Éramos um pequeno grupo, formado de quatro homens e eu. Passávamos o dia todo juntos às partes mais podres e rejeitadas de todo o Cinema Brasileiro: Cinema Marginal, Boca do Lixo, Pornochanchadas, filmecos, filmes cagados, podres, de som e de imagem fodidas, um verdadeiro esculacho.
Era como descobrir uma revista pornô velha, de páginas grudadas, amareladas e rasgadas, debaixo da cama de um primo. Assistíamos a tudo com o fascínio e o tesão daquilo que é renegado, pútrido e proibido.
Quem olha para esses filmes? Para esse cinema maldito, os escombros do cinema, aquilo que é manipulado para o esquecimento? Afinal, uma História do Cinema Brasileiro não poderia ser essa putaria, né?!
Dessa forma, nossa excitação aumentou ainda mais. Atrevidamente, criamos um cineclube, chamado CineLixo, para, ao menos, assistirmos aquela podreira (piorada, devido à falta de preservação e à péssima digitalização) numa tela grande (mais ou menos), com uma caixa de som meio quebrada, em um museu esquecido da cidade. E, de quebra, olhar junto com outras pessoas para aquilo que não poderia ser visto.
Era assim que acontecia: a cada filme, um trem que começava a subir pelo corpo, arrepiando os pelos e aquecendo. A cabeça acelerava e sentia a imagem roçando em meu olho, escorrendo da retina para a parte de dentro. Sem nem pedir licença, chegava já se acomodando, infiltrando-se, tomando seu espaço por aqui.
O filme acabava, a imagem me deixava, mas alguma parte parecia seguir comigo, uma vontade, uma espécie de busca ou de fome. Era gostoso. Aumentando minha ânsia por essa fricção entre cinema e corpo. Cavucava, cavucava e a fome só sabia crescer. Enquanto espectadora, em vários momentos o fascínio se interrompia. Em algumas cenas eu era expulsa do prazer.
Aquilo que arrepiava instantes antes parecia arranhar, machucando. Por maior que fosse a atração, o prazer das imagens era destinado a outro olho e falo. A imagem do prazer era a de um corpo em relação e conexão com o meu sendo estuprado, agredido, objetificado.
Aqui, o espaço já não me era permitido. Criando uma dicotomia no meu afeto por aquelas imagens. Uma parte que bate de frente com elas enquanto a outra parte me atrai.
Estranhamente, ao invés da repulsa, a fome persistia. Comecei a ter ainda mais atração por aquele cinema, movida não mais apenas pelo tesão, mas também por um atrevimento, que me motivava a peitar aquelas imagens que me cativam e abatem.
Olhava buscando os escapes, aquilo que negava o controle e a violência daquelas imagens. Esburacando aquele “prazer”. Ver através de um jogo de tensionamentos, desmembrando, apropriando-me e ressignificando as imagens e as forças delas. Criando desvios pelas pequenas brechas, fricções e lacunas entre a pulsão e a repulsa. Uma fenda onde se possa olhar.
Em uma das primeiras sessões, escolhemos exibir o Ritual dos Sádicos/O Despertar da Besta (1970), de José Mojica Marins (nosso temido Zé do Caixão).
Injeto.
Gosto do que me faz sentir.
Vejo na parede uma foto de uma mulher, nua.”Para quem ela olha?” – penso. Sinto percorrer meu corpo. Revigora.
Eles olham.
Outra mulher. Deitada de bruços, também olha.
Meu corpo só em meio a uma sala de homens.
Mais uma, de seios fartos. Ela olha.
Sentados no chão como cachorros.
Outra, dessa vez duas, uma com um ar infantil.
Todas nuas.
Todas olham.
E eles sedentos.
Asco.
Levanto.
Os encaro.
Sinto o poder que meu olhar tem.
Os domino. Hipnotizo.
Eles, meros reféns. Esse olhar perdido entre o desejo, a culpa e a violência.
Às vezes, parece que arranha.
Recordo-me da imagem daquelas mulheres. Quem as olha de volta? Olham?
Aqui, sinto que o filme me acompanha.
Eles salivam.
Tiro minha roupa.
E viro. Os olhos novamente.
Mas aquele olhar, que antes dependia de mim, agora me espreme, torna-se barreira. Me coloca na parede, e começo a sentir uma estranha obrigação.
Continuo a me despir.
No enquadramento, reduzo os homens, espremendo-os entre a abertura da minha perna.
Apresentam-me um objeto.
Reduz?
Abre-se um medo.
Eu rio. É ridículo. Eles todos ridículos.
Eu sento.
E já não olho.
Somente meu corpo imenso, ocupa essa imagem.
Quem olha agora?
Homens, à meia luz, falam. Debatem e teorizam sobre o que aconteceu.
Retorno.
Agora já sou outra.
Muito similar à primeira. Uma mulher branca, magra com seios e bunda, de olhos maquiados.
Saio do colégio. Um homem me coloca em um carro. Não me recordo quando permiti (permiti?).
Me vejo em um prédio. Subindo as escadas. Sinto-me tonta.
Era um. E então dois homens. Agora, são vários. E eu.
Em um apartamento.
Eles cantam, declamam, e riem. Como são engraçados.
Não entendo muito, mas rio.
Eles são engraçados.
Me tratam bem, como uma princesa. Todos muito excitados com minha chegada.
Eles são engraçados.
Me assusta.
Eles me tocam.
(permiti?)
O som anuncia. O filme sabe o que está a acontecer.
É engraçado.
Aqui, eu sou hipnotizada.
É uma festa.
É uma festa?
Todos gritam e cantam.
Eles riem.
(PLANO PENUMBRA)
O espaço vai se tornando mais escuro. Há portas e janelas.
Mas eles passam por todas elas.
Eles se aproximam.
Me preparam.
As mãos estalam.
Me encurralam e agora estou em um altar.
E aqui, devoram-me.
(permiti?)
Um a um. E todos olham.
Olham.
Devoram.
E para onde eu olho?
Êxtase.
Pavor.
Então rio.
Eles comemoram e enlouquecem.
Como são engraçados.
Cantamos.
Primeiro as mãos
em seguida,
um pau.
Um tronco
me perfura.
– como o senhor ordenou. Aleluia.
(permiti?)
O filme segue, e nele me torno várias. Todas meio parecidas. Como as mulheres das fotos na parede.
Todas olham. E todas devoradas.
Os Homens continuam explicando, é a moral, o normal, os anormais… É absurdo. É amor?
Uma delas chora. Olha a foto do marido, enquanto o amante a chupa.
Por quem ela olha?
Ela goza enquanto chora.
Há outra, muito jovem. Uma adolescente. Com um homem muito mais velho.
Uma mulher branca, também jovem, com um homem preto. Ele se ajoelha perante a ela. Eles transam. Enquanto a madame assiste entrando em êxtase.
E quem olha aqui?
Aqueles Homens de novo. Explicam tudo, e decidem fazer um experimento. Um estudo. Uma teoria. Mais uma.
Deitam-se em uma sala, há um poster do Zé do caixão.
Todos experimentam uma substância.
Todos olham para o pôster na parede.
Agora, a imagem os olha,
de volta.
INFERNO
Aqui há somente os gritos e as imagens.
As mulheres apanham. Somente os corpos delas.
Corpos nus.
A imagem pisa,
um por um.
Tudo distorce-se para se converter?
Indulgência ✝ Absolvição e remissão dos nossos pecados.
Conceda-nos, Senhor e nos conduza à vida eterna.
No inferno, todos nos olham de volta.
Mas, pela fenda, pode também o filme me olhar de volta.
Leia/veja também:
- Textos da série #mojicainvenção
- Conversa ao redor de uma nova cinefilia | Parte 2 – Os filmes problemáticos
- Sob o risco da ficção, por Ilana Feldman
- “As mulheres são como as águas, crescem quando juntas”, por Maria Trika
- Autor-personagem, personagem-autor, por Cleber Eduardo
- delém, por Ingá e Mariana de Lima