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O deboche contido de uma alma piedosa

Eu, Empresa (2021) é o filme do fracasso da autogestão. Inscrito no universo autocentrado criado por Curvelo a partir da figura de Joder, seu personagem que encarna a figura do derrotado, o filme realiza a fusão da persona com seu criador. Como se víssemos o backstage da produção de Joder, somos apresentados a um Marcus debilitado em relação à vida. O filme tem como horizonte a construção cínica da falência múltipla da vida do protagonista-diretor, mas esta recrudesce, contida, ao não se devotar completamente ao escárnio que se propõe a executar.

O filme então passa a ser sobre as tentativas de ascensão de Marcus: tenta a vida de Youtuber enquanto aceita trabalhos mal pagos para se sustentar. De videomaker de um institucional de construtora a Uber, o personagem trafega entre trabalhos que prezam pela autonomia do empregado em relação ao empregador. Marcus Curvelo e Leon Sampaio, então, nos guiam pela existência derrocada através de múltiplas fontes de imagens. As cenas diegéticas se sobrepõem às feitas pela câmera de Marcus, que registra os quiproquós para o canal de Youtube, ao mesmo tempo em que a tela também é invadida por registros já incorporados às plataformas digitais. As imagens revelam as idas ao crossfit, sessões de coaching, prosas sobre reiki e vídeos de asmr. Como um carrossel do Instagram, cada plano se incumbe de sintetizar algum ícone da “tosqueira” na qual Marcus se envolve, e há uma tentativa – aqui, também fracassada – de ser risível. Crendo na potência da autoironia como comédia de desajustes, o filme não completa o desapego da imagem de si que tanto se faz necessário na investida planejada.

Ao convocar para o corpo fílmico artifícios da comédia escrachada, não há a auto-desimportância tão essencial para que público e personagem comunguem do riso. Quando se pensa em Hermes & Renato, por exemplo, se pensa em uma produção que não cria alianças e que é, de fato, destemida. Não há cuidados vaidosos em Joselito Sem-Noção ou em Massacration, diferentemente da dupla personagem Joder/ Curvelo. No movimento de filmar a desventura de si mesmo, Eu, Empresa não quer arcar com as consequências da acidez do gênero com o qual dialoga, permanecendo refém da manutenção da boa-vizinhança (seja com os personagens filmados, seja com o próprio universo que o rodeia).

Marcus, agora meio Joder, meio ele mesmo, gravita para a informalidade devido à falta de dinheiro. Ao filmar os novos parceiros de trabalho para a série que faz em seu canal sobre a vitória das empresas de um homem só, o personagem exibe o pseudo-triunfo dessas pessoas. O professor de skate, os entregadores, todos são expostos ao canal de Youtube como vencedores. Marcus se coloca em situação de inferioridade autopiedosa frente a estes homens que já estabeleceram raízes no mundo uberizado, fazendo do sarcasmo uma arma sem munição, que atira, ao léu, sem destino certo.

Recentemente esta revista fez uma série de publicações chamada #visõesdatreta, que se ocupou, em quatro textos, de vasculhar a relação dos entregadores de aplicativo e as imagens produzidas por eles, com eles e sobre eles. O texto de Juliano Gomes, Seriam os informais formalistas?, discute a natureza das imagens que pairaram durante as movimentações dos entregadores. Qual o estatuto da aparição de faces informais nas telas? Juliano, a certa altura, questiona: “Defender ativamente” é sinônimo de “aparecer defendendo ativamente”? A compreensão desse movimento de (auto)filmar é complexa.

Faço esse parêntese porque há algo no filme de Curvelo que me causa inquietação. Ao assumir o cargo de Uber, Marcus/ Joder vai a uma praça encontrar outros entregadores e os filma falando de seu trabalho. Homens falam da eficiência do aplicativo, que recentemente criou um botão “SOS” caso algum acidente ocorra e eles tenham ajuda, ao mesmo tempo em que enviam outro entregador para que o cliente também não sofra com o imprevisto. Aparentemente em seu momento de descanso entre-entregas, esses homens conversam com Marcus sobre a vida de autogerência. O comportamento amainado de Curvelo frente ao que ouve por parte dos entregadores cria uma falsa reverência acovardada, a partir do momento que sabemos qual a crença do filme em relação a essas existências. A vontade crítica de Marcus realiza, nesses momentos, um parêntese na continuidade fílmica que perturba o que aparentemente ele deseja realizar com o longa-metragem. O efeito tragicômico da cena em questão fricciona o material risível sem produzir faíscas a partir da tensão. As vontades do filme parecem trafegar em mãos opostas, querendo dar conta de mais questões do que de fato consegue.

A inserção desse universo no material convida o espectador a se relacionar de maneiras muito difusas com o que se propõe. Compactuar com certo lado não implica no usufruto da imagem do outro dentro de um filme que não compartilha da mesma essência. O ponto de inflexão entre a crítica explícita e o deboche anseiam, em Eu, Empresa, coabitar um espaço seguro. Mas, ao coibir que o cinismo impere por sobre todas as imagens, o filme só atinge um meio termo cômodo e não se entrega ao que se propõe a criar.

Eu, Empresa caminha incerto entre o escracho verdadeiramente desinibido e o bom mocismo disfarçado. É sobre fracassos, mas se ausenta das incumbências que existem quando se opta por filmar quem fracassa. Tenta, mas não rui nem constrói. O ímpeto disruptivo que paira no filme não alcança a força necessária para que o gesto seja ousado: a coragem necessária para efetivar a missão kamikaze desse tipo de empreitada. Curvelo, em certos momentos, recua do gesto suicida e recai na auto indulgência, com pena de si mesmo diante das desgraças.

Eu, Empresa talvez se leve a sério demais. A suposta cobrança que o filme se impõe de ser escrupuloso com seus personagens – inclusive com o protagonista Joder/ Marcus – amornece as crenças pressupostas nesse tipo de realização. O anseio pela bem-querença dos personagens carrega o deboche virulento para águas rasas, sem perigo. O ensinamento já está dado: “nosso trabalho é bem simples, nós tiramos os jovens do seio da família e colocamos nas tetas da maldade”. O importante é correr risco, se despir das vergonhas e se imantar do perigo.


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