O eclipse da política: gamers e hackers em House of Cards

setembro 1, 2016 em Em Vista, Pablo Gonçalo

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por Pablo Gonçalo

“Two interfaces come to mind as particularly interesting: the gamer and the hacker (…). The gamer as an interface has the virtue of stepping away from such and idea of an interface as self-acknowledged legislator. The gamer plays within the game, as given. The gamer is an antipodal figure, playing the game from within. (…) The hacker, on the other hand, has a tendency to ramble, to head off into wilderness, to become unbounded from the constraints that shape play’s anti-productivity in a paradoxically direction”

McKenzie Wark

Raramente uma vinheta foi tão sugestiva. A abertura de House of Cards oferece mais do que um peculiar deleite visual; ela dá pistas sobre o cerne do tom e da dramaturgia que foi tecendo-se ao longo das últimas temporadas. Vê-se Washington. Não apenas a capital da “política” norte-americana e seus desgastados monumentos de cartão-postal; mas seus becos, suas vielas, locais ermos debaixo de uma ponte qualquer, trens que passam. Nesse time-lapse, cadenciado por um vai e vem de nuvens, o dia passa, veloz, inapreensível. Surge a noite e é em meio à sua escuridão, ou à falta de luz, que o ambiente da série instala-se. Quando menos percebe-se, um sintoma: toda a dramaturgia política de House of Cards é marcada por uma constante perda, uma ausência e um paulatino esvaziamento das luzes que considerávamos como essenciais. Para além do desaparecimento da claridade, o que realmente se dissipou?

Continuemos com a vinheta. De forma hábil, o padrão visual e fotográfico de House of Cards não conota exatamente escuridão; não perscruta as sombras, como o duplo oculto da trama e das personagens, onde resguardam-se (e revelam-se) suas mais abscônditas pulsões. Após o poente, e o escape da luz diurna, as cenas de cada episódio instalam-se, confortavelmente, quando no meio da madrugada. Nas primeiras internas emerge algo curioso: uma luz fria, que ilumina de forma limpa, clara – higiênica, eis o termo – mas calculadamente digitalizada, como se estivéssemos diante de uma tela de computador. É nesse palco luminoso, no meio dessa brancura, por demais cristalina, transparente, que temos uma marca visual da série. Em House of Cards, as oscilações entre o chiaroscuro, tão caras às dramaturgias óticas do seriado, são permeadas por uma vertiginosa estética das abstrações.

Por que conotar o ambiente da política tonificado por essa ausência solar? Por que busca-se atenuar as sombras e mostrar as impurezas do branco do complexo palco político norte-americano? Toda a narrativa da quarta temporada, e seu diálogo com episódios precedentes, vem dar pistas indeléveis dos conceitos que regem a série. O primeiro mote é o receio da perda do poder. Após assumir a presidência a partir de joguetes palacianos, Frank Underwood (Kevin Spacey) percebe-se isolado, sem legitimidade, política e popular, para realmente iniciar uma campanha eleitoral e fixar-se na casa branca por mais um mandato. Nesse plot, não haveria apenas cadáveres, assassinatos e uma trama de perseguição, ou antagonismos caros às narrativas policiais, comum nas temporadas anteriores. Ocorre, paralelamente, a minuciosa ascensão dramática de Claire Underwood (Robin Wright), que aos poucos destaca-se como uma femme fatale, cheia de mistérios perigosos, sedutores e com uma dramaturgia da manipulação rara de ser vista nas telas. A quarta temporada da série é totalmente dedicada ao seu crescente e insuperável protagonismo; quando ela, finalmente,destaca-se da sombra de Frank Underwood para assumir o proscênio do palco político, algo almejado por personagens femininas e políticos clássicos, desde Medeia até Lady Macbeth.

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A própria cena passa a se adequar ao perfil de Claire, à sua figura, ao modelo político que ela vai sugerindo. Afinal, como bem apontou Maquiavel, mais difícil do que chegar ao poder é nele, como um governante e soberano, manter-se. Aborda-se, assim, os paradoxos da legitimidade e seu aspecto sempre volátil, que vão agora, além de uma virtude apenas viril. Frank percebe que não possui apoio e carisma suficiente para ganhar as eleições e, como hábil enxadrista que é, prefere abrir mão do seu poder e apoiar a ascensão de Claire. Com ela, ambos encaminhariam os votos para uma trilha segura e confiável. Trata-se de uma estratégia e de um jogo claro que envolve uma complexa rede de lobistas, assessores, de discursos com a mídia e convencimento espetacular. É aqui, nesse precioso ponto, que encontramos uma bela sacada e compreensão da gramática político-midiática contemporânea, vislumbrada na estrutura do roteiro da série. Ela será habilmente tecida pela chegada dos Conway, um casal realmente habituado, íntimo e fascinado ao jogo das redes sociais, e que as usa para disparar a candidatura de Will Conway (Joel Kinnaman) à presidência pelo partido republicano.

Mídia, portanto, e vida privada – o casamento, suas traições, pactos e alianças políticas. Desde a primeira temporada de House of Cards, essas duas esferas se entrelaçam de modo crescente. Nos primeiros episódios, por exemplo, toda a ascensão de Frank Underwood é permeada pelo vazamento de dossiês junto a Zoe Barnes (Kate Mara), uma jovem jornalista, também blogueira e cheia de furos via twitters, com quem o então deputado acaba se envolvendo sexualmente. Mais próximas do thriller, as temporadas seguintes ressaltam os papéis de investigação – ou de seus apagamentos – envolvendo o FBI, a CIA, a NSA e hackers muitas vezes alheios às redes oficiais. Passa-se, paulatinamente, da mídia tradicional – evidentemente marcada por entrevistas, furos e coberturas – para um manejo subcutâneo das informações que estão (ou não) na deep web. Ou, mais precisamente, das informações que provêm de cidadãos-consumidores-eleitores.

Muito além de mostrar bastidores da mídia e da vida privada, esse descortinar de um vetor político, tecnológico e midiático demonstra como essas fronteiras entre o privado e o público ficaram totalmente obsoletas. Constata-se um insuperável ponto de virada no qual, pelas mídias portáteis, entre hardwares e softwares, os feixes privados geram fatos públicos – e políticos – que são incessantemente cadenciados por roubos e arroubos da privacidade. Interceptação: eis um vocábulo próximo e possível das intervenções tipicamente hackers. Trata-se de uma artimanha ambígua e polivalente. De um lado, emerge um jogo novo que acaba justamente por interceptar a esfera pública. De outro lado, constata-se uma nova gramática de sequestros de informações fortuitas que, paradoxalmente, acabam por transformar a própria esfera pública num palimpsesto de intercepções sucessivas e infinitas. Que a performance e o cinismo sejam modos políticos dessa atuação, isso revela-se apenas um sintoma de um desarranjo da gramática tecnológica que é mais profunda e determinante. Assim, o que está em jogo é a virtualização dos espaços clássicos da política. Em House of Cards são raríssimos os discursos públicos, são mínimos os encontros com movimentos, lideranças ou mesmo eleitores. Quando ocorrem visam apenas uma espetacularização que torna os próprios preceitos de Guy Debord algo um tanto esmaecidos, como uma bola cantada, que pouco esclarecem sobre essa nova gramática virtual e tecnológica. A virtualização dos espaços, por demais abstrata e etérea, gera, primeiramente, cenários mais acuados, restritos e compressores. A maior parte dos espaços cênicos, portanto, revelam-se espremidos: corredores, quartos isolados, à portas fechadas, gabinetes com receios do mundo que está lá fora, conversas por celular que ocorrem dentro de carros, reuniões no avião oficial, entre fronteiras, tão abstratas e conceituais como as políticas que seriam implementadas.

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Se House of Cards é realmente uma série dramática sobre a política contemporânea, onde, afinal, se revelaria o preciso – e precioso – espaço da política? Ágora: esta é a palavra-chave. A atual virtualização geográfica e tecnológica desmanchou no ar os últimos fiascos daquilo que chamávamos de “praça”; ou seja, um local de deliberação, assembleia, de convívio e inclusive de religare. Por isso, seguindo Paul Virilio e McKenzie Wark, a atual e premente necessidade de ocupações, a ida do virtual ao físico, ao espaço real, concreto, prenhe de carne – pois é o próprio espaço da política – dentro dessa política tecnológica de virtualização do espaço – de fato e ontologicamente, em xeque. A pergunta, assim, desdobra-se em outra: onde fundar uma nova política se a virtualização da ágora acarretou numa perda de um local próprio para se conceber o futuro? O que surge, paulatinamente, é a total reconfiguração do jogo político, um jogo anárquico, com regras inflamáveis, em que se pode atuar como um legislador, um ditador… ou um hacker.

O surgimento de Will Conway, como um digno antagonista político (e dramático) de Underwood, é a maior evidência desses paradoxos. Após, claro, a desmaterialização da ágora vemos um jovem e ambicioso casal já versátil na gramática das redes sociais. Com eles, emerge a encenação da espontaneidade e, simultaneamente, uma espontaneidade à encenação, rápida, mensurada pela quantidade de curtidas, visualizações e compartilhamentos. Em cena – e filmando – eles forjam a experiência de um casal feliz, na cama, numa sequência com trejeitos um tanto sensuais, que é interrompida pela “meiga” chegada do pequeno filho. Assim, o carisma político contemporâneo não reivindica sofisticações retóricas, mas tão simplesmente arranjos sensíveis que, líquidos e dinâmicos como os vetores do capitalismo financeiro, geram fotos provisórias, virais e impactantes – mas vazias de conteúdos ou mensagens políticas mais relevantes.

É assim que House of Cards evidencia um misto entre o colapso da cultura política ocidental clássica e o eclipse provisório da própria política. A virtualização da ágora, tão bem representada pelo plot da série, não pode ser compreendida por aspectos de teoria política atualmente mais em voga. Não se trata apenas de mudanças estruturais, triviais ou fortuitas na e da esfera pública; já que sem ágora – abstrata e virtualizada – essa mítica esfera inexiste. Não se trata somente de (des)equilíbrios na partilha do sensível, como apregoa Rancière, ou de gestos que busquem o dissenso. Não há mais arauto e sequer espaços para uma balança de sensibilidades políticas. Diáfana e abstrata, a ausência de ágora gera ouvidos moucos e vozes que de tão roucas não pronunciam palavra política alguma. Ambos modelos – de Habermas e Rancière – ainda ancoram-se num modelo de uma esfera pública grega, milênios distante de uma política embalada pela gramática dos algoritmos, pela qual toda a ideia de irrupção da cena por meio das mídias (tradicionais) visa rearranjar as possibilidades representativas da esfera pública. Essa ágora, como vimos, foi historicamente desmantelada. A desmaterialização e “ultra-informatilização” da política gerou uma bizarra esquizofrenia. Atualmente, a cidadania – e sua mimesis política – opera mais no modelo dos videogames do que das telecomunicações do século XX. Com isso, diante desses vetores da abstração, ou joga-se suas regras voláteis e randômicas ou elas mesmo são deliberadamente hackeadas.

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É diante dessa vetorização financeira da política – e da abstração do seus espaços clássicos – que McKenzie Wark sugere duas interfaces possíveis. Ou gamer, ou hacker. Curiosamente, Frank Underwood é um clássico jogador, seja de tabuleiros mais tradicionais, seja de videogames. Na primeira temporada, ele brinca com soldados de chumbo numa estratégia bélica de avanços, trincheiras e ocupações físicas de espaços que gerarão domínios políticos. Há, com esse destaque dramático, toda uma gramática de geopolítica mais clássica, bélica, de tecnologias militares de ocupações políticas e territoriais. Aos poucos, tanto o personagem como a série passam a fazer propaganda de games e de um console específico. Nas horas de descanso, portanto, Underwood está diante da televisão. Ele joga, compulsivamente. No entanto, o que revela o game? Para Ian Bogost, o paradigma do game é ação. Se a fotografia e o cinema representavam o tempo, o game passa a projetar uma mimeses da ação. Assim Underwood – e todo jogador sinceramente imbuído dos espíritos dos games – age enquanto joga e joga enquanto age. Essa hiper-realidade virtual não desvincula mais o tempo da estratégia da intervenção dos tabuleiros. Assim como ocorre a virtualização da ágora, o tabuleiro está por toda parte, ao redor, ao lado – e em nenhum lugar concreto. Numa das cenas mais intrigantes dessa temporada, Conway chama Underwood para um desafio e ambos encontram-se diante da mídia e, depois, reservadamente, em portas fechadas riem um do outro, de si mesmos, do circo que armaram. Nessa hora, Conway convida Underwood para jogar Agar.io, uma espécie de Pac-man contemporâneo, em rede. Enquanto Frank joga, Conway atende o celular e vai ao banheiro: ele hackeia o jogo político do próprio presidente dos Estados Unidos. A interceptação da ética, a trapaça política, assim, a jogada desleal, o soco no fígado vem maculado por uma abstração das espionagens, do roubo e desarranjo de informações consideradas como estratégicas. Uma vez mais é a cena pública que está interrompida, pois agora os próprios bastidores regem o espetáculo; agora, sem ágora, ou diante de suas atuais feições virtuais de espaços públicos e políticos, essa esfera passa a ser regida por um espetáculo íntimo, trancafiado, codificado. Isso, na política, e na sua dramaturgia, é historicamente inédito – crescente, sem retorno.

As artimanhas entre os gamers e hackers ora são opostas, ora se intercalam e, inclusive, dependem tanto do contexto como das formas dos gestos de intervenção – e interceptação – que invadem a cena pública. Considerem, por exemplo, um “vazamento” de um “escândalo” político qualquer. Até que ponto ele é um hackeamento? Até onde não é parte de uma estratégia de um jogo político muito bem delineado de usurpar a cena pública em vista de favorecimentos individuais? Essas interfaces de gamers e hackers, essas instâncias são cambiáveis e camaleônicas. Na série House of Cards tais alternâncias são cadenciadas pela oscilação entre a política internacional e o raro retrato de personagens hackers.

Penso que a série dos Underwoods foi a primeira peça dramático-visual que conseguiu traduzir com agudeza um aspecto bastante escondido da Doutrina Obama, que é como podemos chamar o conjunto das políticas e nas relações internacionais norte-americanas dos últimos oito anos. Seja na série ou nos recentes eventos políticos globais, a militarização torna-se mais soft, mas abstrata e ausente de intervenções em territórios. De maneira geral, pode-se afirmar que as armas também ficaram virtuais, etéreas e mais próximas de códigos e (des)programações do que propriamente de um acervo bélico físico e material. Isso fica evidente nas pelejas entre Frank, Claire e a personagem Catherine Durant (Jayne Atkinson). Se, de um lado, prega-se um discurso de distensão, uma política de pacificação e desarmamento, emerge, por outro, uma rede subcutânea de interceptação de informações privadas do mundo todo, que é estrategicamente capitaneada pela NSA como uma estratégica politico-militar. São diversos os episódios da terceira temporada, sobretudo nos conflitos verbais e militares com a Rússia, que corroboram os paradoxos dessa doutrina. No entanto, a pergunta permanece: qual seria a diferença entre a espionagem para fins militares e os hackeamentos? Se não haveria distinção técnica, ela seria apenas ética?

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Curiosamente, House of Cards é também uma das primeiras narrativas audiovisuais em que os personagens hackers emergem de forma autônoma, longe de um heroísmo ingênuo e também afastados de uma mera e preconceituosa associação com a os cibercrimes. O primeiro hacker que aparece é Gavin Orsay (Jimmi Simpson), com a assinatura de HEROnymus Bot, logo na segunda temporada, e é evidente como ele transita de uma prática de hackeamento extraoficial, junto ao desespero de Lucas (Sebastian Arcellus) para desvendar as artimanhas de Underwood, para outra cooptada, castradora da verdade, capitaneada por Doug Stamper (Michael Kelly), chefe de gabinete de Frank. São personagens ambivalentes, dúbios, duplos e camaleônicos. Mas, afinal, o que é um hacker? No seu A Hacker Manifesto (2004) uma das obras seminais da teoria política contemporânea – Wark conceitua o hacker como uma classe social ampla, que (des)produz informações e efetivamente cria novas criações, mas que no entanto não detém o controle sobre as veiculações dessas mesmas informações – ou programações – as quais são hospedadas, utilizadas e transformadas em bens financeiros abstratos pela classe vetorialista – segundo Wark, os proprietários dos meios tecnológicos e políticos que, atualmente, abrigam e disseminam a criatividade e as produções de informações. Esta classe, por sua vez, assim como a informação e o hackeamento, conjugam não apenas uma abstração do trabalho, do capital financeiro e dos seus impactos nos territórios; ela gera uma consequente evaporação do espaço político, já que os vetores e os vetorialistas muitas vezes, eles mesmos hackeiam – ou jogam? – entre empresas multinacionais, estados e órgãos multilaterais. A classe hacker, assim, seria aquela produtora de novas abstrações, de uma rede em cascata, em abismo, de (des)programações simultâneas, as quais visariam justamente gerar novas objetividades, subjetividades e novas formas de relações que vão além da propriedade intelectual, dos seus ramos e vetores.

Gamers e Hackers, portanto, são dois lados de uma mesma moeda. Eles compartilham da mesma gramática – seja ela política, tecnológica , histórica ou social. Uma gramática da abstração. A moeda, aqui, obtém uma curiosa declinação, já que os valores que estão em jogo, ou que seriam hackeados, exacerbam a inerente virtualização e abstração do próprio capitalismo financeiro. São valores – monetários e éticos – extremamente voláteis. O que House of Cards nos conta, de forma lúdica e dramática, é justamente como esses jogos e hackeamentos nos levam a um novo impasse das nossas categorias em que pensamos a política, bem comum, a utopia. Afinal, onde residiria a política se a própria cena comum tornou-se um índice de um devir efêmero, abstrato e por demais evasivo? Um devir ainda em curso, um eclipse, cujo percurso, por ora, é um puro abismo.

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