pitanga

Sobre medalhões e excluídos

Antônio Pitanga viveu a Nova Era no cinema brasileiro. Nascido em Salvador, 1939, o fato lhe garantiu um batizado cósmico: estava no lugar certo, na hora certa. Anos depois, no meio de uma turma de loucos, sob as bênçãos do crítico Walter da Silveira, abandonou o sobrenome seco, o sobrenome comedido, o sobrenome funcionário público – um mero “Sampaio” – pelo “Pitanga”. Da árvore frondosa e carnuda, tropical como todos deveriam ser.

Se Oswaldo Massaini produziu O Pagador de Promessas (1962), na Boca do Lixo – até hoje a tal da única palma de ouro em Cannes –, Walter da Silveira já havia introduzido uma visão de cinema, tanto na imprensa da Bahia quanto no famoso cineclube inaugurado em 1950. Com Silveira, o neorrealismo italiano encontrou as ladeiras da Cidade Baixa, fazendo a cabeça de nomes como o futuro dono do clã, Glauber Rocha.

E quem estava no meio de tudo isso, lépido e faceiro? Sim, ele, Pitanga! No Pagador de Promessas e na peça A Morte de Bessie Smith – com Luiz Carlos Maciel, guru do Pasquim nos anos 1970. Estava nos clássicos da chamada “trilogia da fome”: Bahia de Todos os Santos (1960), de Trigueirinho Neto – de onde sacou o Pitanga do personagem homônimo –; A Grande Feira (1961), de Roberto Pires; Barravento (1962), de Glauber Rocha e Luiz Paulino dos Santos. Pitanga era o homem jovem, negro, protagonista da frágil indústria de entretenimento. Era o rapaz nas rodas de capoeira de Mestre Pastinha ou comendo bolo de fubá na rua Democrata, como em um retrato de Carybé. Era, enfim, o homem do povo para o povo. Mas sorrindo encantadoramente, sem as rabugices do sectarismo político.

Antonio Pitanga em A Grande Feira, de Roberto Pires
A Grande Feira (1961), Roberto Pires

É exatamente esse encanto que encontramos em Pitanga, o documentário dirigido por Beto Brant e pela filha do ator, Camila Pitanga. O filme transborda de amor e carinho, a ponto de, em singela cena, Antônio e Camila beijarem-se como prova da relação querida. Por sinal, ela e Brant retomam a parceira de Eu Receberia As Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (2011), momento alto para a atriz – o que confirma o vínculo entre os dois: afinal, Brant foi convidado para um projeto visivelmente emotivo como é este Pitanga.

Acontece que Antônio Pitanga não é apenas um bibelô familiar, um bichano calmo, que a gente coloca no colo. Pitanga faz com que todos os entrevistados falem dele. Nos documentários comuns, a câmera fica preguiçosa, esperando que comece a saraivada de elogios. Aqui, porém, vemos o próprio biografado dançando, narciso que só, puxando beijos, abraços e frases de devoção. Não conseguiram – e nem seria preciso – conter a fúria de Antônio.

A lista de convidados é imensa: familiares, amigos de Salvador – incluindo Maciel, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e membros de Sol Sobre A Lama (1963), direção do falecido Alex Viany, braço carioca do Cinema Novo –, diretores – José Celso, Walter Lima Jr., Carlos Diegues, Joel Zito Araújo, Hugo Carvana –, cantores – Chico Buarque, Paulinho da Viola –, atores – Othon Bastos, Tonico Pereira, Selma Egrei, Tamara Taxman, Zezé Motta. E tantos mais. Vejam que a lista deixa claro o quanto Pitanga manteve os laços por onde passou. Nunca um outsider propriamente dito.

No meio dos entrevistados, atenção: Ruth de Souza, Léa Garcia e Haroldo Costa. Todos do Teatro Experimental de Abdias Nascimento. O mundo não começou com Pitanga, erro que pode ser fatal para quem quiser analisar a história cheia de significados sobre os negros na arte do século XX. Como exemplo, também podemos citar nomes “não-oficiais” como o rotundo ator Procópio Mariano – batedor de ponto no Beco da Fome carioca, coadjuvante aloprado em Rainha Diaba (1974). Ou nomes “oficiais” como Zózimo Bulbul, que inverteu o jogo e tocou no tema do namoro interracial, em Compasso de Espera (1973, de Antunes Filho). Neste, Pitanga encarna um pantera negra, em choque com o fidalgo vivido por Bulbul – cena perturbadora que aparece no documentário.

Talvez um dos melhores momentos de Antônio Pitanga seja Na Boca do Mundo (1978), dirigido pelo próprio ator. Faz parte do seleto grupo de cineastas negros, ao lado de Afranio Vital, Bulbul, Haroldo Costa, Joel Zito Araújo, Waldir Onofre. Na Boca do Mundo surge en passant, perdendo terreno para o lado de mestre de cerimônias do ator, mas poderia e deveria ocupar mais tempo na tela. A história de um triângulo amoroso entre Clarisse (Norma Bengell), Antônio (o próprio) e Terezinha (Sibele Rubia) é das coisas mais bonitas de se ver.

Na Boca do Mundo (1978), Antônio Pitanga
Na Boca do Mundo (1978), Antônio Pitanga

Quem dera todas as cópias do cinema brasileiro estivessem quicando de novas como as da onda cinemanovista, que aparecem em Pitanga. Os citados Haroldo Costa, Onofre e Afranio mal têm exibições de seus filmes, que precisam ser caçados com a volúpia de detetive. Para um olhar atento, isso fala muito sobre a preservação de imagens e ideias, sobre medalhões e excluídos, algo que no cinema nacional é tão ou mais importante que o desenrolar dos fatos. Pitanga, com sua profusão de “famosos” se elogiando, suscita debates como esse – que não estão nas intenções do filme em si –, ao mesmo tempo em que netinhos brincam de jogar areia sobre o avô biografado. Do sol da juventude à velhice, os diretores deixam um tributo sincero, em quase duas horas do status quo da cultura brasileira, desfilado por seus eternos representantes.


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