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O abandono da política

Neblinas. Fumaças artificiais. O cinza das penumbras esticando-se por uma cidade. É no mínimo inquietante ver como essas imagens são similares, se repetem e se complementam em três obras aparentemente tão distantes como 300 Milhas, Alipato – a Brevíssima Vida de um Malandro e Penúmbria. Em formatos diversos, esses três filmes traduzem em cenas, ora documentais, ora ficcionais, realidades imediatas vividas por países como Síria, Filipinas e Portugal. Em comum, a falta de horizontes, certos flertes com a distopia, e uma maneira de olhar para sua situação histórica que não consegue vislumbrar saídas, respostas e que tampouco ancora-se seguramente em nenhuma experiência passada. Intriga constatar que cada filme, a seu modo, aborde ambientes possíveis diante dessas situações. O que eles flagram, no entanto, é um vácuo, uma lacuna, uma ausência de perspectivas que ganha feições fílmicas peculiares. São descasos que perpassam cada um desses distintos territórios, que assolam suas mínimas estórias. O que se lega quando a desistência por um futuro comum passam a ser o tomo dominante? O que haveria de político numa estética do abandono? Quais afetos vislumbra-se quando o abandono consolida-se como um índice político dos nossos tempos?

Em 300 Miles, o diretor Orwa Al Mokdad adentra em remotas vielas de diversas cidades da Síria, sobretudo algumas que dividem fronteira com o Estado Islâmico. Aliás, a entidade terrorista chega a exalar um bizarro amparo, e paira como uma larga sombra para cada grupo de civis armados, os quais sequer sabem ao certo os motivos de uma guerra tão extensa contra Bashar al Assad. Entre cinzas e ruínas, o Estado Islâmico ainda reverbera como uma organização política viável, que está ao lado, com outdoors, propagandas, chamadas, convites. Não fosse a mera imagem do Estado Islâmico, veríamos apenas uma completa ausência de qualquer outra organização que não as de paramilitares.

Repórter da Al Jazeera, Orwa Al Mokdad, em seu documentário, enfatiza as miudezas do cotidiano. As cartas de uma criança para parentes próximos. Suas falas sobre a feiúra da cidade, da casa, do país onde habita. Quando mudaremos? Pergunta-se a menina que, em troca, recebe apenas o silêncio e evasivas adultas como resposta. Embora sejam falas pueris, elas não conotam nenhum aspecto melodramático. Pelo contrário, são conversas banais, desprovidas de qualquer carga emocional prévia, e que muito se aproximam de uma ótica infantil de desolação, na qual o fardo de crescer entre esses espaços bélicos conota perguntas simples, mas profundas. Remete-se ao Alemanha Ano Zero (1948), de Roberto Rosselini, embora a criança lá já esteja mais condicionada ao mundo perverso dos adultos, ao comércio paralelo, clandestino, à corrupção e a uma família que tampouco acolhe. Em 300 Milhas, a menina olha as ruínas pela janela, amedrontada, pequena diante de uma guerra que ninguém entende e tampouco a explica.

300 Miles (2016), Orwa Al Mokdad
300 Miles (2016), Orwa Al Mokdad

Embora de forma indireta, o filme traduz muito da geopolítica desse milênio. Não se testemunha sequer o empenho da guerra como uma forma de domínio, o que, em alguma medida, ainda poderia conotar certa intervenção política. Diferentemente do que ocorreu, por exemplo, durante a Guerra Civil espanhola, quando a forma de interferir naquele contexto permitiu alinhamentos e antagonismos de países que prenunciaram o cenário da Segunda Guera Mundial, o que se vê, hoje, na Síria, é um estranhíssimo equilíbrio entre forças que não ocupam e não intervém, mas tampouco abandonam totalmente a influência nessa zona estratégica. O maior mérito de 300 Milhas é que ele não aborda nenhum aspecto dessa geopolítica, mas, de forma delicada, persistente, retrata o dia-a-dia daqueles que não conseguiram fugir, que não debandaram, de alguns que sabem que morrerão por ali mesmo e que, assim, decidem, de forma um tanto insana, permanecer ao menos perto de casa. Vê-se uma faceta interna do abandono, dos indivíduos, sujeitos e corpos que persistem e já não sabem mais porque ali estão, porque realmente lutam. Se não são niilistas, é porque inventam um jogo, uma mensagem, um tiro e algum mote qualquer para que o sol se ponha, para que o dia passe. 300 Milhas acompanha vidas que ainda não se pronunciam como abandonadas. É nesse lapso que reside sua difícil beleza: são um último feixe possível de resistência. Diante do abandono, essa frágil linha soa quase como um murmúrio inútil.

Bastante diferente, o filme de Khavn De La Cruz insere o espectador numa série de imagens bizarras, veementemente distópicas, que circulam em meio a uma barbárie: um campo de morte, que cerca a todos e por todos os lados. Estamos numa Filipinas futurista, mas que muito conta do extermínio estatal e oficial de traficantes que vem sendo propagado por Rogério Dutente, seu atual presidente. No filme, as imagens não são fortuitas. Elas se enlevam entre rituais e performances imagéticas que levam Alipato e seu bando, desde uma estranha infância, até o seu mais remoto fim. É curioso constatar como, pelo cenário de filme de traficantes retratados desde a infância, Alipato dialogue tematicamente com Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund. No entanto, o que haveria de excesso de realismo no filme brasileiro flexiona-se como uma violência de imagens deliberadamente hiperbólicas que se aproximam mais da estética, por exemplo, da trilogia da vingança de Park Chan-wook.

É desse caos e dessa barbárie da delação e da entrega civil vivida hoje pelas Filipinas que Khavn De La Cruz cria suas imagens e suas sequências. A cada morte do bando de Alipato, soa um sino e mostra-se uma tumba com o nome do personagem, as datas de nascimento e de morte. Não por acaso, são as poucas imagens mais frias e realistas de toda a película, que aludem não apenas a mortes banais, mas também a seu caráter cotidiano, fútil e desprovido, inclusive, de qualquer aspecto dramático. Perto da brutalidade, do descalabro e do extermínio estatal de civis que se vive, essas imagens ostensivamente estilizadas revelam-se pálidas sombras de uma realidade deveras pérfida.

Alipato - A Brevíssima Vida de um Malandro (2016), Khvan De La Cruz
Alipato – A Brevíssima Vida de um Malandro (2016), Khavn De La Cruz

À sua maneira, contudo, Khavn De La Cruz dá uma passo adiante. Seu filme é deliberadamente escatológico. No ritual inicial, vê-se um desfile de elementos esdrúxulos, como carros alegóricos de um mundo absurdo. Fogo, sucatas, mulheres nuas sendo estupradas, meninos batendo, apanhando… tudo é apelativo, tudo é artificial, como se não víssemos cenas, mas imagens que aludem a imagens; um espelho que vislumbra acontecimentos e miragens escatológicas que nunca seriam projetadas, e que seriam oriundas de uma iminente distopia. Há, diante desse exagero e dessa exasperação, algo de uma “estética do lixo” que resguarda certas semelhanças com o cinema da Boca, sobretudo as primeiras e mais conhecidas obras de Rogério Sganzerla e Andrea Tonacci. Khavn De La Cruz realmente ultrapassa limites e insere uma lógica de pornografia contemporânea, tipologias de histórias em quadrinhos e schematas de videogames que o distanciam de qualquer uma dessas referências. Sua violência, em termos estéticos e mesmo éticos, esbarra no insuportável, num limite que é sempre transgredido na próxima cena. Nesse cenários de bizarrices vãs, passa-se a conviver com aquilo que, antes, se considerava impossível ver, interagir e mesmo testemunhar.

Uma das personagens centrais torna-se a mãe de Alipato, que surge como uma personagem corcunda, mas aos poucos revela-se como alguém responsável pela delação, pela entrega e o assassínio do bando criminoso. Numa sequência específica, seu corpo alonga-se com o dedo em riste que a todos aponta e reserva-se certo deleite na forma como, posteriormente, essas “almas sebosas” seriam mortas. O dedo em riste eclode como a metáfora perfeita para transmitir a pulsão fascista que espraia-se pelas ruas das Filipinas, onde o anseio de fazer justiça com as próprias mãos inocula-se entre os mais diversos indivíduos.

Embora seja o filme mais leve dentro do recorte dessas linhas, Penúmbria é o que mais diretamente remete ao abandono como uma decisão política comunitária, histórica e social. Levemente cadenciado por uma certa ironia frente à melancolia portuguesa, o curta alinha-se a um falso documentário que apresenta a cidade ficcional de Penúmbria, no litoral português, uma estranha malha urbana que abrigaria o revés da utopia; um lugar inóspito, impossível de acolher seus próprios habitantes e marcado por uma profunda tristeza que se alastra entre a vegetação, o mar, as rochas, os prédios, as pessoas.

Com um dispositivo bastante simples, o curta apenas mostra imagens das ruas vazias e dos prédios abandonados. Uma voz over, extremamente melancólica, alinha derrotas, notícias ruins e cenários adversos. Esse intervalo entre narração e as ruas vazias assemelha-se ao média La Soufrière (1977), de Werner Herzog, no qual o vulcão que dá título ao filme estaria à beira de uma erupção que arrasaria com as cidades da sua proximidade. São as ruas vazias, os semáforos a piscar sem carro, a fumaça que se expande entre as montanhas e as ruas dessas cidades que Herzog capta de forma poética, ao som de uma ópera alemã, melancólica, grandiloquente. Em Penúmbria – cidade e filme – não temos um vulcão, mas tão somente uma tristeza insuperável, que, como uma doença das ondas e dos ventos, invade as entranhas de cada habitante. Certo dia, a cidade reúne-se numa assembleia ímpar e decide, por unanimidade, que Penúmbria deveria ser esvaziada. Como dissidentes, quedam lá apenas dois habitantes: uma senhora que não conseguiu deixar seus cães sozinhos, os quais apreciavam seus passeios matinais à beira-mar; e um senhor que, silencioso, percebeu no gesto de por lá ficar uma forma de declarar seu inconfessável amor por aquela senhora.

Penúmbria (2016), Eduardo Brito
Penúmbria (2016), Eduardo Brito

Ainda que gracioso, Penúmbria possui um desdobramento claramente político. Qual seria, afinal, o significado do abandono de uma cidade? Não seria da polis, do espaço público comum, que brota toda possibilidade de política? A tristeza da cidade soa como um mote para os últimos anos portugueses que, diante da penúria do arrocho fiscal da comunidade europeia, sempre consideraram a possibilidade de deixar para trás a utopia política de uma convivência continental entre nações afins, com um remoto passado comum, mas com tradições políticas também diferentes. Penúmbria, no entanto, sugere algo mais e ultrapassa esse possível contexto histórico. Ao se abandonar uma cidade, abandona-se não apenas a cidadania, mas a mais remota possibilidade de vivências compartilhadas.

Não por acaso, esse abandono soa similar ao experimentado numa guerra civil na Síria e ao extermínio estatal das Filipinas. É no seio de uma política que gera tantos pontos vazios que podemos melhor entender as poéticas do abandono que, de algum modo, enlaçam esses três filmes distintos. Entre o descalabro do documentário de Orwa Al Mokdad, a escatologia de Khavn De La Cruz e as cinzas de uma cidade entregue ao léu e às ondas marinhas, encara-se uma faceta de esvaziamento dos vetores políticos, uma abstração da possibilidade de vislumbrar feixes comuns. Ao menos, com Penúmbria e entre tantos abandonos, permite-se uma fagulha de riso, ainda que seja um bocadinho acanhado. Nesses segundos, a ironia emerge como um tortuoso caminho propício a criar cidades futuras, por mais áspero que possa ser – um convite a afrontar o abandono, a espiá-lo (e expiá-lo) como uma forma de libertação, um ato corajoso, e inusitado, de imaginar um futuro que ainda não foi projetado. Nem mesmo cinematograficamente.


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