Quadros do Romero Britto, uma imagem da Coca-Cola, a televisão ligada e um jogo de computador. Viviane Machado, mãe de Bruno Risas, diretor e, em certa medida, o narrador do filme, acende um cigarro enquanto joga nessa sala que não poderia ser outra coisa que não um primoroso esboço da classe média paulistana.
O longa-metragem se passa no contexto de uma série de infortúnios que envolvem o desemprego do pai (Julius Marcondes), o emprego mal remunerado da irmã (Iza Machado) e o retorno para a antiga casa da família na estação Bresser-Mooca. Fecundado durante quase uma década, o filme é uma íntima colagem de excertos da vida familiar que se transforma em uma constelação que descobre, na montagem, o fluxo orgânico e narrativo da história.
O filme parece se pensar o tempo todo, reflete sobre o seu feitio à medida em que Risas embaralha os limites entre equipe e família, entre atuação e vida cotidiana. Utilizando-se de um dispositivo que recupera Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu tensiona até o limite aquilo que é uma encenação de si mesmo e o que é um retrato genuíno documental.
O longo processo fílmico permite também certa circularidade e continuidade construídas em cima de retalhos não-cronológicos. Em nenhum momento nos é exposta a cadência lenta da produção, permitindo um contato que, apesar de certamente ruidoso, é fluido. Apesar disso, o longa jamais se alicerça nessa prolongada e laboriosa construção para se autopromover enquanto tal, mas sim faz uso dessa perturbação para promover a autorreflexão que permeia toda sua carne.
Dotado de uma melancolia inescapável, o retrato familiar ganha contornos ásperos e disruptivos ao expor completamente o aparato fílmico. A confusão entre vida e trabalho, proposital, é o que permite o distanciamento necessário para que o espectador elucubre sobre o processo de feitio. Em nenhum momento nos é dado o direito de imergir profundamente no que supostamente seriam as frivolidades da família. A narração de Bruno, que por vezes irrompe amealhada aos acontecimentos, retoma o próprio roteiro, prevendo as ações daqueles que seriam os personagens de sua casa.
Dentro desse completo imiscuir entre trabalho e vida, entre performar e ser, os depoimentos mais íntimos, seja de Bruno brevemente falando de suas tristezas e do fim de seu relacionamento, seja o monólogo da mãe sobre se adaptar e aceitar sua própria situação de mediocridade, são estranhamente pungentes. Entranhados na decadência típica das famílias sob os efeitos da crise, os relatos, que variam entre o registro da entrevista e o do depoimento pessoal, costuram as imagens mais observacionais do cotidiano.
A fantasmagoria de Bruno, que por vezes some do registro e reduz o apartar entre nós e a tela, é parte desse fluxo incontínuo e incongruente das imagens. Destaca-se do filme também a efêmera aparição de Flora Dias (diretora de fotografia), ex-companheira de Bruno, ao final do filme. Após dirigir Viviane em uma cena que faz uso da exposição do aparato, Flora foca nela mesma refletida no espelho, abrindo para uma sequência que, se antes parecia uma brusca e permanente mudança no tom, ao amplificar a atmosfera sombria que já pairava, é substituída pelo retorno das imagens às quais já estávamos acostumados. A todo momento o filme busca essas erupções fugazes que ludibriam o espectador.
Nos minutos finais de filme irrompe, por fim, o acontecimento mais absurdo de toda sua narrativa. Depois de sairmos da claustrofobia de uma casa aflita somos levados para as ruas paulistanas encobertas por um céu tingido de surreal azul-piscina, acompanhando a caminhada de Viviane que parece saber muito bem para onde deve ir. Planos abertíssimos nos carregam até uma ponte, no qual ocorre a abdução da mãe de Risas por um OVNI malfeito que paira por São Paulo. O acontecimento é de conhecimento geral e os familiares continuam suas vidas sem se afetarem por isso. Logo após algum tempo – indeterminado – Viviane volta para casa, inalterada, e diz que aquele outro planeta para o qual ela foi levada era bem similar à Terra. Numa espécie de ironia absurda, a abdução, recurso geralmente catártico e solucionador para aqueles que anseiam uma mudança radical, é reduzido à frivolidade de uma compra no mercado ou o lavar de louças. Risas é taciturno ao ponto de extinguir quaisquer possibilidades de escapatória da vida exígua. Mais sarcástico ainda é que logo antes de ser abduzida por extraterrestres, o close na mão de Viviane escancara os gestos idênticos aos de Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), de Spielberg, recuperando no mais ácido estilo pastiche um ícone dos filmes apocalípticos sobre a vida fora do planeta.
No epicentro das produções audiovisuais que buscam, por meio de retratos mais intimistas e menos totalizantes, tensionar determinadas questões sociais, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu é um exemplo muito bem-sucedido. Completamente soturno e disruptivo, o longa de Risas é, além de um espelho fragmentado da vida média paulistana, um filme que questiona a maneira como vivemos, trabalhamos e nos articulamos dentro de uma estrutura aparentemente inabalável. Em um contexto burocrático de São Paulo no qual a divisão entre essas esferas é axiomática, o longa põe à prova o espectador viciado em crer na tão pouco confiável tela preta diante de si.
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