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Fé árida

Sequizágua comunga dos desafios vividos pelo cinema brasileiro que mais recentemente inventou seus passeios entre real e ficcional a partir da aproximação ao cotidiano de territórios e sujeitos à margem dos holofotes midiáticos. Na busca por uma poética do convívio, retrabalhada em matéria de cinema, as obras formularam diferentes arranjos para o encontro criativo entre equipe de filmagem e pessoas filmadas. Ao se inserir nessa teia de experimentos, Sequizágua aponta novidades formais, ensaia caminhos plásticos e nos põe a questionar a energia que o filme terá para tensionar os lugares estáveis já consolidados pelas obras com as quais inevitavelmente dialoga – como outros filmes mineiros a exemplo de A Vizinhança do Tigre (Affonso Uchoa, 2014) e Homem-Peixe (Clarisse Alvarenga, 2017). Fazer da singularidade de seu canto um farol para novos rumos comuns é um desafio que permeia o primeiro filme da Mostra Aurora.

Por matéria elementar tão entranhadamente sua, temos o que seria a base-mãe de qualquer singularidade: a terra onde pisamos. Terra seca e árida do cerrado mineiro onde Sequizágua nos convida a caminhar de pés descalços e boca aberta – prontas para comê-la ou sermos comidas por ela. Jamais uma terra descolada do tempo ou de sua memória, o que o filme estabelece já no plano inicial: a história do assentamento narrada pelo verbo de um dos assentados, em que se revelam os processos sociais e (anti)naturais que impactaram o lugar. Ainda nesse começo, assistimos ao movimento de câmera que acompanha um galho em riste, ao centro do quadro, e a terra variando (mesmo que sempre árida) ao fundo. Nos detenhamos um pouco em torno dessa operação pois ela elucida algo de importante: enquanto na imagem assistimos o presente desse solo, sua versão atual, privada de irrigação e alienada de sua própria fertilidade, no som escutamos uma voz em off narrar o tempo em que ali existia água, jacaré e abundância.

Se a matéria audível desse plano – disjuntivo na relação entre imagem e som – adquire um sentido mais pleno de existência, é justamente ao imergir-se sob a terra vista. Bem debaixo da superfície desolada, um canto de água, em forma de prece, lembrança ou cantiga transmitida por gerações. Cabe a nós que assistimos, nos perguntar, a partir desse instante, em que medida o filme se permitirá entoar junto esse cântico, perceber a temperatura do solo que o emana e modelar sua própria forma em ressonância com a forma em que a prece se realiza – nas ancestrais liturgias, rezas e procissões cujas manifestações acompanharemos ao decorrer do filme.

Por limite ou desatenção (e essa é a primeira dificuldade de Sequizágua), o filme não encarna a prece por chuva com a mesma visceralidade que dedica ao diagnóstico da seca. Enquanto há uma reserva criativa vigorosa para desenhar as condições adversas do ecossistema, as procissões documentadas carecem de fé no seu acompanhamento. Com efeito, a tragicidade do solo é quem receberá os enquadramentos e lamentações mais atenciosos à sua força dramática, bastando notar como os elementos sócio-políticos que compõem o fenômeno da seca (a monocultura e o êxodo rural) serão explorados fotográfica e dramaturgicamente – através da visão das plantações de eucalipto ou da despedida da amiga que parte para São Paulo. Por outro viés, aquele fio de inventividade cotidiana mantenedor do viço por seguir em meio à adversidade – qualquer uma das inúmeras formas de invocação para um dia líquido cultivadas entre o semi-árido brasileiro – não afeta a forma do filme com a mesma intensidade.

Se percebemos a insistência em que a reza e os rituais insurgem entre a comunidade do assentamento, a maneira como esses rituais são retratados por Sequizágua não só beira o desperdício de sua iminente força performática quanto impede que ela se manifeste na carne mesma do filme. Dito de outro modo: mais do que um olhar etnográfico, o filme pretere essas vivências enquanto matérias que transtornem o próprio corpo da obra, assim como a terra árida foi capaz de fazer. A despeito de momentos poderosos que o animam (como o percurso sempre inquieto das crianças ou o magnetismo da figura da jovem adolescente), Sequizágua parece atado ao ponto de estagnação em que o devir fabular não conseguiu beber da fonte subterrânea ofertada pelos personagens. Trata-se de um filme que se deslumbrou ou se contentou com a existência de tal realidade, sem fazer dela um mote para criações e implicações ainda maiores. Beber da fonte, aqui, não se trata de uma figura de linguagem qualquer: a fé irriga a existência da comunidade como a água da qual a planta carece para vigorar.

Dessa forma, o silêncio preenche os planos, mas a matéria sonora entoada nas procissões jamais embalará as ações do filme ou participará da composição de seu ritmo. Uma espécie de descolamento do pensamento estético em relação às práticas religiosas da comunidade acaba desconectando o filme de partículas elementares daquele local. Nesse gesto, o filme se afasta de seu lastro e da disposição em inscrever a ficção sob o real. Por debaixo das terras semiáridas, os personagens narram que existiram fósseis de animais marinhos, mas Sequizágua pouco escava ou suspeita da realidade dessa presença. Crer sem deixar de duvidar, duvidar sem deixar de crer. A tal dialética entre a crença e a dúvida que Sequizágua parece querer evitar. Por nunca parecer acreditar de fato, o filme não consegue ao menos trabalhar sua dúvida.

Talvez por conta dessa desconexão, Sequizágua acabe esgotando seu potencial propositivo e, em meio a um momento histórico em que as articulações do campo para retomada das relações de cura com o solo (proliferação de escolas formadoras em técnicas alternativas de agricultura sintrópica, manejo e reaproveitamento de recursos hídricos ultraescassos) crescem expressivamente, tudo que o filme elabora enquanto discurso sobre a luta rural seja a reiteração do saudosismo da época de abundância e a cantilena de lamento do eucalipto e das migrações para as grandes cidades. À poesia de cada dia, faltou fricção entre seca e reza, ideias de filme e ideias de mundo. Ou como disse Edgar em sua música Marimbokan, “Deus sol e deus chuva, revezem mais”, sobretudo aquelas divindades intangíveis, o sol e a chuva concebidos quando mais se carece deles, cultuados por debaixo das imagens: criações fabulares a partir das quais a imaginação e a devoção se percebem parceiras capazes de reenlaçar uma existência em comunidade.


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