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Baudelaire e o Diabo na terra da praia

Lívido (Pedro Henrique Ferreira) tem o corpo desconjuntado, o coração empedrado, a alma atormentada: um vulcão guardado sem manejo de suas lavas reprimidas. É um personagem anacrônico e deslocado ao pé de uma juventude afetiva que jamais olharia para uma Igreja com seus grandes olhos vidrados, cheios de indiferença e curiosidade. Um Homem e seu Pecado é menos sobre o incesto em si do que sobre o pecado como reação ao mundo. Um affair, a cidade cartão-postal, o trabalho, os amigos no bar, o hobby contraventor: nada aquieta ou mobiliza o espírito solitário de Lívido. É preciso que ele seja demitido, leve umas porradas da vida ou do Diabo (Thiago Brito) e esbarre com um louco ou Baudelaire (Hernani Heffner) para que enfim retome alguns nós perdidos. Esse triângulo de ações faz com que nosso protagonista procure sua irmã, convencendo-a a sair do monastério para encontrar seu pai e seus fantasmas.

Luís Rocha Melo faz desse percurso um filme um tanto atípico: existe uma agilidade de encenação que às vezes poderia fazer lembrar dos derradeiros filmes de Alberto Salvá ou Paulo César Saraceni, Na Carne e na Alma (2011) e O Gerente (2011) respectivamente, mas com um peso dramático que o aproxima muito mais de gente como Walter Hugo Khouri. Este peso está sobre os ombros de Lívido, existencialmente, mas também na religiosidade. Da aridez cristã ao onírico do candomblé, a religiosidade atravessa a família de Lívido como pão (que alimenta) e faca (que a dilacera). Deus está morto, não há “Pai” que guie nossos passos e Dr. Gomes (Otoniel Serra) há muito deixou de ser guia norteador de um ethos para seus filhos. Vitória (Anna Karinne Ballalai) se aporta no cristianismo; Lívido vive sem qualquer âncora.

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É aí que Baudelaire, vulgo a poesia, sobrevêm como telos: “é necessário estar sempre bêbado”. Trôpegos, errantes e pecadores, andamos. Eis aí um curioso aforismo para o cinema brasileiro: embriagados – de vinho, poesia ou virtude – filmamos. Curioso também como o tema atemporal de O Homem e sua Paixão, à luz da urbe carioca de hoje, é filmado por uma handycam digital qualquer e isso lhe dá uma desenvoltura toda particular, emprestando ao filme uma cara muito mais irmã à geração de David Neves do que a de seus contemporâneos. O que se destaca não é uma especificidade técnica moderna, mas a leveza de um modus operandi que lhe dá organicidade do entorno germinada em sua filmografia desde, pelo menos, Legião Estrangeira (2011). O que parece interessar mais para Luís Rocha Melo em O Homem e seu Pecado é uma decupagem calcada nos olhares, a subjetividade em confronto com o mundo e seus atravessamentos. Poderia aqui, inclusive, subverter as palavras do próprio diretor sobre Neves em uma crítica sobre seu primeiro longa-metragem Memória de Helena (1969): o que vemos em ação é “um cronista que observa a sua geração, ou melhor, que observa seus amigos, ou melhor, que ama seus amigos, os filmes de seus amigos e o passado do cinema brasileiro”.

O passado do cinema brasileiro aqui é todo presente. Memória é imaginação. Luís Rocha Melo filma seus amigos não simplesmente pondo-os em cena, mas antes absorvendo algo de intrínseco neles e reformulando à obra. Não há tábula rasa; a fabulação se dá a partir de uma vivência próxima. Há um elo de amizade e intimidade que se desdobra no desabrochar não do drama, mas de suas consequências. Há, antes de tudo, um pacto de fé, uma metafísica aí em jogo: a cena é mais do que a materialidade das coisas. Não só pela crença em Baudelaire ou no Diabo ou pela recorrente dúvida em torno do Mal, mas pelo fora de campo como dialética moral. Não à toa, uma das primeiras referências óbvias – pois não há batedor de carteira mais notável na história do cinema do que Michel, personagem de Martín LaSalle – é Robert Bresson, católico fervoroso do plano.
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O filme – e seu mistério – está todo no olhar de Lívido. Frequentemente ele deixa de observar o que olha; seus olhos por vezes fogem de encarar, como seu pai percebe, outras tantas, se reviram para o horizonte distante da realidade por pleno costume de fuga. Alguns contra-planos chicoteados, como na primeira despedida dos filhos na casa do pai, perturbam para depois criar tensão pela fixidez entre os olhares confrontados. Um plano corriqueiro é uma espécie de over the shoulder sobre o protagonista mirando a desenhista, Vitória, Baudelaire ou Dr. Gomes, filmado de forma um tanto esquisita em termos de composição, não só pelo ponto de fuga diagonal, como pela aparente necessidade de mostrar alguma primeira reação de alguém – Lívido – que normalmente não teria sua face exposta ao ser enquadrado de costas. Um olhar sempre tentando apreender as coisas para além da superfície, mas nem sempre conseguindo, sem saber, enfim, onde mirar, onde morar.

Georges Bataille, numa análise de uma escrita de Sartre sobre Baudelaire, escreveu: “o homem não pode se amar completamente se ele não se condena”. Autocondenação é o que não falta a Lívido e, no entanto, o pecado reside em sua erradicação ou, ao menos, relativização. Ao fim, o Museu do Universo parece nos contestar a magnitude peremptoriamente estagnada de certos pecados criados pelo ser humano diante do mundo. Eppur si muove: a mítica frase murmurada por Galileu após ter sido obrigado a renegar sua visão heliocêntrica do mundo, costuma ser um símbolo que sintetiza a teimosia da Ciência contra a censura da fé e a autoridade religiosa. Depois de negar que a Terra se move ao redor do Sol, o físico e filósofo italiano haveria balbuciado: “no entanto se move”. Deste lado do oceano, Paulo Emílio costumava dizer que a mediocridade do cinema brasileiro é imanente – o subdesenvolvimento está em nós. No entanto, algo se move.


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