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Dissidências do poder

No Brasil as coisas mudam, mudam, até que… continuam no lugar. Parece que descobrimos isso ontem, enquanto repensávamos nosso ódio exclusivo à classe política com aquela pequena câmera amadora, num plongée com ponto de fuga “errado”, a filmar Marcelo Odebrecht em mais uma delação premiada – raiva canalizada que estremeceu em definitivo com o grande golpe do áudio de Joesley Batista “para cima do Brasil”. Mas, em 1962, Tocaia no asfalto já demonstrava que “a chaga da corrupção” não passa de um pacto e, como todo “grande acordão”, para ser estabelecido, é preciso haver múltiplos lados contribuintes. O coronelismo fantasmático do país, filmado em plena frontalidade por Roberto Pires e (re)corporificado hoje em frenesi pelas investigações da operação Lava Jato, nunca foi apenas mais um termo para apontar a fraude eleitoral, mas um brasileirismo que indica as assombradas engrenagens do funcionamento político do país. Tudo já está lá no filme de Pires: os símbolos mudam de roupagem – sai coronel, entra a figura do empresário, mas em essência o movimento do poder é o mesmo.

Pires não é nenhum visionário, mas um grande encenador e inventor. Inventou o cinema baiano, como dizia Glauber, com Redenção (1958), primeiro longa-metragem do estado; inventou uma lente anamórfica, o Igluscope, para poder filmar como os americanos em Cinemascope; e reinventava o tempo todo novas soluções de decupagem, com um domínio rítmico impressionante. Basta a primeira cena de Tocaia no Asfalto para enxergar seu talento para narrar. Dos faróis que cortam o breu torrencial, um close de uma boca empunhando um cigarro displicentemente à la Jean-Paul Belmondo. O zoom out revela um homem com um chapéu de gângster no banco do carona, e o plano seguinte – sua feição frontal pelo lado de fora do carro encoberto pela caudalosa chuva – desenha uma atmosfera noir. Saindo do caminhão, conhecemos o boteco por um over the shoulder de nosso protagonista, que já entra acendendo o cigarro do algoz de seu irmão. O breve diálogo de Rufino (Agildo Ribeiro) com seu antagonista, o teste da arma que o cabra diz querer comprar, com direito a uma gag de um figurante pedindo para Rufino “não errar a mira”, instauram não só a expectativa de uma morte anunciada, mas um clima arrebatador, que nos remete às aberturas cheias de energia dos thrillers de Samuel Fuller. Esta é, talvez, uma das mais notáveis aberturas do cinema brasileiro, comparável à emblemática sequência inicial de O Beijo Amargo, que entraria em cartaz dois anos depois.

Tocaia no Asfalto é um filme de vingança, que aparentemente acaba na primeira cena, mas, no caso, o prato que se come requentado nunca deixou de ter um tempero picante. Depois dos créditos, seguimos Rufino, que, “sem saber fazer outra coisa da vida”, vira pistoleiro de aluguel. A ele, é encomendada a morte do coronel Pinto Borges, candidato a governador da Bahia, a mando do coronel Domingos, que quer se vingar da morte de Sebastião, adversário político de Borges, que também morre por retaliação. Se num filme como Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles, o ciclo de vendeta se mostra como uma rixa familiar enraizada no despropósito (porque tudo acaba se tornando pequeno frente à morte), em Tocaia, a vingança é apenas uma banal prodigalidade política. Ao fim, o assassinato nem era mais necessário, pois, na esfera pública, o adversário de hoje é o comparsa de amanhã, mas Rufino trata de consumá-lo mesmo assim, porque já tinha rezado por sua morte (o sebastianismo do personagem, aliás, é marcante também quando reluta em cumprir seu trabalho ao descobrir que uma igreja fica 100 anos fechada em caso de morte dentro dela). Consegue realizar a promessa, mas, claro, ela tem volta, e ele não completa a viagem no trem de fuga do inferno. Enquanto no coronelismo de O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, a trama se desfaz na sede de vingança saciada, mas permanece na violência “fora de quadro” daquela classe média que “bombardeia” o bairro, em Tocaia no Asfalto, a mensagem é mais direta: pobre não tem happy end. Já estava condenado a ter que matar para sobreviver, e da sobrevivência acabaria por morrer. Essa é sua cruz.

Se, dentro dessa grande montagem paralela sobre a luta de classes, de um lado temos um marginalizado proletário assassino, do outro lado, da alta casta da sociedade, há um contraponto: o careta e idealista deputado Ciro (Geraldo del Rey). No enterro do coronel Pinto Borges, sua filha Lucy (Angela Bonatti) pede para Ciro, seu namorado e inimigo declarado de Borges, abandonar a política. O deputado então responde: “O que estou fazendo não é meu, faz parte de um movimento de consciência que sacode a nação. Mesmo que eu morra, a ideia continua. Acabar com a chaga da corrupção política.” Esse “movimento de consciência que sacode a nação” hoje, como em um velho novo ciclo a reboque de Sergio Moro, já era criticado por Glauber nos anos 1960: reduzir o problema político à corrupção é não enxergar o verdadeiro problema de classes contra classes. Glauber problematiza o filme por conta deste ser o único “personagem consciente” do enredo, mas, se atentarmos para as palavras finais de Antonio Luiz Sampaio (Antonio Pitanga), fica claro o ceticismo quanto à real possibilidade da existência de uma figura salvadora.

Atualmente o que não faltam são salvadores da pátria.

A revisão de Tocaia no Asfalto em 2017 nos dá um curto-circuito: tudo hoje é tão inesperadamente avassalador quanto previsivelmente enraizado nas mesmas barbas de nossa autarquia oligárquica. A descrença de Roberto Pires parece menos um pueril niilismo do que um prognóstico de antemão: nosso problema político é estrutural, e não somente personalístico. Para além de um de nossos maiores filmes policiais e um marco predecessor do Cinema Novo, ainda temos que arcar com este eco aflitivo: a entrada de um ficha limpa na esfera pública é praticamente uma troca de seis por meia dúzia, pois, no fundo, ele nada, nada e morre na praia. Existe um lodo mais profundo que o pântano de sujeira e este precisa ser fervorosamente escavado.


No dia 20 de julho, às 19h30, a Sessão Cinética exibe Tocaia no Asfalto, filme de Roberto Pires, em cópia 35mm restaurada. A sessão acontece no Instituto Moreira Salles, RJ – IMS Rio de Janeiro e será seguida por um debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Tocaia no Asfalto será exibido em 35mm.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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