O Ato de Matar (The Act of Killing), de Joshua Oppenheimer (Dinamarca/Noruega/Reino Unido, 2012)

outubro 18, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Luiz Soares Júnior

theactofkilling

A arte da guerra

por Luiz Soares Júnior

The joy of killing! The joy of seeing killing done – these are the traits of the human race at large…”

Mark Twain, “Following the Equator” (1897).

Depois de tanto conhecimento, o que fazer do perdão?”

T.S.Eliot, Gerontion (1920)

Quando O Ato de Matar começa, rememorar é festivo, dançante: mas o décor nos parece estranho, anódino e sombrio demais para uma comemoração: infenso à aura; e o homem dança desajeitado, cambaleante no seu papel, como se uma máscara se forjasse ali – máscara que não cola inteiramente na cara, e percebem-se as frestas e as rugas do celofone rebelde: é que um morto se abrigou sob o papelão, e ameaça voltar à cena.Persona”desde sempre foi um teatro perigoso- na corda bamba, esquizo e trágica, entre Mesmo e Outro, Algoz e Vítima… O filme será a história deste morto – destes tantos, épicos mortos – que o rosto-máscara do personagem, cansado de tanto mentir e beber, revelará.

Quantas vezes o cinema exercitou esta equação, assassinato e mise en scène? Talvez o filme paradigmático para se abordar esta sinistra consanguinidade seja Disque M para Matar (1954), de Hitchcock – e os elementos necessários à concentração e condensação da pulsão mortífera, suasituaçãonum espaço-tempo de cena já conhecemos: décor reduzido, papel ativamente carnívoro da câmera, onipresença do fora de campo, coalescente instância de treva que executa com a câmera um jogo erótico de precipitação e retração, aqui e lá… Mas O Ato de Matar também é um documentário: ele tira da mise em scène o papel de mediação alquímica fundamental na economia de representação do crime, e apela aocacheda tela – ao final de uma longa história, voltamos a Bazin e sua dicotomia entre a janela de Brunelleschi e ocacheda tela… algo se revela e ao mesmo tempo se oculta aqui. Cabe a nós jogar este jogo, decifrar esta charada, encontrar o Minotauro acuado, ao fundo do espelho.

Em Festim Diabólico (1948), Hitchcock dá à câmera uma maleabilidade e ritmo que nos levam a inferir uma identificação mimética entre o esqueleto do instrumento da representação e o meu corpo, suporte de pulsão e meio de ação: sim,mimetismo; é lá que começamos, de lá a arte não sairá. Hitchcock devolve à representação um corpo e uma dança, volta a envolvê-la no circuito da Natureza, a dotá-la novamente dofascinodo basilisco; em O Ato de Matar, a premissa é pós-moderna: é dado aos sujeitos (aos objetos) da enunciação, nós espectadores, um lugar no circuito, uma cadeira no palco.

Mas a oferta é pálida, em relação à encarnação proposta por Hitchcock – ao fato de que, ao masturbar a câmera de todas as formas imagináveis, ele definitivamente nos seqüestra e amarra à câmera, nos torna cúmplices e vítimas deste monstro quesou eu: à câmera são derrogados três pessoas pronominais, a onipresença e a onipotência (a onisciência permanece na cartola do demiurgo metteur en scène) desta trindade manca que tem no diretor o terceiro e invisível vértice, o cúmplice divino. A premissa do diretor classicista é aquela dodeus absconditusouotiosusde São Tomás de Aquino: Deus criou o mundo, e ao sexto dia “se mandou”- a História humana é a história do desaparecimento do divino, de seu “ocultar-se”. Se Hitchcock, no auge da idade clássica, aposta todas as suas fichas num mimetismo da encarnação, O Ato de Matar não se abstém de nos chamar para compartilhar o segredo dos clássicos, aquilo para o qual piscavam o olho, acamara escuratabu: que tudo é objeto de encenação, que viver é representar-se no palco da pupila do Outro, que matar e ser morto são fantasmas ou máscaras que todos podemos usar (trocar, desvestir, travestir).

Todo o cinema de Dario Argento não aborda senão este parentesco, esta implicação: para matar, é necessário planejar, representar imaginariamente os instrumentos, seu uso, sua posição no espaço libidinal do criminoso e no espaço diegético do plano – sua interioridade paranóica, sua exterioridade onívora ( extra-territoriaridade)… mas em Argento (como em Hitchcock, e em seu rastro) é a psicose que possibilita esta intersecção entre as cenas – o psiquismo e ares publica, o indivíduo e seu papel social… há sempre uma insuspeita profundidade subjacente ao que se mostra – uma profundidade metafísica, que crava suas garras no Hades que preside ao nascimento do indivíduo, da Diferença que se desgarrou do Uno… O Ato de Matar, neste sentido, é um filme pós-anti-Édipo: matar aqui não é uma questão minha– a responsabilidade é nossa, o delírio é coletivo, a implicação, epocal.

Desde os filmes mexicanos de Buñuel nos anos 1950, o cinema flertava com esta dimensão radicalmente infra-estrutural do Desejo – sua fixação numa base econômica, histórica, exterior, para além (aquém?) do “papai, mamãe e filhinho pederasta” (Genet). Em El (O Alucinado, 1953), de Buñuel, quando o paranóico Francisco sente a mulher escapar de seu controle, volta-se para a especulação imobiliária, a Bolsa, os trustes; quando perde nas ações e no jogo, retoma o caminho de casa e demoniza a Mulher… o Id vai e vem, mas não sai do lugar: alguém saberia como pensar o nazismo sem admitir esta dupla cidadania do Inconsciente- ao fantasma da criança molestada, aoWirtschaftswunder (milagre econômico alemão)? Se é possível a representação em O Ato de Matar, é porque a encenação se inscreve na possibilidade desta cratera (não mais paranóica, identitária, agora esquizo): qualquer um de nós pode ocupar qualquer papel, criminoso ou vítima, analista ou psicopata “ideal”; o filme só se empenha em inventariar os diferentes possíveis pontos de enunciação desta premissa, em tirar daí os tipos, as vozes e os espaços de encenação que esta ubiqüidade do fantasma (este pertencimento comum aos afetos, ao Estado) suscita: se o dispositivo hoje é convocado com freqüência pelo cinema contemporâneo, é porque ele permite esta exterioridade flutuante à qual inclusive a mise en scène é convidada a se integrar.

O determinante aqui, como no classicismo, é o espaço; a diferença é que lá era o espaço-cadre, o ponto de vista encarnado, mimético; aqui, o espaço é antes de tudo uma posição de enunciação, o lugar de onde se fala e se escuta – e se transmite e repercute a mensagem. Apenas a posteriori este vai identificar e plasmar-se num décor. E este é o estado atual de coisas de uma longa trajetória; desde os anos 1950, o cinema redescobriu (à sua maneira) teóricos como Eisenstein, Epstein e Delluc, e retomou o insight de que, se a princípio é uma arte radicalmente materialista, este “teatro das matérias” que é o plano e esta linha de montagem sintagmática que é a sequência nada seriam se não fossem igualmente significativos – se o corpo, o magma, a presença não estivessem subordinados a um código ou gramática, a uma linguagem, que assinalasse as regras deste jogo cognitivo que um filme também é.

(…) explicando, por exemplo, que a mise en scène não consiste apenas no efeito, mas na idéia; não somente a premeditação e o estratagema (ruse), mas também o collage e o acaso; não apenas o incrível plano de grua de A Marca da Maldade, mas também estes planos ‘jogados na lixeira’ de que fala Chabrol a propósito de alguns filmes de Aldrich; (…) em suma, que a mise en scène não consiste apenas em mise en scène, mas também no contrário do que pensamos, na rota traçada por Delluc.” (André S. Labarthe, “Morte de um conceito”). O texto de Labarthe foi escrito em meados dos anos 1960, mas só agora a crítica parece estar começando a ver que dispositivo (por exemplo) e mise en scène não são necessariamente termos ou conceitos opostos, mas experiências intercambiáveis e justapostas de representar uma mesma fundamental questão para o cinema (ponto de vista, aqui); e quem negaria que a mise en scène mourletiana, com suas tintas de idealismo epartis pris metafísicos de toda sorte (a fascinação, o “natural”, a centralidade e frontalidade perspectivada do Sujeito Moderno) não seria o equivalente a um dispositivo? O caminho trilhado pelo cinema moderno dialetizou, “resolveu” o que em Mourlet permanece enrijecido numa retórica gongórica. É possível opor mise en scène e olhar ontológico, por exemplo, em Céline e Julie vont en Bateau (Rivette, 1974), Idade da Terra (Rocha, 1980), Eu, um Negro? (Rouch, 1958),Passion (De Palma, 2012), dos grandes filmes recentes? Não é tambémum documentário sobre o mini-panóptico que carregamos todos aconchegado em nossa bolsa, o celular? Mabuse se tornou monstruosa, odiosamente pequenino; infiltrado por tudo, rizomático; o caminho de abstração e desenraizamento traçado para o mal no distante Testamento do Doutor Mabuse (Fritz Lang, 1933) encontra enfim um meio tecnológico à altura. É difícil estender a esta geração de filmes incríveis o conceito de dispositivo como base transcendental ou fundamento, mas aquilo para que desejo chamar a atenção aqui é que uma arte não-acadêmica permanece sempre tateante, híbrida, onívora, em busca de e aliada a – e cabe ao crítico detectar e traçar o caminho do monstro, não à arte submeter-se aos ditames autocráticos do crítico (outro monstro, aliás).

Assim, o que O Ato de Matar nos oferece em termos desta conjugação entre técnicas e conceitos a princípio irredutíveis? Um conglomerado de espaços, onde não apenas discursos são remetidos a suasituação enunciadora (“aqui”, esmagamos a cabeça do sujeito batucando com a mesa), mas também onde a encenação se encarrega de presentificar o fantasma abandonado na sarjeta daqueles cenários. Aqui, o discurso reencontra o espaço originário da ação; e a ação finalmentese diz, se manifesta como Logos. E, ao dizer-se, finalmente acontece, numa boa fórmula para traduzir o círculo virtuoso da Fenomenologia do espírito hegeliana. Cada seqüência permite-nos inferir a conclusão, sem chegar a desvelá-la completamente; jogo, aqui e ali. Assim, temos um bando que, álacre e cantante, volta a batucar com a mesma mesa a mesma cabeça, na delegacia agora desocupada; a invasão coppoliana da casa dos “subversivos”, na selva, com as mulheres e crianças e o público desfalecendo sob otohu bohucomovente; a encenação da interrogação propriamente dita, com a intervenção inesperada do “terceiro excluído” – o rapaz que, menino, assistira ao seqüestro e morte do padrasto…

Na meia hora final, porém, o filme descamba para o demonstrativo, o mecanismo do jogo se manifesta demasiado evidente, e emperra (“Agora, eu sei que sou um assassino”; o filme visto com os dois netos, onde o avô interpreta uma das vítimas, numa “encarnação” barroco-apocalíptica). O que disse da cognição vale igualmente em cinema para a manifestação, o presente, o dom, e até mais: é preciso saber equilibrar e tamisar estas dissecações intelectuais, estas digressões, estas inquirições com a matéria primeira, elementar do Mundo.

E onde fica a inocência num filme sobre a culpa que finalmente “se faz minha”? a inocência – a impossibilidade de julgar-, que geralmente espreita na arte a estas operações de julgamento e análise?, que cava no Logos um lugar para o humano? O Ato de Matar brinca diegeticamente com a inocência como um dia o cinema clássico brincou extra-diegeticamente com seu poder de crença sobre nós: o filme começa solicitando às crianças que participem da invasão da casa da floresta, de onde tantos foram arrastados para a Morte… é às crianças que o pedido é dirigido: uma cumplicidade sem resgate, um pacto imundamente desigual. Um dia, nos pediram para acreditar: crer que o mundo e a representação eram um só. Sempre soubemos que eraapenas um filme; mas o pacto clássico contém uma cláusulaad hoc: “ é precisocrer para ter acesso a este mundo”. Para ser admitido no domínio da fascinação e do arquetípico, é preciso pagar o pedágio paulino, a fidis (Fé). Questão de culto e de ideologia, como de hábito.

Godard, inspirado provavelmente pela tese de Virilio em “Guerra e Cinema”, tirou as radicais conseqüências, em História(s) do Cinema (1988-1998), desta aliança consangüínea entre cinema e fascismo, entre fascinação e Poder total: o resgate integral do valor de culto, agora unicamente a serviço da idolatria. Aqui, a apóstrofe destinada às crianças recebe uma inflexão decisiva. Se antes nos era tacitamente exigido fingirmos acreditar no filme – este sempre foi o único ingresso a pagar -, agora explicitamente se dita aos espectadores mirins a atual regra de ouro: “Isto é apenas um filme, vocês vão fingir que nós entramos na casa e matamos seus pais”. E no entanto, um dia… Se ao imaginário era outorgado direito de cidadania na clareira do Real (minha percepção), agora é o Real que acede ao status de ficção para celebrar a mentira e a abjeção. Finis terrae.

Share Button