Entrevista com Rafael de Luna

julho 19, 2013 em Cinema brasileiro, Em Campo, Entrevistas, Thiago Brito

Rafael de Luna, autor do blog Preservação Audiovisual

Rafael de Luna, autor do blog Preservação Audiovisual

De onde viemos
por Thiago Brito

Pouco depois da 7a Cine OP, em Junho do ano passado, a Cinética fez uma entrevista com Rafael de Luna, professor do curso de cinema da UFF e autor do blog Preservação Audiovisual – valiosíssima fonte para qualquer pessoa interessada em cinema. Rafael de Luna havia sido o mediador oficial do debate envolvendo a então secretária do Audiovisual, Ana Paula Santana, e o então diretor da Cinemateca Brasileira, Carlos Magalhães, além de Marília Franco (ABPA), Patrícia di Filippi (Diretora e Coordenadora do Laboratório de Imagem e Som da Cinemateca Brasileira) e Regina Celie Simões Marques (Responsável pelos arquivos históricos da CAM/CGSIM/IBRAM). Ao final da Mostra, uma nova diretoria assumiria a ABPA, com Rafael de Luna responsável pela Direção Ténica.

À época, a entrevista foi feita com a certeza de que o enfrentamento testemunhado naquele debate – e a franqueza das posições ali claramente demarcadas – era de interesse para qualquer pessoa ligada ao cinema brasileiro. Hoje – publicada mais de um ano depois de sua realização – a entrevista com Rafael de Luna felizmente já não encontra ressonância no quadro presente, mas ajuda a tecer um histórico recente da preservação audiovisual no Brasil, e a determinar o peso e a dimensão de cada passo dado. Como no próprio exercício de preservação, o passado – mesmo que recente (e já aparentemente tão diferente) – é ferramenta essencial de compreensão do presente e projeto do futuro. (Fábio Andrade)

Thiago Brito: Gostaria, primeiramente, que você pudesse nos dar uma noção geral do que estava exatamente por trás da Cine OP 2012, a agenda. 

Rafael de Luna: Esse em particular foi importante, porque o último Cine OP foi bastante esvaziado, por vários motivos, não só pela atuação da Cinemateca, que tem sido centralizadora nos últimos anos e tem encontrado cada vez menos resistência organizada, até da própria ABPA, inclusive, que também estava bastante esvaziada. Ano passado teve uma eleição que quase não teve eleitores, a diretoria assumiu pouco respaldada e praticamente não fez nada entre o último Cine OP e este. Então, ela chegaria um pouco esvaziada, a não ser pelo fato de que o Hernani Heffner retomou a curadoria, conseguindo dar um levante muito bom na programação. A presença de três convidados internacionais chamou muita atenção, por que eram pessoas de instituições importantes – inclusive, a Caroline Frick é uma convidada hoje muito prestigiada no meio. Então, isso chamou a atenção, deu uma nova visibilidade para a Cine OP, a esse evento, chamando atenção até mesmo da Cinemateca Brasileira, que no último ano não tinha mandado representante algum. Nos últimos anos eu tenho mediado o que se poderia chamar de a “mesa oficial”, com representantes do Governo e de instituições Federais, e no ano passado, por exemplo, foi meio ridículo, porque a mesa era eu e Gustavo Dahl, ele Representando CTaV, Secretaria do Audiovisual e a Cinemateca Brasileira. Então, não teve muito debate. E esse ano, como o Cine OP voltou a ganhar visibilidade, teve como resultado a confirmação da presença tanto do Carlos Magalhães e da Patrícia de Filippi, representando de fato a Cinemateca Brasileira, como também a presença de Ana Paula Santana, que nunca tinha ido ao Cine OP.

Parece que ela mesma se convidou.

Sim. Até porque a gente teve a presença do Sílvio Da-Rin, acho que até em duas oportunidades, o Newton Cannito, se não me engano, não foi, mas mandou representante, e a Ana Paula nunca tinha ido. O que mostra, por um lado, um certo descaso com a Cine OP, ao mesmo tempo que a falta de prestígio da ABPA. Isso mudou um pouco esse ano, voltou a ter um relevo, então, eu acho que o que aconteceu lá foi fruto da Cine OP, finalmente, voltando a ter visibilidade como fórum de discussão e uma série de questões que estavam represadas nos últimos dois anos puderam ser colocadas e, enfim, discutidas. Acho que por isso que foi tão quente.

Tendo até mesmo uma renovação dentro da ABPA. 

Sim, eu vejo como um amadurecimento. Quer dizer, todo mundo teve uma chance para estar à frente da ABPA, foram quatro comissões executivas distintas. Eu, diretor de comissão executiva entre 2009 e 2010, houve uma outra em 2010 e 2011, entre 2011 e agora… todo mundo que quis fazer parte teve oportunidade. Então, não foi por uma questão de oposição, todo mundo teve chance. E todo mundo viu que as coisas são mais dificeis do que se imagina. Não basta ter vontade, tem que ter cooperação de um grupo, não basta ter uma pessoa na frente. Agora, esse grupo que está à frente – o Hernani, inclusive, foi o primeiro diretor de uma comissão executiva, e, agora, é presidente – é um retorno em uma outra base, mais madura. Com menos questões, ou atritos internos. E um desejo também, mais particularmente do Hernani, porque as coisas estão indo muito mal e, se a gente não tomar uma iniciativa, não vai mudar nada. Em certo sentido, as coisas só pioraram nos últimos tempos e é necessário tomar alguma medida.

E você acha que agora, com essa renovação, a ABPA vai conseguir o espaço necessário para dar maior visibilidade à área de preservação?

Tem fatores que são alheios à vontade da ABPA. A política atual da Secretaria do Audiovisual, nós não temos muita influência.  A grande luta é pra conseguir mobilizar os esforços, que são dispersos, em prol da ABPA. Porque existem várias iniciativas, várias pessoas, várias instituições, que conseguem fazer essa pressão política ou mobilizar individualmente ou localmente. A dificuldade é canalizar isso tudo para uma instituição nacional e que esta instituição nacional tenha uma repercussão. Isto vai depender da própria ABPA, dos esforços, de ver se a gente consegue dar a força que ela precisa, e vamos ver se as iniciativas da ABPA vão ter ressonâncias. Eu acho que sim, mas não acho que irá ser uma coisa fácil, nem simples. É um trabalho a longo prazo que pode estar começando de verdade agora, mas os frutos não irão ser recolhidos tão cedo. Não digo que o que veio antes não serviu para nada, acho que foi importante para ter um amadurecimento interno para ter uma atuação pública. Foram anos – realmente anos – elaborando o estatuto, elaborando qual seria a natureza da ABPA, e acho que agora isso está um pouco mais claro. Todo mundo já se conhece, já temos um estatuto, que foi discutido. Então, eu acho que temos agora bases mais sólidas para parar de se voltar para dentro da ABPA e ir para a rua. Acho que podemos começar, agora. Algo que era embrionário pode se tornar mais efetivo.

Gostaria que você comentasse, então, o papel da Ana Paula Santana no Cine OP. Principalmente, na mesa em que você foi mediador, onde estava a Ana Paula, a Patrícia de Filippi, o Carlos Magalhães e a Marília Franco, ex-presidente da ABPA. Tive a impressão de ter sido o debate mais caloroso de toda Cine OP.

Todos já conheciam a posição da Ana Paula. Eu não a conhecia pessoalmente, mas já havia lido entrevistas. A atuação da Secretaria do Audiovisual tem sido muito criticada sob a direção dela. E, no Cine OP, ficou claro que essa é um atuação criticada por diversas frentes. Ela foi muito criticada pela mesa de “O Cinema Brasileiro e a Educação”, por exemplo. O Cezar Migliorin apontou vários problemas ligados à área de produção documentária. Tem insatisfação do educadores, insatisfação dos realizadores, em particular os documentaristas, em relação a suspensão de edital, etc. E ela tem sido criticada, obviamente, pela área de preservação. Eu acho curioso que, nessas criticas que ela recebe de todos os lados, provavelmente a de maior repercussão seja a da área de preservação, pois ela vem utilizando esse campo como grande trunfo da gestão dela. “Posso ser criticada por isso ou por aquilo, mas, na preservação, estamos bem, estamos investindo muito dinheiro, etc”. A Cinemateca é a grande “obra” dela. O que não é dela, mas vamos dizer que na gestão dela tem sido o principal trunfo que ela apresenta. E acho que para ela foi uma surpresa, porque mesmo esse “trunfo” dela tem sido largamente criticado pelos próprios profissionais de preservação. Eu acho que ela não esperava, ou talvez não esperasse, uma postura tão crítica pelos próprios profissionais do meio. Por outro lado, a mesa foi interessante porque lá ela definiu os argumentos dela, com vigor. Argumentos que, como eu fiz questão de colocar na mesa, eu acho completamente equivocados, mas que, por um lado, denota uma franqueza, uma crença naquilo, por outro lado uma coisa muito mais complicada, que é tentar convencer uma pessoa que acredita que está fazendo o certo, segundo os princípios dela. Uma pessoa que defende fortemente aquela atitude política, que é centralizadora, de investimentos direcionados única e exclusivamente para a Cinemateca Brasileira.

E isso ela deixou extremamente claro

Sim, e eu acho que até surgiu como uma surpresa para as pessoas, essa afirmação tão veemente, tão enfática, de que, sim, vamos continuar fazendo exatamente o que estivemos fazendo esse tempo todo. Vocês podem criticar, mas a política não vai alterar. Mesmo que o Sílvio Da-Rin, pra ser sincero, tivesse tido a mesma postura, quer dizer, isso não mudou muito, ou quase nada – talvez o volume de investimentos tenha aumentado, não sei – mas a postura da política da Secretaria do Audiovisual que foi traçada tem se mantido a mesma desde o Sílvio Da-Rin, aliás, desde antes dele. Mas o Sílvio fazia questão de ser menos enfático, sendo talvez, mais cínico. A primeira apresentação do Sílvio Da-Rin na Cine OP foi talvez tão desastrosa quanto a da Ana Paula. Só que menos enfático, menos assumido. Mas ele falou praticamente a mesma coisa: a preservação só existe na Cinemateca Brasileira. Ele foi, inclusive, falacioso, porque, ao se referir à Cinemateca do MAM/RJ, se referiu a ela como tendo um papel de preservação só na década de 1960, remetendo à juventude dele, a época “áurea” do Cosme Alves Netto, esquecendo, por exemplo, que ele tinha estado na Cinemateca do MAM um ou dois anos antes da apresentação, porque ele tinha ido dar uma aula em um curso que a gente organizou para o Tela Brasilis no MAM [curso História do Documentário Brasileiro, 2006], na época em que ele não era ainda Secretário. Foi um curso ótimo, para mais de 150 alunos, com exibição de cópias  raras, em película, de documentários brasileiros, a publicação de um catálogo etc, tudo isso na Cinemateca do MAM. “Esquecer” disso em sua fala como secretário foi uma coisa muito cínica. Eu tinha ficado extremamente revoltado com a apresentação dele. Mas, havia uma expectativa, e o Sílvio dava uma esperança, enfim, existia uma margem de negociação. Por mais que ele adotasse aquela postura, ele não era tão inflexível quanto a Ana Paula parece a qualquer outra crítica ou argumentação contrária ao que ele fazia.

Penso principalmente no argumento da vocação regional.

Ela castra qualquer tipo de argumentação contrária, partindo do princípio de que há vocações inatas a regiões, a espaços e a instituições.

Até agora não compreendi qual o instrumento sísmico que ela usa pra interpretar esses talentos.

Quando eu estava a frente da comissão executiva da ABPA, a gente chegou a ter uma reunião com o Sílvio Da-Rin na mostra de Tiradentes, negociamos. Havia, talvez, uma possibilidade de mudar um pouco o quadro, até mesmo pela postura política do Sílvio, que é mais conciliador, um pouquinho pra um, um pouquinho pro outro. E, nisso, a Ana Paula pareceu ser muito pior. Embora ela tenha, obviamente, tentado contornar uma impressão dela, no Cine OP, prometendo esmolinhas a um e a outro, individualmente depois. De todo modo, a repercussão foi muito ruim e a mesa foi muito tensa porque não houve de fato um debate, no sentido de tentar discutir os argumentos. Houve um enfrentamento de argumentos contrários, em que o lado do governo, da Secretaria do Audiovisual e da Cinemateca Brasileira não se mostrou nem um pouco sensível a nenhum dos argumentos e nem disposto a debater. Ao contrário, eles se mostraram impassíveis. E a gente, agora, tem que pensar em como enfrentar essa postura em outras frentes, né?

Encontro de Arquivos, CineOP 2012

Encontro de Arquivos, CineOP 2012

Na mesa, me pareceu que a conivência entre a Secretaria e a Cinemateca Brasileira eram muito grandes.

É, você tem um grupo que tenta se blindar mutuamente. Você tem a Secretaria do Audiovisual, com a Ana Paula, a Cinemateca Brasileira, que tem seu lado administrativo e seu lado técnico em sintonia absolutas, além de seu lado “sociedade civil”, através da SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca) e a Maria Dora Mourão, que tem também extensão do lado acadêmico, já que é professora da USP e ainda presidente da Socine. Então, você tem um quarteto que tem poderes em diferentes instâncias em sintonia completa, que tentam barrar e frear qualquer tipo de iniciativa contrária. Então, você tem uma autoridade técnica da Patrícia di Filippi, uma autoridade acadêmica da Maria Dora Mourão, e uma autoridade administrativa e política do Carlos Magalhães e da Ana Paula Santana. Então, você tem a tentativa de um discurso ensaiado deles que é complicado, embora a autoridade e especialização de cada um deles possa ser obviamente questionada.

E faz com que qualquer iniciativa reformista pareça quase como um sonho.

A gente tem um quadro que já está muito entranhado. Isso começou com o Orlando Senna, quando esteve na frente da Secretaria do Audiovisual. Quer dizer, esse acordo tácito entre a Secretaria do Audiovisual e a SAC, e a Cinemateca Brasileira via SAC. A SAC é um ótimo auxiliar do governo, que facilita qualquer trâmite burocrático, então dezenas de projetos que não necessariamente estão ligados à preservação passam pela SAC, o que cria uma dependência da SAV pra SAC, dando poder pra SAC enorme, com o Secretário dependendo de sua assinatura para uma série de projetos. Você tem, ao mesmo tempo, um volume de recursos financeiros que correm pela conta da SAC, que obviamente dão uma verba própria pra SAC, de manutenção dos projetos, etc. O que cria uma figura de poder absurda, já que não está ligada nem à SAV, nem necessariamente à Cinemateca Brasileira, mas à SAC, que é uma organização civil, que, em princípio, faz o que quer da vida. E, disso, acontecem coisas como aquele absurdo com a tal compra de acervos, que jamais foi discutido com a sociedade civil, foi uma decisão autoritária do governo. Nunca foi discutido com a área se era prioridade comprar, quais acervos comprar, quanto comprar, sequer foram divulgados oficialmente os valores… ou seja, uma falta de transparência completa. Ninguém sabe, por exemplo, quem é o titular do acervo agora! Há suspeitas de que seja a própria SAC. E, se for isso, o governo está dando um patrimônio comprado com dinheiro público para um órgão civil. Ou seja, você tem, inclusive, irregularidades aí. E não há nenhuma postura de se prestar satisfação disso, seja à sociedade ou seja mesmo à classe!

Então, se tem feito as coisas com essa postura de poder que se mantém, de forma autoritária, sem nenhuma discussão, sem nenhuma posição, o que é muito complicado. Mesmo que tenham feito coisas importantes, como o investimento na estrutura física da Cinemateca, você tem que discutir, tem que deixar claro, ainda mais se a maior parte do recurso é público, se você é um orgão público – então, você tem essa obrigação ainda maior. Mas há uma falta de postura de gestor público nessas quatro figuras que eu falei, de prestar contas, de discutir, de ouvir, que é ridículo. Eles foram lá para falar, não para ouvir. Essa é a história trágica da preservação: pela primeira vez, na história do Brasil, ela tem direito a recursos mínimos para trabalhar, ao mesmo tempo em que é o momento de maior autoritarismo, falta de discussão com a classe e de decisões equivocadas. Há dinheiro, mas, também, nunca se gastou tão mal esse mesmo dinheiro.

A Cinemateca Brasileira não virou um estandarte da SAV, nos últimos tempos, à toa. De fato, ela investiu bastante em sua estrutura, de tal modo que se transformou, como tanto se alardeia, na melhor cinemateca da América do Sul. Eu mesmo já presenciei vários eventos lá, e, realmente, você vê vários convidados internacionais que ficam impressionados, com o espaço que ela tem, com a sala de cinema, etc. Mas, o investimento na Cinemateca Brasileira é também muito de fachada. Tirando os coquetéis, os cafés, você tem graves problemas estruturais, que são semelhantes a várias outras cinematecas do mundo. Então, tenta-se vender uma imagem da Cinemateca de opulência e riqueza que não corresponde. Essa opulência não existe em nenhum lugar do mundo. Então, por exemplo, a questão dos funcionários, que é fundamental para uma Cinemateca, afinal ela não é feita apenas de edifícios e cofres, é muito complicado. Você não tem concurso, você tem os funcionários públicos mais experientes saindo todos, uma precariedade de vínculo, há muito rodízio, já que não há perspectiva de crescimento de carreira, etc. Mas, mesmo assim, a Cinemateca Brasileira, como propaganda de governo, tem feito questão de se mostrar para os órgãos estrangeiros com uma grande cinemateca. Eu me lembro quando a Nancy Goldman, do Pacific FilmsArchive, de Berkeley, foi para lá dar um seminário, ela começou dizendo: “Ah, eu não sei se vou ter alguma coisa pra poder ensinar a vocês, vocês têm um trabalho ótimo, etc”. O que é verdade, têm, sim, um trabalho ótimo, mas focado numa linha de trabalho tradicional das cinematecas: o universo do fotoquímico, um laboratório próprio, copiamos nosso nitrato que ficam num depósito particular, etc. Mas o trabalho de preservação, nos últimos tempos, mudou muito. O digital mudou tudo, uma concepção tradicionalista do cinema como patrimônio, do “mantenha frio, mantenha seco, feche à chave e esqueça, promova acesso em sua sala própria, exibindo os clássicos em retrospectivas, etc”, essa visão tradicional da conservação, tanto no aspecto da preservação quanto do acesso, tem sido questionada e foi até mesmo revolucionada nos últimos tempos. O digital não é só uma tecnologia. Implica uma nova série de paradigmas em termos de conservação e acesso.

E dos convidados internacionais? O que você acha que trouxeram para a discussão?

O trabalho da Caroline Frick é especialmente importante nesse sentido. Ela faz questão de ser extremamente iconoclasta, quer dizer, gosta de provocar, o que é bom, pois a gente vive, atualmente, a era digital, que é uma era de incertezas. Então, princípios clássicos como “mantenha o original nos arquivos”, só se promove acesso quando estiver preservado etc, têm sido questionados. E ela questiona bastante, principalmente em seu livro, a autoridade e poder que foi acumulado por essas grandes cinematecas nacionais, uma geopolítica ameaçada pelo advento de pequenas cinematecas regionais.Um caso exemplar que ela analisa em seu livro “Saving Film: The politics of preservation” é o da Grã Bretanha, onde você tem uma grande instituição como a BFI (British Film Institute), estatal e de cinema, com o National Film Archive dentro dela, sendo questionado por pequenos arquivos de lugares como Gales, Irlanda, ou Escócia. Então, eu acho que ela traz argumentos muito interessantes para a gente repensar a situação do Brasil, repensar inclusive essa estrutura arraigada e tradicional da cinemateca nacional, que não tem sido questionado mas precisa ser, pois não é mais adequado para os novos tempos. A gente tem uma produção hoje do, por exemplo, novo cinema brasileiro onde o que é menos interessante é feito em película 35mm e vai pra sala de cinema. Isso, mal ou bem, está resolvido. Um filme da Globo Filmes é sempre feito com dinheiro público, é obrigado ao depósito legal de uma boa cópia em película na Cinemateca Brasileira. Mas e tudo aquilo que circula por fora? Isso não tem sido enfrentado de modo algum, tem-se varrido a sujeira pra debaixo do tapete, como tem-se feito em grande parte do mundo, até que o problema, daqui a dez anos, vai se tornar insolúvel. Você vai querer fazer uma retrospectiva, vai querer achar esse material e não vai ter. E isso não está sendo enfrentado! A Cinemateca parou no tempo e o Brasil, em termos de preservação, está assistindo o bonde passar sem fazer nada.

É importante também o questionamento com relação a FIAF (Federação Internacional de Arquivos de Filmes).

Ele é muito interessante. Eu descobri há pouco que a Caroline Frick foi recém eleita presidente da AMIA, que é a associação de arquivistas audiovisuais sediada nos Estados Unidos. É um fórum interessante e que tem crescido cada vez mais, e se contrapõe à FIAF, que é o fórum tradicional dos arquivos, ou seja, justamente destas grandes cinematecas nacionais. Mas a AMIA, na verdade, congrega qualquer um, qualquer profissional, inclusive muitos ligados a estes arquivos regionais, locais, ligados a universidades, que é o que a gente não tem no Brasil. E os Estados Unidos são um caso interessante, porque eles não têm uma grande cinemateca nacional, que é um modelo europeu, principalmente inglês. Essa fragmentação é bem típica dos Estados Unidos e, não à toa, é lá que essa concepção tradicionalista tem sido questionada. E a gente, no Brasil, via Cinemateca, tem um diálogo quase que exclusivo com o universo da FIAF. Não à toa, a Cinemateca foi sede do encontro da FIAF recentemente.  Então, acho que essas ideias podem arejar muito, abrem uma porta em termos teóricos e políticos que podem ser muito proveitosos para a gente. Já a fala da Francesca Angelucci (Cineteca Nazionale de Italia), embora também interessante, foi algo que nós já temos certo conhecimento, embora seja sempre legal ouvir sobre fluxo de trabalhos diferentes.

Já o Carlos, da Cineteca Nacional de México, é uma outra história…

Sim, com ele nós vimos um projeto atual, né? Um projeto que está acontecendo. A Cineteca Nacional de México foi praticamente extinguida com o incêndio da década de 1980. Então, é um trabalho que você está vendo que é formidável, de grande vulto, daquelas grandes obras que não são só faraônicas, mas que realmente mudam uma situação e tornam o antes e o depois completamente distintos. Mas o que é muito engraçado é que, quando ele falava dos grandes gastos, e você pensando a atual situação brasileira, que é a de ser provavelmente a mais rica entre as nações emergentes, você começa a perceber que os gastos não são tão grandes assim, principalmente quando você compara com o que é gasto hoje em dia. Vemos que o problema não é financeiro, é de vontade política. E o discurso do Carlos dá inveja, pois é um discurso de entusiasmo. E o seu discurso foi muito curioso quando você compara com o discurso da própria Ana Paula e você avalia os valores que estão envolvidos. São realmente custos vultosos que se está investindo lá, mas não são custos inimagináveis, e nem completamente fora de nosso alcance, de nosso contexto brasileiro. Então, trata-se sobretudo de uma vontade política. De você direcionar os recursos já existentes, já possíveis, num bom projeto.

A própria Débora Butruce (Coordenadora do Acervo Audiovisual CTAv) questionou isso, a diferença entre o custo para se construir novas instalações e o custo que um trabalho de restauração exige. Você, aliás, também questiona o trabalho de restauração em seu texto no catálogo, demonstrando que há uma seleção de obras de prestígio no ato da restauração.

Sim, é aquela coisa: você gasta muito dinheiro em coisas que dão visibilidade. Tanto no setor privado quanto no setor público. Não se investe no que precisa, se investe no que dá “marketing”. Então, o Brasil precisa fazer saneamento básico, mas não faz. O cano fica debaixo da terra e ninguém vê. As pessoas querem inaugurar hospital, mesmo sem ter funcionários, sem ter equipamento, sem ter nada. Precisam ter algo para mostrar. E na preservação você acaba tendo isso, restaura-se filmes para poder levar e apresentar no Odeon, mas e o resto todo? E pagar o salário dos funcionários? E comprar luvas, mesas enroladeiras, latas? O que foi questionado quando se teve o SiBIA (Sistema Brasileiro de Informações Audiovisuais), que foi um movimento de ouvir vários arquivos do Brasil e entender as necessidades deles, é que precisava, simplesmente, do mais básico possível. Pagar pessoal, comprar insumos, adquirir mesa enroladeira, etc. Ou seja, não se faz o que é mais necessário e que às vezes é o mais barato e o mais simples: dar as mínimas condições para os vários arquivos exercerem seus trabalhos. Então, a Cinemateca do México mostrou um projeto grandioso e que não era só uma fachada, mas um projeto integrado, onde as iniciativas se completam. Você restaura hoje a obra do Glauber mas, e daí? E daqui a 10 anos? Não vai mais passar DVD, vai passar Blu Ray, e os arquivos podem estar corrompidos. Ou seja, é um trabalho que te dá uma visibilidade hoje, mas não é nada a longo prazo, não é algo que sustente a continuidade do sistema de preservação, onde o que mais se precisa é continuidade. Este tipo de trabalho não é feito.

E o que está em jogo, novamente, é a busca de um projeto de Brasil, um projeto que vise uma continuidade.

Claro. A gente está com um grupo de trabalho na Secretaria Estadual de Cultura, um GT de preservação. E a primeira coisa que conseguimos foi esse edital para a preservação, através da SEC. É a primeira vez na história que o governo do Estado do Rio investiu algum dinheiro em preservação audiovisual, o que é alguma coisa. Mas, é aquela coisa: edital, você tem esse ano, pode não ter no outro, acabou esse, você está na mesma, acabou o projeto, acabou. Você fez alguma coisa mas, ainda há muito pra ser feito e é necessária uma continuidade. Então, o que é necessário é aquilo que nenhum governo quer, que é colocar rubrica no orçamento. Aquilo que eu descobri nesse GT que é “colocar no PPA” (Plano Plurianual), pra você garantir um investimento constante na área. A própria Cinemateca Brasileira não tem isso. Se as coisas mudarem e fecharem a torneira, ela acaba. Todo mundo lá é pago por projeto, o dinheiro vem por rubricas específicas, não tem um fluxo constante. Ou seja, mesmo na Cinemateca Brasileira, que é um orgão chave, você não tem um trabalho em perspectiva de longo prazo.

Até lá há uma falta de projeto.

Sim. O que a gente precisaria era criar um projeto amplo, democrático, que conjugasse os esforços individuais com perspectiva de continuidade. Se não, não adianta. E, em preservação, continuidade é tudo. Estamos sempre lidando com o fato de que todos os nossos esforços podem ser jogados água abaixo, ou por mudança de governo, ou por falta de dinheiro, ou por falta de funcionário, etc.

Pra finalizar, você poderia comentar um pouco a sua ultima colocação no debate, ao contrapor a idéia de vocação com a ideia de sonho?

Isso foi um contraponto à ideia defendida pela Ana Paula de vocações institucionais ou regionais, contra a área de preservação do CTaV. Além de historicamente impreciso, é um argumento fácil de ser quebrado. Se a questão é vocação, a Cinemateca Brasileira, quando surgiu há meio século como Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo, não tinha uma vocação para Preservação. Assim como inúmeros arquivos surgidos no pós-guerra, inspirados na cinemateca francesa, assim como no Film Department do MoMA, a Cinemateca Brasileira surge como um grande cineclube. Não tinha acervo. O objetivo era exibir os clássicos, promover uma cultura cinematográfica, elevar a educação cinefílica dos espectadores, etc. É ao longo do tempo, inclusive através da viagem de Paulo Emílio Salles Gomes à Europa e o ingresso na FIAF, é que se conscientiza de que essa atividade cinefílica de acesso passa pela preservação. Uma conscientização não só da preservação para a atividade cinefílica de acesso, como da preservação do seu próprio patrimônio audiovisual nacional. Então, a vocação da Cinemateca Brasileira mudou ao longo da história, assim como a do MAM/RJ. Então é ridículo você dizer que a vocação do CTaV, que realmente surgiu nos anos 1980 como um centro técnico, como um apoio técnico a um polo de excelência de animação  – quer dizer, você quer dizer que o CTaV hoje não deve fazer mais nada além de animação? Só porque nasceu através de um acordo com o National Film Board do Canadá? Então, é um argumento ridículo, por que as vocações mudam ao longo da história, e o CTaV teve um papel importante desde cedo na área de preservação também.

Enfim, a vocação são potencialidades, e essas potencialidades têm que servir ao que interessa mais no momento. E eu acho, e eu falo como um carioca que trabalha e conhece a situação aqui, que nós temos muita potencialidade para exercer um trabalho de muita qualidade na área de preservação dentro do Rio de Janeiro, com essa geração. Algo que a Cinemateca Brasileira não pode negar, e que é um dos lados negativos dela, é que ela não formou uma nova geração, falando de um conjunto significativo e orgânico de pessoas. As pessoas que ainda são as cabeças pensantes da Cinemateca foram formadas na ECA, por Maria Rita Galvão, alguns até por Paulo Emílio, etc. Mas não formaram uma nova geração. E isso ocorreu no Rio de Janeiro, de forma muito curiosa, vinculada à UFF… a criação de uma geração que gosta do trabalho, que pensa, que tem vocação, no sentido de paixão por aquilo que faz. E o maior patrimônio que temos, atualmente, são essas pessoas. É uma pena que se torna tão difícil aproveitá-las, de dar oportunidade de elas trabalharem. O grande mal do Brasil é dar dinheiro na mão de quem não faz nada, e não dar oportunidade de quem pode fazer, de fazê-lo. Então, quando eu falo em sonho, eu falo naquilo que a gente sonha e pode fazer, dando condições para que elas possam fazer. É um absurdo, porque esse discurso da vocação exatamente castra esse sonho. É muito cruel o que a Ana Paula defendeu! Você dizer: “só quem vai trabalhar com preservação é São Paulo, é a Cinemateca Brasileira!” Quantas coisas não poderiam ser feitas no Sul, no Nordeste, no Centro-Oeste, e você castra porque diz que não é sua vocação trabalhar nessa área? O que é trágico neste discurso é cortar as asas de pessoas, de instituições e regiões que têm um potencial de construir muito mais do que se tem feito. E acho que temos que lutar pra isso.

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