Terremoto Santo é possivelmente a manifestação mais desconcertante da pesquisa atual dos artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Conscientes da função apaziguadora que uma certa ideia de cultura popular ocupou na formação dos imaginários nacionais e regionais, e ao mesmo tempo muito sensíveis às ambivalências políticas do cinema e da fotografia etnográficos, os artistas têm se lançado a um questionamento das formas de visibilidade do que chamam de “corpo popular”. A pesquisa tem resultado em um conjunto notável de filmes de curta duração, inicialmente produzidos para o circuito de artes visuais, mas que circulam igualmente em festivais e espaços de cinema. O que caracteriza em um primeiro momento seus filmes é o encontro entre uma pretensão de observação herdeira do cinema etnográfico com a paixão pelo artifício própria do gênero musical. Este encontro se dá a partir do estudo de um determinado milieu de criação musical, no qual se produz a visibilidade de corpos socialmente marcados. O frevo de palco, a música Brega em Pernambuco, a música Schlager na Alemanha serviram como ponto de partida de seus filmes anteriores. Terremoto Santo, por sua vez, se põe diante do universo da música gospel.
A partir de uma parceria com a gravadora de música gospel Mata Sul, da cidade de Palmares, na Zona da Mata em Pernambuco, Wagner e de Burca estabeleceram o contato com um pequeno grupo de cantores membros de igrejas pentecostais, em geral bastante jovens, que encontraram na música gospel uma possibilidade de trabalho. O desejo de refletir sobre o surgimento de uma nova classe média evangélica no país e da emergência da música gospel como expressão cada vez mais importante dentro da indústria fonográfica brasileira orientou uma forma muito particular de construção colaborativa. Convidados a fazerem parte do filme, os jovens cantores participaram da criação de performances musicais, elaboradas a partir dos cantos de louvor por eles escolhidos. O filme parece, assim, operar em um duplo movimento, procurando compartilhar os esforços de imaginação de seus personagens, ao mesmo tempo em que toma distância e observa as imagens atentamente, apostando que há muito o que ver naquelas performances. Terremoto Santo se transforma, assim, em um estudo atento de uma certa forma de habitar o mundo e de expressá-la no corpo, nas imagens e na música.
A primeira sequência, a dos cantores Caique Alves e Jeiziane Maria, instaura em grande medida o tom geral do filme. Um plano aberto nos mostra o cantor de paletó, do alto de uma montanha, contemplando a vista. O jovem se senta na pedra, à beira de uma corrente de água. Com o rosto franzido, joga uma flor branca na água, em um gesto de desesperança. A paisagem são as matas e morros da região, mas tudo na imagem colabora para que se evoque uma ideia de natureza genérica e artificial, reminiscente da iconografia decorativa de calendários populares, correntes de e-mail motivacionais e panfletos de pregação religiosa. A canção versa sobre ser escolhido, mas também sobre resistir e perseverar em meio à aflição. “Você foi chamado para ser vencedor. Por que querer parar na caminhada? Acredite, tudo isso vai passar e o hino da vitória você irá cantar”. Um punho levantado em riste pela cantora acena um gesto de superação. “Só depende de você para isso acontecer. Levante a cabeça e tome posse da vitória”. O cantor, que até então se mantinha em silêncio, levanta-se em um salto de confiança, não mais triste ou desesperançado, e canta: “Deus escreveu a sua história com as próprias mãos. Não tem ponto ou interrogação. A vitória é garantida”. O cantor se dirige frontalmente para a câmera, como se estivesse em um altar, mas também como se fosse um palco. A sua figura é a de um líder motivacional, a sua mensagem é a promessa de uma autolibertação. A promessa de vitória é reforçada pela cor, nitidez e clareza um tanto hiperreais da fotografia, que o filme nunca vai abandonar, reminiscente de uma certa plasticidade própria a imagens que expressariam valor, como a dos editoriais de moda, dos vídeos inspiracionais e da publicidade.
Uma variação em torno dos temas do primeiro canto, como o da virtude de ser escolhido, o da perseverança em momentos de aflição e o da promessa de transformação, retornam no canto de Joelysson Anderson. Com a camisa roxa, sob a luz de uma lua artificial, o cantor encarna a voz de José do Velho Testamento, filho de Jacó, que ganhou a túnica de várias cores de seu pai, como relatado no Gênesis. “Ganhei uma túnica. Não pedi. Não comprei. Não barganhei. Ganhei. Ganhei uma túnica. (…) Mas uma coisa que eu não entendi é que quando aquela túnica vesti causou inveja entre os meus irmãos. (…) Me diga mesmo que culpa tenho eu, se o Pai gostou de mim e me escolheu”. O canto não apenas retoma o motivo do “ser escolhido”, mas o situa em um contexto conflitivo, no qual nada garante que todos possam conquistar os mesmos privilégios. A canção termina com José, que, tendo crescido no “anonimato”, torna-se governador. “Sepulta o ciúme e fica em paz, porque eu não vou deixar tomar o que é meu”, canta com a sua imagem duplicada em um espelho, onde aparece vestindo a túnica. O canto de Joelysson começa onde parou o canto de Caique e Jeiziane: a vitória foi enfim conquistada e, com ela, as ansiedades da nova posição na sociedade.
Terremoto Santo é permeado pela crença de que os cantos de louvor são a expressão de uma transformação social em curso. A religião pentecostal é ainda em grande medida uma fé de convertidos, isto é, uma religião de pessoas que escolheram se transformar. A escolha em trabalhar apenas com artistas gospel de Palmares, contudo, nos deve alertar que o interesse do filme reside menos em uma experiência da cultura gospel brasileira em geral, do que em sua instanciação em uma situação profundamente singular. Como relatam Wagner e de Burca, a escolha de Palmares não é fortuita. Centro econômico da região, a cidade é para onde migram trabalhadores rurais das redondezas e onde se constitui uma nova classe média emergente, formada por pequenos empreendedores. A experiência da Zona da Mata pernambucana é também indissociável da memória da violência colonial. A região permanece dependente da produção latifundiária de cana-de-açúcar, e sua população, formada em sua grande maioria por descendentes mestiços de índios e africanos, subsiste por meio de regimes de trabalho marcadamente coloniais. Os cantos de louvor são apresentados como manifestações da disciplina de transformação espiritual que muitas vezes exige o projeto de ascender socialmente, mas também como ecos de um grito de libertação mais profundo, que talvez não seja redutível à simples ideia de mudança pelo empreendedorismo de si.
O filme retira seu título, justamente, de uma canção onde o louvor aparece sob o signo da libertação. Em um altar montado no alto de uma rocha, com as costas voltadas para uma cachoeira, Tacy Silva canta: “o poder da oração faz prisão se abalar, quando o louvor ungido sai da boca de um fiel. As correntes e os grilhões são arremessados ao chão”. A canção que abria Terremoto Santo servia para motivar o escolhido a perseverar na sua luta e o responsabilizava individualmente pela transformação, sugerindo certa cosmovisão organizada nas noções de fé, trabalho e mérito individual. A canção que dá título ao filme, por sua vez, se refere agora a uma libertação que se encarna nas próprias forças da Terra, não despida de certas ressonâncias glauberianas. “Quando a glória de Deus desce, o ambiente faz tremer. (…) Vai tremer esse lugar com a unção e o poder que o nosso Deus aqui vai derramar. (…) Vai encher. Vai inundar. (…) Terremoto Santo”.
A maneira como Wagner e de Busca se aproximam do universo dos cantos de louvor é marcada por uma consciência de que a fé pentecostal “promove o convencimento que todos têm direito a não-pobreza”. A despeito do filme estar bastante atento às ambivalências de uma prática espiritual desenvolvida em um país de crescentes valores neoliberais e conservadores, sua postura não parece ser outra senão a de uma curiosidade franca, aberta e profundamente interessada diante da emergência desses novos atores sociais. A abordagem dos artistas, contudo, não se singulariza pela simples consciência de que a espiritualidade pentecostal e a luta material diária se reforçam mutuamente no contexto das populações socialmente emergentes no país, o que é, afinal, uma observação comum dentro do discurso acadêmico e jornalístico sobre a nova classe média brasileira. O que torna Terremoto Santo uma obra interessante é a tentativa de se pôr diante do evangélico enquanto imagem, fazendo do filme uma obra ainda solitária na arte e no cinema brasileiros contemporâneos.
A recepção de Terremoto Santo foi marcada, justamente, pelo debate sobre qual seria a postura a tomar diante dessas imagens. Na sessão do filme no Janela de Cinema do Recife, o filme foi recebido com risos de escárnio e vaias de indignação. Em um texto publicado por ocasião da oficina de crítica oficial do festival, de autoria da pesquisadora Bárbara Bergamaschi, questionou-se o pacto que o filme estabelece com seu espectador . O que faria o suposto frequentador de galerias e bienais, um outro de classe, religião e gosto em relação a seus personagens, diante daquelas imagens? O modo de aproximação de Wagner e de Burca da estética gospel, de fato, não é apenas consciente das marcações sociais que suas imagens carregam e dos sistemas de validação de gosto que as classificam, mas é também bastante interessado em dar a ver tais marcas. Como em outros trabalhos dos artistas, especialmente a série fotográfica Brasilía Teimosa, a estratégia adotada na representação do outro de classe não é a de evitar o clichê fotojornalístico, nem mesmo o estereótipo social, mas de deslocá-lo de função, insistindo nele de modo a desarticulá-lo. Rejeitando a abordagem mais fácil de simplesmente ver além do clichê, trata-se de olhá-lo atentamente, para perceber que ele é toda uma outra coisa. A construção dos cenários das performances, reminiscentes da decoração de baixo custo dos altares de pequenas igrejas e do gosto decorativo socialmente marcado de seus frequentadores, não está, por exemplo, a serviço de reforçar a posição de suposto bom gosto do espectado de arte , nem atiçar o seu fascínio camp, mas de encontrar naqueles objetos o gesto de imaginação que eles carregam como sua máxima potência. Como Wagner e de Burca comentam em uma entrevista na catálogo da exposição Corpo a Corpo, qualquer lugar pode servir para montar um altar e fazer um culto: um armazém, um estacionamento, os fundos de um prédio, o quintal de casa, uma praça. O gosto pelos cenários montados em meio à natureza não apenas nos chama atenção ao modo como o divino e o ordinário podem conviver, mas evocam o gesto de criação que preside a construção dos altares e o desejo de emancipação espiritual e material que eles expressam. O último canto do filme, não por acaso, se passa em uma pequena Igreja em construção no meio do nada, e o cantor, com capacete e mangas arregaçadas, é um construtor civil.
O debate surgido após a sessão do Janela de Cinema do Recife não apenas questionou o pacto que o filme estabelecia com seu espectador, mas também o acordo estabelecido entre Wagner e de Burca e seus personagens. Como escreveu Bergamaschi, “as personagens de Terremoto Santo não parecem estar conscientes do porque estarem sendo retratados ali (…) os retratados não parecem ter participado dos procedimentos de mise-en-scène em que foram inseridos”. A afirmação não apenas ignora o fato de que as performances foram construídas de maneira negociada com os cantores, mas pressupõe que haveria necessariamente um déficit de saber dos personagens em relação a sua própria representação. O que parece interessar ao filme, na verdade, é a consciência de cada um sobre sua própria imagem. Antes de dedicar-se ao que as personagens são, Terremoto Santo está atento a como seus atores posam. A pose pode revelar um pouco como cada um se percebe, mas também a força da imaginação que os atravessa. O que talvez possa surpreender é o fato das marcações sociais que seus corpos carregam não serem apenas mostradas pelo filme, mas também ostentadas pelos seus personagens, que reivindicam serem reconhecidos precisamente pelas marcações que performatizam. As performances do filme são atravessadas por uma profunda força de autoafirmação.
A sequência possivelmente mais discreta do filme talvez seja também a mais eloquente neste sentido. Em um plano frontal, vemos uma criança com a camisa ensacada e engravatada como um pastor, sob o fundo de uma paisagem natural apaziguadora. A criança está com os pés mergulhados na água, em um riacho, com a cabeça baixa em sinal de introspecção solene, ao lado de duas colunas que remetem à decoração dos altares de igrejas modestas. Ela coloca os óculos de aro grosso, em um gesto não despido de certa pompa, empunha a Bíblia e lê diante da câmera, com olhar firme e seriedade desconcertante. A voz é ainda a de uma criança, mas sua pose e segurança são a de um adulto. Terminado o último versículo, o garoto fecha a Bíblia e encara os espectadores, enquanto um travelling grave nos aproxima de seu rosto. Os gestos da criança tornam a sua própria voz uma palavra autorizada e exprimem a consciência sobre a própria encenação. O garoto nos interpela e, nessa interpelação, afirma sua forma de vida.
A crítica feita a Terremoto Santo acerta ao reconhecer que o filme pode provocar desconforto, mas parece profundamente limitada quando não acredita que este pode dar passagem a um verdadeiro encontro, como se aquelas imagens sempre precisassem ser devolvidas ao lugar reservado para elas nos “nossos” sistemas de validação, e “nós” precisássemos sempre nos mantermos ensimesmados no gosto de classe. Uma crítica ao filme poderia insistir que as imagens não são, contudo, apenas ostentadas pelas personagens, mas são, sobretudo, expostas pelo filme, a partir de escolhas estéticas muito determinadas, que acentuam a dimensão expositiva da encenação. A frontalidade com que o menino se dirige a nós, afinal, não constitui apenas um indício da estrutura cênica na qual aquela performance tem lugar e onde conquista a sua razão de existência – o altar da cerimônia religiosa, o palanque do discurso inspiracional, o palco do espetáculo –, mas corresponde também à frontalidade da imagem etnográfica, em seu regime escópico tipologizante e inventariante. O interesse em trabalhar com uma construção iconográfica reminiscente da fotografia tipológica e de sua lógica serial já se encontra em várias obras anteriores de Bárbara Wagner, especialmente na série fotográfica que precede Terremoto Santo: Crentes e Pregadores. A série apresenta “crentes” e “pregadores” isolados individualmente em cada imagem, um a um, em um enquadramento padrão, que apresenta as características da fotografia tipológica de pretensão etnográfica: retratos posados de corpo inteiro, frontais, centralizados, de indivíduos em seu habitat próprio. A preferência pelo uso do flash, mesmo em fotos tiradas de dia, servia, contudo, como um gatilho para acionar outras referências imagéticas (publicitárias e fotojornalísticas), revelando um desejo de que aquelas imagens deslizassem para outro regime, onde encontravam-se com um certo imaginário do sucesso, da moda e do valor. O gesto de deslocamento não apenas questiona os regimes de visibilidade tradicionais do corpo popular, mas permite que aquelas poses revelem a discreta insubordinação que manifestam diante de todo olhar classificatório.
Terremoto Santo também trabalha no interior de um regime escópico etnográfico, revelado em particular pelo seu gosto por composições frontais e estáticas, um trabalho com o tempo que privilegia a postura de observação do espectador e a estruturação do filme na forma de uma montagem de atrações. A abordagem em termos de tipos sociais e a lógica de inventário com que Wagner e de Burca trabalham se revela, na verdade, paródica, como um exercício de um gênero que não é mais possível. Wagner e de Burca são artistas de uma geração para quem o “corpo popular” não é mais um outro de classe a ser descoberto, muito menos a ser inventariado ou classificado. Trata-se de uma noção que nunca perde seu caráter de artefato, constituindo-se como um repertório imagético e sonoro de marcações sociais a serem trazidas à tona, observadas e deslocadas. Não é apenas questionar a imagem etnográfica em sua pretensão factual, nem tampouco criticá-la de fora, se posicionando em um espaço exterior seguro, quiçá autorizado, em que a crítica poderia ser exercida sem riscos de contaminação, mas de operar no interior dos seus mecanismos, se apropriando deles, de modo a ampliar as contaminações. Terremoto Santo incorpora estratégias tradicionais do filme e da fotografia etnográfica para colocá-las em continuidade com outros artifícios, fazendo-as se interpenetrar pelos mecanismos de representação de seus atores. Nesse esforço, a etnografia revela também sua dimensão de espetáculo, e o espetáculo gospel sua capacidade de expressar a sensibilidade de uma classe em processo de profunda transformação.
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