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Material perdido, arquivo sonhado, data desconhecida

Sonho:

Outubro de 2020. Visito as ruínas da Cinemateca Brasileira. Ainda paira um estranho odor de vinagre queimado. Piso sem querer numa caixinha arredondada, escurecida de cinzas. Abro. Um rolinho dentro. Sem pensar, levo comigo.

Projeto.

Silêncio.

Travelling pra trás, plano aberto: José Mojica Marins, capa preta e chapéu, acompanhado, sobe uma escada rolante.

Sereno.

Dois homens com ele. Não sei se é um shopping ou hotel.

Param no hall.

Olham, os curiosos.

Fotógrafos o esperam.

Som.

Corte.

Plano conjunto, Rogério Sganzerla, de xadrez, grave:

– As noções de respeito e firmeza são noções unanimemente consagradas pela nação Tupi, que ainda não foi suficientemente percebida pelos falsos intelectuais de araque deste país.

Fernando Coni Campos fuma, do lado esquerdo da imagem:

– Os artistas são divididos entre mestres, inventores e diluidores. Até agora, no Brasil, alguns poucos mestres e principalmente os diluidores têm tido vez. Estamos em plena época de diluição. De vez em quando aparece um mestre. Enquanto isso os inventores têm ficado por fora. Menos inventores e mais diluidores.

Um espelho ao fundo reflete. O câmera se mexe em U, plano de composição.

– Vi agora uma exibição do que é invenção. O gênero precisa ser assumido. O Cinema Novo tinha pavor do gênero. Medo do filme de aventura, preconceito. Comecei com policial. Não tenho medo de gênero. É uma coisa importante. O que importa é inventar. Esse é um filme de invenção. O filme de terror? Me dá medo!

Corta.

Hélio Oiticica, leve, plano aberto:

– Quem não é inventor não existe.

(Pergunta inaudível.)

Oiticica:

– Conquista de qual mercado? Não sei nada do mercado brasileiro. Sei lá o que é. Zé do Caixão é o mercado brasileiro. Não é uma das coisas mas vistas?

Panorâmica, Mojica, no centro:

– Adquiriu um público, as histórias de quadrinhos, dentro do gênero adquiriu um público sim…

Hélio:

– Mercado brasileiro é muito local… Não adianta falar em termos de Broadway. Neville, por exemplo, acaba de conquistar o mercado brasileiro…

Neville d’Almeida, de colete, médio:

– Ainda bem para o mercado brasileiro. A aceitação dos filmes do Mojica sempre foi total. Nada mais brasileiro, nada mais criativo. O universo de Marins é um acervo nosso. Os que não estão vendo ainda, vão ver. Mojica é um gênio. Todos os filmes tem chance de conquistar o mercado. Conquista do mercado é uma conquista do cinema, Mojica faz cinema, o mercado é dele. O segredo do sucesso é fazer cinema. O segredo do sucesso é…

Corta.

Satã, em silêncio, olha.

– Deixa te fazer uma pergunta.

Alguém diz.

Close de mão delicada com unhas longas, sobre roupas pretas.

Wilson Grey, elegantemente:

– Nós estamos aqui pra falar de cinema. O que é cinema? Eu faço e respondo: é uma verdade, é uma mensagem. Mojica Marins é pra mim um homem autêntico e verdadeiro. Só as pessoas autênticas sobrevivem. Tudo que ele diz nos filmes dele é uma verdade autêntica.

Propaganda de Martini ao fundo.

– Ele mostra tudo que queríamos fazer e não temos coragem. Nós estamos em um mundo de loucos, de sádicos, de desumanos, e Mojica mostra isso com uma verdade incrível. Dentro dessa verdade, ele mostra uma pureza profunda. Nós estamos realmente em um mundo de loucos.

Julio Bressane, também de xadrez, escuta. Zoom lento. Wilson segue:

– No tocante ao mercado, acho que Mojica Marins faz um sucesso tremendo aqui e no estrangeiro. Uma coisa nossa. Transpõe barreiras. Só transpomos barreiras com as coisas nossas autênticas.

Corta.

Bressane, ao lado de Satã, close:

– Gostei do filme. Esse é o cinema de invenção. Experimento. Gostei muito. Fortaleceu pra mim a ideia que tenho do Mojica, de uma charada. Uma charada sincopada, que a gente aqui da roda não decifra.

Pan lateral, José ouve, atento e modesto. Mexe levemente os olhos, semblante leve e intrigante.

– … sobretudo nesses serões de província. Mas qual o remédio, Mojica? É você mesmo, né?

Julio pega o microfone, plano americano.

– Esse é o remédio ou o veneno, pergunto pra você?

Zé Marins ri, discreto, chapéu e capa:

– Juntando o remédio e o veneno nós tiramos a coisa no meio, a média, entende?

Satã observa, entre os dois.

– Se a gente junta o remédio com veneno temos a cura pra tudo, não é?

Corta, tela parda.

Hélio, rindo de canto, de perto:

– O filme eu adorei. Realmente gosto muito das coisas que ele faz.

Close nas mão mexendo na blusa leve, deixando o umbigo à vista sobre a calça clara.

– Mojica é um inventor e não reinventor. Acho que só existe inventor… Esse negócio de diluidor, mestre, essa babaquice não existe.

José ajeita o chapéu, detalhe.

Diante de Neville, panorâmica, Hélio joga:

– Devia fazer era a Dama e o Zé do Caixão, a dama dando um blowjob no Zé do Caixão.

Corta.

Zé, de preta capa e chapéu, caminha e é visto com desconfiança por um homem de terno e uma dama de peles.

Corta.

Barulho.

Silêncio.

Acordo.


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