inclusive, essa de paredes com vazamento numa casa qualquer à venda ou de um sujeito (o sinistro personagem de Tavinho Teixeira) abatido pela morte de seus amores.

Esse realojamento (e não deslocamento) do determinante do gênero – e, por isso e também, do ponto dramático – ganha forte tônus nos trabalhos dirigidos por Ramon Porto Mota. Codirigido com Anacã Agra, O Hóspede é, entre os seis curtas, o melhor exemplo de filme de gênero. Suas referências são claras, partindo dos thrillers sci-fi dos anos 1960 e fotografia expressionista a uma certa crueldade entre personagens que parece coisa de Fassbinder, com o John Carpenter de They Live e The Fog borrifado ao longo do filme. Mas, a priori, há um tal redimensionamento desse diálogo cinefílico que nem está em questão a reprodução ou não de um modelo, de um gênero, de um determinado filme. Há uma medida que ajusta o tom do filme, e a tal camada escondida (mistério? terror? ficção? filme de arte europeu?) ganha densidade.

O Hóspede (2011), Ramon Porto Mota

O Hóspede (2011), Ramon Porto Mota

Outro filme de Ramon Porto Mota (aqui em direção solo), O Desejo do Morto é… um drama familiar. Sim, entre um pesadelo inicial e uma virada para um grand guignol ao som de “Ashes to Ashes” e de “Scary Monsters” (e, por isso, numa toada entre giallo e terror-pop-chique), há a situação exasperante de um viúvo, Dario Medeiros (Fernando Teixeira, o melhor ator brasileiro da atualidade), que deseja morrer para reencontrar a amada, mas a filha, genro e netas não o levam a sério. O suspense instala-se na crise doméstica, não como ameaça, mas como melodrama, pois temos um sujeito contra toda uma ordem das coisas legitimada. Referências diretas, as músicas não surgem à toa: menos pela citação telegráfica do “cinzas para cinzas” e dos “monstros assustadores”, estas são algumas das músicas em que David Bowie sugeria personagens, ou melhor, reencarnações que poderiam operar na narrativa humana, numa chave narrativa à Walter Benjamin. E a música do The Clash encerra os créditos, noutra inspiração dos filmes dos anos 1950 mas em registro saudo-revisionista bem a ver com o The Clash. Há, nos créditos finais, em agradecimento, o nome de Philip Roth, autor de Patrimônio, livro onde o autor reconhece o pai já falecido.

O gordo parágrafo de citações, contudo, não impede que O Desejo do Morto seja um drama familiar cuja catarse ocorra com o horror. E que seja, assim, um filme de terror. À parte as misturas e os deslocamentos, o que está em jogo, pelo menos nos seis filmes exibidos em BH, é um cotidiano que não está a serviço do exercício de gênero, mas que se revela algo sinistro, misterioso ou torto – o que consolida um exercício de gênero, um certo gênero mais que outro, o terror mais que a aventura ou o drama. O terror é nosso gênero possível porque, mesmo contaminado, ele ressurge como cinema no sentido mais puro da palavra.

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