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Dançar pelas imagens

A narrativa de Noite (Paula Gaitán, 2015) inicia-se com interações disformes de texturas sonoras em agitação enquanto a imagem permanece em silêncio. Fragmentos de uma cena do filme de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), se aglomeram na intensa levada da bateria e dos beats eletrônicos, compondo planos e sons que parecem só se (des)encaixar dentro do universo do filme. Corpos vibrantes expandem e retraem-se sob luzes neon em boates da cidade grande, em uma noite que é infinita ao mesmo tempo que é fugaz. Paula Gaitán captura as pessoas de perto, com a câmera na mão que acompanha os movimentos do corpo, que treme e dança, quase como se desse para sentir o cheiro do suor e o calor do ambiente. Gravado de forma errática, pelas andanças e experimentações com a câmera pela noite, a narrativa se entrelaça em regimes de atuações distintas, documental e ficcional são categorias indistinguíveis no interior do filme. Operando entre e pelas irregularidades, a narrativa por vezes captura os músicos enquanto tocam e logo depois intercala com a presença das pessoas que experienciam as músicas, em outro momento captura a personagem de Clara Choveaux interagindo com os personagens dançantes para logo depois captá-la sozinha, coberta de brilho em uma luz branca. Esses atritos nos conduzem pela experimentação sem linearidade ou compreensão pré-definida.

A experimentação da narrativa não está dissociada da política, compondo um universo de mulheres que se divertem à noite, a liberdade pulsa nos corpos com a frequência das músicas e das luzes em êxtases ou apatias inebriantes. Sob luzes verdes oscilantes enquanto o breu da noite as rodeia, mulheres performam em um espaço compartilhado que parece infinito, o espaço da experimentação sensorial. Direcionar o corpo-olhar para as experiências sensitivas das mulheres em boates, numa construção estética que dança junto e preze pela autonomia dos corpos e das imagens, é tecer esteticamente uma política da emancipação desses corpos e do não condicionamento às estruturas convencionais (do cinema e do social). O patriarcado é uma estrutura constituinte dos meios de comunicação, na forma como vemos os filmes e como personagens femininas são filmadas e projetadas – principalmente quando são homens brancos e héterossexuais que estão por trás das lentes. Paula Gaitán elabora uma narrativa que desordena imageticamente a estrutura patriarcal – pelo olhar sensível que capta as sensualidades e flertes performáticos das personagens sem objetificar seus corpos – e o conservadorismo estético do cinema narrativo – pela espiralidade narrativa e abstrações cromáticas. Não que o filme se coloque diretamente no lugar do embate e da confrontação dessas estruturas, mas o faz justamente pela poética experimental que assume. 

A cacofonia como matéria fílmica é constante, gerando atritos entre o que é visto e o que é ouvido, que se reconfiguram no entrelaço, no corpo a corpo, até que se torne outra coisa, numa fruição que é sentida no corpo inteiro, uma experiência sinestésica que sampleia os ruídos, as temporalidades e imagens aleatórias numa organização do caos. Em certo momento, enquanto a personagem de Clara Choveaux dança com um rapaz em primeiro plano, o tempo fragmentado pela montagem provoca a aceleração dos gestos que avançam pelos cortes. Projeta-se ao fundo um trecho de  Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha, em uma mescla de texturas  – o projetado e o filmado, o preto-e-branco e o colorido – que enlaçam no mesmo quadro tempos distintos de um país. 

O embaralhar da projeção com a performance dos atores possibilita outra reflexão conceitual para o título do filme sessentista. O transe nesta terra é transmitido pela músicas de Jazz, Rock, Beats Eletrônicos, Música Latina etc, que se tornam indissociáveis umas das outras estabelecendo um estado de imersão.

A performance de Clara Choveaux é, assim como a construção visual, errática e fragmentada, oscilando entre a imersividade do corpo que se movimenta como o mar levado pelas ondas sonoras e a solidão melancólica que contempla a própria experiência. Se por um lado as aparições da persona de Clara são o elo narrativo mais evidente, a montagem do filme articula as suas ausências como uma presença espectral, fantasmagoria que performa entre e através dos tempos. Nesse sentido, Clara e Paula partilham desse lugar indefinido, de fundir-se no interior da matéria fílmica. A presença de Paula oscila no entre-lugar da criação, de captar e montar tais fragmentos a partir de uma perspectiva subjetiva, e da experiência compartilhada com os personagens – constituindo ela mesma uma personagem – nesses ambientes noturnos. As imagens também são exibidas de formas imprevisíveis, pixeladas, distorcidas e ruidosas, se opondo à hierarquia da alta definição e das altas resoluções que não se permitem o fora de foco, à incerteza do que é visto e as possibilidades de sentidos. 

A mudança repentina das músicas e ruídos reconfigura os planos criando atmosferas que alteram os sentidos do que é visto, como se precisássemos renovar o olhar para enxergar novas relações entre som-imagem, colocando-nos em deslocamentos pelo interior do filme. Como quem puxa o tapete abruptamente, a narrativa sonora impõe breves momentos de silêncio em que a temporalidade se dilata absorta nas abstrações, para logo em seguida as músicas ressurgirem com novas configurações. Contudo, a longevidade de algumas sequências, onde as ações (ou falta delas) se repetem num looping estético, torna a fruição com o filme, por vezes extenuante, num cansaço gerado pela repetição. Alguns artifícios estéticos mais excessivos – como no plano em que glitches cromáticos rasuram repetidamente a fotografia de uma mulher enquanto a câmera se aproxima em lentidão -, sobrecarregam um filme que já se faz na articulação de fragmentos amontoados. O êxtase pela experimentação que, por vezes, se torna cansativo ao olhar. 

O olhar cerrado e o corpo estático de Clara Choveaux contemplando o fora de de quadro se desfaz num corte, recolocando-a em performance espectral no espaço-tempo infinito. Clara dança feito as chamas de uma fogueira que não se cessa de queimar. Noite é um convite para dançar pelas imagens. 

 


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