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— Canta pra mim?

Distopia não é a palavra, é tudo perto demais. O mundo já acabou algumas vezes. E renovadas formas de se chegar ao fim se delineiam a cada aurora. A ruína vem sendo escrita, filmada e recontada com distintas fisionomias. Tantas imagens e sonoridades foram concebidas para ensaiar uma faísca que guardasse uma parte desta terra sofrendo o interminável processo de arrasamento e restauro. A matéria trabalhada na mais recente manifestação de Glenda Nicácio e Ary Rosa é o futuro próximo de um Brasil desmoronado. Voltei! (2020) radicaliza um experimento já saboreado em Até o Fim (2020) – longa anterior da dupla – e é forjado inteiramente na força monumental e singela da arte de narrar. O filme inteiro se passa numa única sala de estar, e o país despedaçado ao qual somos apresentadas se sedimenta na atenção de uma câmera ao verbo, o resto é noite.

2030. Sabrina (Mary Dias) acende uma porção de velas para iluminar a casa, a energia elétrica acabou já não se sabe mais há quanto tempo. Alayr (Wall Diaz) chega do trabalho com uma máscara cobrindo sua boca. Fátima (Arlete Dias) é uma desaparecida política, sequestrada há oito anos pelo governo do Disparate. O universo fílmico é regido pela chave de uma série de ausências. Falta luz, falta saúde, falta a presença de corpos que desobedeceram. Na forma do filme – um retrato em espelho, muito afiado – assistimos um cinema na arquitetura do mínimo. A coisa se dá na miudeza: um copo de cerveja quente, uma lamparina e um rádio de pilha. A escassez produz uma super-atenção. Cada gesto das atrizes, o texto-coreografia sendo dito, e tudo mais que pousar sobre a mesa das irmãs, será alçado à categoria de substâncias encantadas.

Tudo no filme é anúncio e quando Fátima bate à porta, já esperávamos por ela. Alayr e Sabrina também, o prato de maniçoba antecipadamente preparado, as cordas do violão sendo afinadas por oito anos, adivinhando o retorno de uma vida — É ela, Sabrina, tem cheiro! A celebração do olfato se derrama por todos os sentidos num abraço que vira música. As irmãs se encostam, se re-conhecem, narram uma à outra, enquanto a câmera tira onda com inusitados enquadramentos, ângulos e movimentações, chamando atenção pra si, mesmo quando a conversa assume linhas mais severas. O cinema está sentado à mesa.

A dupla do Recôncavo segue firmando sensíveis permanências, que vão desde a continuidade de uma produção brasileira vigorosa e circulante, até um movimento interno de prolongamento, é notável a presença dos filmes anteriores no filme seguinte. Para além de personagens e enredos que se embaraçam, grifo a insistência deste artifício: um quadro que se faz explicitamente partilha. A tela recortada que em Até o Fim acontece quando Geralda toca o acordeão reaparece aqui, assim, em tom de aparição mesmo. Quando Sabrina pergunta qual o tipo de tortura que a mãe sofreu o filme responde com o rosto das três irmãs repartidos na tela dizendo num tempo só — O Brasil machuca. Me lembro de Walter Benjamin organizando um pouco da magia artesanal fundante da prática narrativa, tão cara a esse par de filmes: Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo.

Isso da coisa emendada é característica das conversas nascidas no escuro, junto ao fogo. O gancho entre uma história e a outra é a simples vontade de seguir a prosa, de permanecer em volta do calor. Por vezes, quando um grupo de gente confabula em torno de uma fogueira, é a própria fogueira que escuta as vozes. Em Voltei!, as velas e os santos escutam a algazarra das irmãs. Numa pátria iluminada por candieiro o riso das três mulheres vibra uma força vital. — Quem disse que não ia ter carnaval? (…) — Nós estamos vivas.

Nem um outro som no ar pra que todo mundo ouça

Caetano Veloso e Gilberto Gil, em As Ayabás (1976)

O rumor do rádio é suspenso, silêncio. Uma transição de íris lentamente se fecha até chegar no rosto de Fátima, a noite crescendo. Nenhum outro ruído em imagem ou som senão o grito de Fafá. Tudo que vemos e escutamos é o choro desengasgado que preenche todas as bandas, a mulher chora com as mãos. Adivinhamos o resultado mudo do julgamento que chegou ao fim pelas comemorações que se sucedem e pelo acender das luzes.

Agora sim, uma parte um tanto distópica: o gosto de vitória chega por vias institucionais. É pela votação dos ministros do Supremo que acontece a condenação do Presidente da República à prisão perpétua. Há ainda a necessidade de mais um anúncio no rádio, já durante os créditos: um preso brasileiro como qualquer outro. O que poderia ser facilmente trocado por “um preso sem garantia nenhuma de direitos básicos”. Amarga um pouco que a conquista seja entregue por duas instituições tão desgraçadas, o Supremo e o cárcere. Um sabor mais enérgico do que esse desfecho bem-sucedido já havia sido provado pelo filme, o gosto de um levante, os pés de Fátima atravessando o chão da cidade esquecida para os braços das irmãs e entoando, no breu da noite, uma canção junto delas.


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