A obra de Gabriel Mascaro é um dos raros casos entre cineastas brasileiros à qual a redação da Cinética devotou, em sua história, um estudo contínuo e sistemático, que pode ser rastreado nas diferentes fases da revista. Seus filmes foram vistos entre nós ora com admiração, ora com reserva, ora com profundo distanciamento crítico, mas raramente com indiferença. Talvez porque os filmes de Mascaro, além de provocadores e inquietantes a cada vez (a ponto de motivarem a escrita de três textos críticos sobre a mesma obra por diferentes redatores, como no caso de Boi Neon), nos permitam acessar um conjunto de questões muito caras à conversa sobre o cinema contemporâneo: os novos estatutos da imagem, as dinâmicas de apropriação de materiais alheios, os imbricamentos entre estratégias documentais e ficcionais, os regimes éticos da imagem contemporânea, os desafios da comicidade, a relação entre o cinema brasileiro e o circuito dos festivais internacionais. Talvez porque sua obra caminhe num compasso inquieto em relação às questões políticas e sociais do Brasil contemporâneo. Ou ainda porque, além dos filmes, algumas ideias trabalhadas por Mascaro em sua trajetória nos interessem de perto.
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Juliano Gomes – Qual foi a semente do filme? Qual o princípio do interesse que vai formar o projeto?
Gabriel Mascaro – É sempre difícil ter a clareza de como uma ideia brota. Mas talvez a semente, fazendo um exercício mais racional, vem de um desconforto muito grande como a forma com que o tema do evangelismo foi debatido no Brasil ao longo da última década, em especial de quem se dispôs a criticar o projeto de poder evangélico. E esse desconforto vem, em parte, do que eu percebo como um componente de classe preocupante da elite intelectual brasileira ao problematizar o projeto de poder evangélico a partir de uma ótica que eu acho equivocada. Mas antes de entrar nisso, fazendo uma regressão, eu venho de uma classe média baixa, minha mãe é professora de escola pública, cresci num bairro que teve a presença de uma igreja evangélica atuando numa esfera onde o Estado era claramente inexistente. Vi de perto esse templo se expandindo, amigos se convertendo, e o bairro se modificando culturalmente. É inegável a força, a eficiência, e o legado que uma igreja deixa no entorno, no aspecto comunitário. Para quem tem uma experiência afetiva com um pastor que o conforta, que o abraça, que olha no olho, que chora e sorrir junto, tem uma lição política aí. Como lidar com a suposta felicidade do outro? Sempre me fiz essa pergunta. Diante da impossibilidade de responder a essa pergunta, como artista, me vem o respeito pela fé do outro, ainda que eu também me sinta confortável em problematizar politicamente o efeito social e político da fé. Fato é que as correntes mais hegemônicas do evangelismo fizeram um trabalho de décadas de forma muito eficiente e o impacto “qualitativo” é muito mais expressivo do que uma certa intelectualidade brasileira de esquerda tentou atacar com um discurso genérico, ora fazendo referência ao um suposto ‘charlatanismo’ dos pastores, ora questionando a contribuição financeira dos fiéis à igreja através ‘dízimo’. Outra inquietude minha vem do desprezo ao legado cultural e estético da cultura evangélica, onde se sugere que os fiéis são chatos-insistentes e que os cultos são ‘sem graça’. Isso não é verdade. E toda generalização é perigosa, ou melhor, é infantil. Além disso, se pensarmos a reforma protestante, vamos perceber que é uma religião que desde lá até aqui, e em especial quando a religião protestante chega no Brasil, ela vai tendo diversas ramificações, diversas correntes, e isso tem impacto nas diferentes formas de ritual e prática religiosa. São muitos evangelismos. É uma religião muito viva e por isso foi igualmente fascinante fazer a pesquisa para o filme. Na pesquisa fui desde templos pequenos de periferia a templos gigantes e suntuosos. Fui para uma pregação em plena segunda-feira ao meio dia no Templo de Salomão surpreendente sobre como obter sucesso financeiro. O ritual, do ponto de vista de performance, me tocou profundamente. Depois descobri que era um dos melhores pastores do Brasil. A ideia de um “melhor pastor” me mobilizou a pensar que também existe um projeto estético evangélico inusitado, existe uma performance a ser executada e apreciada, e pouco debatemos isso, nem mesmo entre os artistas, nem historiadores. E o debate estético sobre religião-arte-política é para mim um uma pedra fundamental para refletir sobre o fenômeno do evangelismo no Brasil, já que sua marca é a ruptura com a tradição da arte sacra. O evangelismo é iconoclasta. O evangelismo para a história da religião é para mim na verdade algo equivalente do que foi a arte conceitual para a história da arte. A arte sacra e seus objetos materiais de adoração aqui cede lugar ao minimalismo arquitetônico espacial. No evangelismo, o que está em questão é a produção de retórica e a performance como agente mobilizador de afetos. É uma doutrina religiosa que desmaterializou o objeto e seu projeto estético é antimatéria. O que está em questão é acessar o lugar do êxtase pelo culto à palavra e pela experiência. Não tem como discutir o projeto de poder evangélico sem discutir o projeto estético vigoroso e radical por trás dessa manifestação religiosa. A cerimônia evangélica é muito envolvente do ponto de vista da ‘arte dramática’. E eu tinha um desafio de pensar a atualização estética e uma novo regime de espiritualidade evangélica em 2027. Na pesquisa também fui para uma rave evangélica surpreendente na periferia de Recife com um pastor liderando a cerimônia com um guitar hero no pescoço, tocando guitarra como se fosse um videogame evangelizador num telão e cantando músicas de louvor. Era uma cerimônia religiosa alucinante e com jovens de 12 a 15 dançando sem parar. Imagina os pais e mães desses filhos, contentes em saber que os filhos não estão no tráfico e sim fritando a cabeça em amor e louvor a Deus numa rave sem drogas? Imagina o impacto que tem a ideia de o dízimo ser ao mesmo tempo a forma que o fiel contribui para a igreja mas também ser o gatilho para sua primeira experiência de se organizar financeiramente, para pela primeira vez na vida conseguir ‘separar o dinheiro’ e organizar as prioridades de investimento? A elite intelectual investe na bolsa de valores e os evangélicos investem na igreja. Aí vem a classe intelectual abastada e foca o debate político no que, do ponto de vista do fiel, seria o motor propulsor da transformação econômica de suas vidas… Uma certa ‘arrogância de classe’ da intelectualidade brasileira tem me incomodado profundamente e eu precisava arriscar outros olhares. Num outro filme, Boi Neon (2015), eu tinha um interesse pessoal em pesquisar sobre corpo e espaço em transformação, num contexto de um lugar que teve uma mudança econômica acelerada. Tentei mapear novas identidades em um espaço que muda rapidamente. Esteticamente, o filme se vale de espaços ‘arejados’ nas contradições de entorno. Em Divino Amor eu queria pesquisar corpo e estado, num contexto onde o estado passa a ter controle sobre a biopolíticas dos corpos. Queria fazer um filme bastante contido e com espaços confinados. E pensando em estado, me veio a possibilidade de flertar com a tradição de gênero, relendo a ideia de pensar a distopia, mas também o lugar da utopia, já que estamos tratando de religião, fé e esperança. O filme se passa num futuro próximo e especula um 2027 não tão distante para fabular de forma lúdica sobre o nacionalismo brasileiro associado a uma suposta identidade nacionalista cristã. A festa mais importante do Brasil já não é mais o carnaval e foi substituído por uma festa ‘verdadeiramente’ religiosa, uma rave gospel. Mas ao invés fazer um filme narrado a partir de um personagem dissidente, o que é muito como nas narrativas ‘futuristas’ envolvendo Estados totalitários e mundos distópicos facilmente ‘reconhecíveis’, pelo contrário, decidi fazer um filme sobre uma mulher que encarna o desejo de radicalizar ainda mais seu projeto conservador de sociedade, de maneira muito singular, então a protagonista acredita que o mundo é bom e pode ser ainda melhor, à medida que a relação de engajamento do espectador cria um jogo de aproximação e afastamento inusitado com a personagem protagonista. A personagem do filme, Joana, desafia algumas noções do papel do corpo enquanto agente libertário. Ela coloca o próprio corpo à serviço de seu projeto pessoal de radicalizar a agenda conservadora de manutenção da família cristã. Seu corpo é instrumento de fé e amor a Deus. O grupo “Divino Amor” é uma terapia religiosa de reconciliação de casais com regras e objetivos claros. O grupo se vale de métodos extremos para preservar a família tradicional sob o slogan que afirma que “quem ama não trai, quem ama divide”. E Joana é uma mulher que faz tudo por amor. A premissa foi pensar um novo estatuto para a sexualidade, imaginando uma nova disputa política do corpo em um novo contexto, com novos regimes de prazer e violência, e assim especular sobre como os corpos lidam diferentemente com essa nova escala de significados num país que passou por mudança cultural. E sendo um filme também sobre corpo, termina que Divino Amor tem algo deliberado entre a tradição bíblica e erótica. Tentei resgatar um pouco da herança da pornochanchada no Brasil, que terminou sendo uma estratégia de cinema bastante curiosa e popular na cinematografia brasileira, ao misturar crônica e pornografia. Queria trazer um pouco dessa identidade nacional que a pornochanchada construiu no imaginário brasileiro. O futuro próximo do filme tenta estabelecer uma narrativa para apontar uma mudança muito mais no campo da cultura do que no campo do virtuosismo diletante da tecnologia. Para mim, os poucos aparatos tecnológicos que aparecem no filme Divino Amor que sugerem essa noção de um futuro próximo no filme foram lidos dentro de uma lógica de mundo em que esses inventos estão à serviço de um projeto ideológico de sociedade. E são tecnologias simples, na verdade. Divino Amor é um filme que economiza no gesto para tentar desafiar algumas noções binárias de distopia/utopia. A protagonista do filme, Joana (Dira Paes), por exemplo, responderia que o mundo que ela habita tem utopia, ainda que ela seja confrontada com uma surpresa difícil de contornar. O que é utopia para uns pode ser lido como distopia para outros. Temos uma protagonista anti-heroína, que ao invés de lutar contra o estado, ela deseja e se engaja para trazer ainda mais religião para esse estado, e que ela não o percebe como opressor. Ela acha que o mundo pode ser ainda melhor do que já é. O corpo de Joana está entre o martírio, o êxtase religioso e o gozo erótico. E o filme naturalmente tenta articular a ideia de devoção, pertencimento social, sofrimento e prazer num filme sobre fé, corpo e desejo.
Victor Guimarães – Ao ver Divino Amor pela primeira vez, me lembrei imediatamente de uma cena de Avenida Brasília Formosa (2012), já perto do final, em que um dos personagens dança em uma igreja evangélica. Naquela cena, a câmera parece manter certa distância em relação aos corpos, certa rigidez no enquadramento que intensifica a sensação de distanciamento em relação àquela experiência. No Divino Amor, sinto que há uma ruptura com esse olhar distanciado, no sentido de uma aproximação aos personagens e um mergulho mais decidido na experiência popular. Em que medida aquela primeira experiência em Avenida Brasília Formosa influenciou o processo criativo de Divino Amor? Que continuidades e rupturas você percebe entre um filme e outro?
GM – Curioso você lembrar disso. Racionalmente, nunca imaginei que essa cena teria conexão com o Divino Amor. Mas você agora falando, me veio algo muito forte. Em Avenida Brasília Formosa, o personagem Fábio foi construído de forma partilhada com o mesmo, que também é Fábio na vida real. Tem um componente ficcional forte nesse trabalho, mas também tem algumas situações ‘reais’ ou reencenações de experiências que seriam ‘reais’ para a pessoa, criando uma sobreposição de camadas. Lembro que no contexto da filmagem, onde esse personagem no filme ganha a vida como garçom e cinegrafista de eventos sociais nas horas vagas, ele, a pessoa, em algum momento começou a insistir para eu filmar ele na igreja dele. Eu imaginei que ele queria apenas me converter e até fiz desdém deste convite. Mas ele insistiu, e isso virou parte da negociação do desejo dele em fazer o filme e a continuar pró ativo. Não via conexão nenhuma com o roteiro do filme a ideia de filmá-lo na igreja. Mas num dado momento, eu resolvi ir. No dia da filmagem dentro da igreja, ele me aconselhou sobre onde pôr a câmera, de forma a não perder o que ele tinha preparado como surpresa para mim, ou para o filme, ou para o personagem dele no filme. Ele de fato filmava eventos sociais e tinha bastante noção de enquadramento. Naquela altura, era tudo muito confuso. De repente, sou surpreendido pelo personagem vestido de abelha, em amarelo e preto, dentro de um templo, com uma banda e um pastor ao fundo, e dançando uma coreografia muito potente, bonita e arrebatadora. Eu nunca tinha visto uma dança dentro de um templo com orientação evangélica. E a adoração dele me convenceu de uma forma muito impactante. Terminou que pedi para ele repetir a dança, o pastor concordou, filmei de outro ângulo, e depois filmei ele pondo a roupa de abelha, e criei uma sequência clássica narrativa para a montagem. Esse fato me marcou profundamente sobre como entender o lugar do ‘jogo’ e da ‘negociação’ criativa no processo de um filme, e como os processos podem trazer surpresas. Não tive formação em cinema. E termina que esse empirismo vai contaminando o meu desejo de começar a tatear cada vez com mais força no campo da ficção, me descolando das premissas ‘documentais’, mas sem perder a ideia que o frescor do fazer documentário me trouxe. Em algum momento me perguntei se seria possível fazer ficção trazendo questões que me foram sendo confrontadas no campo do documentário. Quando eu comecei a escrever roteiros ficcionais, comecei a me interessar por um um certo lugar de fronteira com o extraordinário, acreditando que meu referencial documental era capaz de reler algumas experiências supostamente absurdas, serem lidas como normais, ordinárias. Esse exercício começou a trazer alguns lugares muito curiosos, e foram me encorajando a arriscar algumas premissas mais radicais. Lembro que durante a filmagem de Divino Amor, todos os dias, indo para o set, eu tinha uma tensão muito grande, porque sabia que a mesma coisa que poderia levar para o campo do sublime, poderia ser levada para o campo do grotesco ou da caricatura se eu errasse alguma chave nessa observação ou nessa escuta dos personagens, ainda que ficcionais. Esse risco me mobilizou bastante como desafio criativo, me permitindo não ter medo de chegar perto do que poderia entrar num certo ridículo, mas com o objetivo de transformar um suposto ridículo em poética, em potência, em afeto, em humanidade, em uma prática que para o personagem que está vivenciando tal tal extraordinário, para ele, é apenas mais uma dia normal em sua rotina.
Sobre procedimentos estéticos entre esses dois filmes, acho que tem algo que comecei a trabalhar em Avenida Brasília Formosa que foi tentar imaginar que um possível recuo de câmera enquanto premissa poderia jogar a favor de uma observação menos idealizada da ‘vida da periferia’, onde os elementos sedutores ou pitorescos, que geralmente convidam para o close, pudessem ser evitados. Em alguns momentos acho que isso jogou a favor de alguns momentos que caso eu estivesse com a câmera não mão, acho que seria terrível para o filme, porque facilmente esse espetáculo saltaria aos olhos. E essa postura conceitual do lugar da câmera neste filme me chamou a atenção para ser algo a continuar sendo investigado. Em Boi Neon tentei avançar com algumas outras investigações, mas aí atentei para como jogar com o lugar da “escuta”. É um filme que por uma escolha conceitual, eu dublei o filme inteiro, e todos os sons do filme são recriados em pós produção. Nenhum som é real. A ideia foi criar uma relação de afastamento de câmera e aproximação de som. Em Divino Amor eu radicalizo ainda mais essa relação entre o lugar da imagem e o lugar do som. A ideia foi tentar encontrar uma distância de observação que pudesse humanizar os personagens, onde ponto de vista de observação fosse nem perto nem longe. E através do som eu fiz uma captação em primeiríssimo plano, com cápsulas que quase se encostam nos lábios e parecem escutar até a garganta e a saliva dos personagens. Qual o limite da aproximação e o limite do afastamento? Ao cruzar uma linha de forma equivocada, eu poderia colocar tudo a perder dentro do que eu eu me propunha a fazer. Eu poderia reforçar a caricatura ou poderia encontrar o mais sublime e mais humano de um personagem extraordinariamente ordinário. Em Divino Amor, queria pintar uma burocrata entre o ordinário e o fantástico. Se o som altera o realismo da distância, estamos falando de uma nova distância, de uma operação inversa de lugar de observação entre imagem e som, como se resultasse numa sobreposição de aproximações multidirecionais. Imagina a cena do Drive Thru em Divino Amor. É uma cena que parte de um ridículo, de um exagero, ou de uma crítica deliberada a mercantilização da fé. A cena flerta com a comédia. Arriscaria dizer que é tudo isso junto e mais um pouco. Mas é nesse “mais um pouco” que podemos começar a falar de cinema e de artifício. A premissa é que o tempo da cena nos leve a outro lugar, que o som da cena nos conecte de forma diferente com o personagem e com a verdade interna da crença deles. A montagem não corta a cena nem conduz a emoção do espectador. Estamos falando de como um artifício estético escolhido é capaz de mobilizar e auxiliar outras experiências afetivas e políticas com o discurso, com as representações, com as identidades. Acho que isso leva a mais uma pergunta. Como encontrar o lado mais simples e ordinário num personagem deslocado, com excessos e contradições? De alguma maneira, a ideia de buscar personagens ‘deslocados’ me afasta dos personagens que eu diria “institucionalizados”, personagens que são formulados de maneira a ter empatia e engajamento imediato a partir de um espelhamento ideológico de valores. Esse movimento reiterado do cinema brasileiro de filiar seus valores morais ao dos seus personagens protagonistas e heróis é perigoso. O lugar da arte não é responder ao presente, mas fazer perguntas. No filme Avenida Brasília Formosa, quando o Fábio dança na igreja, depois de um jogo de negociação sobre “o que filmar”, acho que é o primeiro momento que eu me emociono real com uma performance de adoração dentro de uma igreja evangélica. E isso me marcou porque imaginava que meu ceticismo nunca me permitiria acessar esse lugar da emoção e do sublime através da fé, e numa instituição religiosa que eu já tinha por princípio grandes ressalvas. Foi uma grande revelação. A partir daquele dia depositei minha fé no cinema e na arte. Em Divino Amor, queria fazer um filme sobre um personagem que tem fé. E do ponto de vista de direção, eu queria fazer um filme onde a direção acreditasse nos seus personagens.
VG – Percebo no filme um jogo com um repertório de imagens que estiveram muito presentes no cinema brasileiro recente, ainda que em contextos muito distintos: a personagem boiando no mar, a festa noturna com música eletrônica, os muitos corpos em contato físico em um espaço de comunidade afetiva. Em Divino Amor, essas imagens que foram recorrentes nos últimos anos ressurgem em situações narrativas radicalmente outras, que deslocam os sentidos presentes nesse repertório e apontam caminhos surpreendentes. Em que medida esse jogo de deslocamentos é consciente pra você? Como você enxerga o diálogo do filme com o cinema brasileiro recente?
GM – Para mim era muito importante a necessidade de jogar com uma certa expectativa de atualização identitária em meio a um debate sobre nacionalismo. As imagens que povoam o imaginário do que entendemos como um “cinema brasileiro” eram importante de serem revisitadas pelo filme. Tem imagens neste filme que de tão cansadas e reiteradas pelo cinema brasileiro eu jamais faria não fosse por essa justificativa interna do filme, como em especial o começo do filme que mostra um casal dançando numa festa e em seguida uma mulher boiando. São imagens bastante recorrentes. O filme se vale destas mesmas imagens para apresentar uma chave trocada, e tentar suspender essa identidade, onde a rave é cristã e em seguida o gospelkini cobre todo o corpo da mulher que boia. Ao mesmo tempo, percebi uma certa ausência expressiva e curiosa enquanto produção de imagem ao perceber que em um país com um dos maiores índices de burocracia do mundo, pouco se filmou a burocracia brasileira, assim como pouco se filmou a diversidade da comunidade evangélica. E quando se filma a comunidade evangélica, tende-se muito ao caricatural. Isso me deixou bastante intrigado. Tem um elemento político e um componente de classe nessa esquiva.
VG – Há muito tempo, a imagem hegemônica do evangelismo no Brasil – inclusive no cinema independente e autoral – tem sido construída como uma caricatura. Basta pensar nos figurinos e cortes de cabelo homogêneos, na construção de personagens intelectualmente limitados ou no retrato de uma comunidade muitas vezes vista como inteiramente submissa a seus líderes. Divino Amor, muito claramente, se afasta desse repertório hegemônico.
GM – O caminho do Divino Amor foi escolher romper na gênese e implodir com esse imaginário evangélico da televisão e do cinema brasileiro. Criei uma personagem protagonista que é evangélica mas que não vem de uma classe vulnerável, não foi convertida por sua ignorância ou maniqueísmo do pastor. Pelo contrário, Joana é inteligente, de classe média, sustenta o marido, é do mundo das leis, usa roupas elegantes, é sedutora sem ser vulgar, tem ‘agenciamento’. Minha inspiração foi a Marcela Temer. Foi bem curioso perceber que a primeira dama foi bastante celebrada pela comunidade evangélica, pelas digital influencers evangélicas. A figura dela contemplava naquele momento um lugar feminino que vinha de uma demanda muito forte da comunidade evangélica. Queria tatear sobre outros regimes dessa identidade brasileira cada vez mais em suspensão.
VG – No entanto, sinto, em vários momentos do filme, uma tensão entre uma expectativa caricatural – dada pela premissa narrativa das situações ou pela construção inicial da cena – e sua dissolução. Penso, por exemplo, no modo como o drive thru da oração se apresenta inicialmente como um espaço insólito, e logo se torna um lugar central no drama da personagem. Como se constrói essa medida para você? Essa tensão entre caricatura e densidade dramática?
JG – Aproveitando a deixa, queria comentar que o cômico é em grande parte um tabu pro que poderíamos chamar de cinema autoral ou independente brasileiro, na medida em que nosso cinema de maior bilheteria está predominantemente apoiado no riso, e talvez isso tenha gerado uma reação e um estigma desse tipo de pesquisa. Neste teu filme mais recente há um trabalho que me parece distinto em relação aos pactos de comicidade. O filme é engraçado de uma maneira estranha, que diria que, pessoalmente, nunca explode. Acho que isso tem a ver com escala de plano e duração no trabalho de vocês. Lembro de, por exemplo, quando Joana diz “Meu superior não é deste mundo”. Esta fala poderia estar num programa de humor qualquer, mas o corpo da cena cria um ambiente para esta frase onde ela é bem mais do que a gag, pois nela se expressa um dado conceitual do filme, é quase uma espécie de logline. O que resulta é que eu guardo esse riso, esse tratamento estica também minha risada como espectador. O que gostaria de te perguntar é sobre como foi esse manejo da comicidade, quais esforços vocês fizeram para constituir este tom, onde as coisas são engraçadas e simultaneamente muito sérias.
GM – Acho que a comédia brasileira e sua relação com o cinema comercial é tão problemática que termina que isso tem impactos maiores no cinema mais independente, onde este teria que negar o humor como posicionamento para se afastar da ideia de cinema comercial e comédia romântica. Isso é curioso porque a priori o problema não é a comédia, mas a qualidade do humor, e a que agenda este humor mais hegemônico e caricato serve. Em algum momento me passou pela cabeça que se a comédia é capaz de criar a mais venenosa caricatura, estaria dentro do mesmo veneno a ferramenta para justamente romper com a caricatura como antídoto. E aí no filme Boi Neon eu comecei a investigar o humor, o riso, a brincadeira, ou algo que poderia estar no campo do riso interno dos personagens a partir de cenas que são engraçadas inclusive para eles. Acho que desde o Boi Neon abracei sem medo a ideia do humor para tentar pensar outras estratégias de riso como forma de desabrochar justamente a tal caricatura. Em Divino Amor, o enigma da bíblia, a falta de respostas do tal livro sagrado, a possibilidade de tudo ser livremente interpretado, as soluções narrativas que o anjo dá quando o roteiro da Bíblia emperra, é para mim fascinante. Imaginei que uma das chave para acessar a complexidade da bíblia passaria paradoxalmente pelo humor. Igual com a burocracia. A coerção e a dificuldade imposta pela burocracia é tão surreal que muitas vezes me pego rindo num cartório ou em situações inimagináveis e inconcebíveis. Tem algo de potência no riso como arma. Rir como gesto último de resistência emocional frente ao absurdo. Nesta cena que você mencionou no seu comentário, vemos a nossa protagonista agindo provavelmente pela primeira vez conforme manda as regras burocráticas. E ficamos entre os valores dela, de ser correta, e os valores da cliente, que sofre pelo absurdo coercivo do ilógico da burocracia. Queria jogar o espectador numa relação confusa de empatia, que se filia a uma e a outra personagens numa oscilação que me interessava enquanto jogo, e toda vez que nos filiamos enquanto espectadores, criar uma ideia de traição pela filiação, ou frustração, porque a todo instante elas estão trazendo contradições das mais diversas, cada uma pior que a outra. Quando a situação coerciva beira o absurdo, o espectador começa a se afastar da protagonista diante de seu exagero, mas aí a cliente dispara seu mais profundo discurso de classe, ao dizer: “então quero falar com seu superior”. Isso é algo que está no imaginário da humilhação aos funcionários, frase clássica no Brasil. A famosa ‘carteirada de classe’. Aí o espectador se afasta da cliente e se engaja solidariamente a Joana, que fora humilhada, mas aí a evangélica escrivã Joana responde: “meu superior não é deste mundo”. Então sua agenda religiosa e sua fé se sobrepõe a burocracia deixando o atendimento e a burocracia ainda mais no campo do impossível. Em meio a tudo isso, me parece que o humor é uma ferramenta potente para jogar com os engajamentos e até para frustrar as adesões aos personagens. Me interesso também pelo gradante do riso, um riso que num primeiro momento vem travestido de uma comédia quase chula, depois se transforma em outro riso, e depois já não é mais riso, e o riso foi a forma de abertura que encontrei para jogar o espectador no olho de um furacão onde o chão já não é tão fácil de tatear. Em algum momento a protagonista Joana sobe em um mini elevador industrial para empilhar uma pasta em meio a uma imensidão burocrática. A cena tem um humor visual pela ironia para com a burocracia brasileira. Mas aí surge uma narração de uma voz infantil que fala. “A burocracia era sua esperança”. A máxima é justamente uma tese contrária à ideia do riso anterior, portanto, este segundo riso vem de como uma segunda camada de um riso. Outro momento curiosamente que vem o riso é quando a personagem descobre que o marido não é o pai da criança. Resgato aí a ideia da “piada do corno”, tão popular ao imaginário brasileiro. Em seguida, acompanhamos pouco a pouco ela descobrindo que que a paternidade não é de outro possível homem que ela se relacionou. O humor é progressivo e o tempo em cena se encarrega de trazer um suspense para a busca dessa mulher. A chave do humor entra na chave da religiosa da imaculada. O tom do filme joga de forma séria com essa espera, e portanto sustenta o caráter religioso da descoberta do personagem. Em seguida, e sem corte, descobrimos que a criança não tem paternidade alguma, então um possível humor que venha desta informação já vem de outra ordem, vem de um confrontamento com a própria tradição da crença história da concepção de jesus. Me interesso muito em inverter as ideias, mudar a chave do humor, e o riso é uma ferramenta importante para isso. Qualquer forma de filiação fácil aos personagens me parece politicamente ingênua.
Bernardo Oliveira – Desde mais claramente Boi Neon, o trabalho de pesquisa sobre o corpo se estende para um interesse sobre ciência, genética, manipulações desta natureza. Há esse aparente fascínio pelas várias formas de confisco da fertilidade (uma questão política que atravessa Boi Neon e Divino Amor). E que agora retorna sob o signo de uma comunhão entre as técnicas de controle e burocratização da informação genética. Você poderia comentar o trabalho com essas questões?
GM – Boi Neon se passa numa região onde as atividades pecuárias e agrícolas agora dividem espaço com um grande pólo industrial de confecção de roupas. É sobre um corpo em meio a uma mudança acelerada do entorno. Queria discutir uma certa ufania do projeto desenvolvimentista e social-consumista da era Lula. Durante a pesquisa de escritura do roteiro entrei em contato com o mundo dos vaqueiros que trabalham nos bastidores da vaquejada e conheci em especial um que trabalhava com o gado e a moda. Muito me marcou a forma como o vaqueiro ritualiza a limpeza dos rabos do boi e em seguida sentava na máquina de costura. E assim foi o ponto de partida para criar um personagem ficcional que acumula esta dupla jornada que mistura no ofício, a força e delicadeza, a bravura e a sensibilidade, a violência e o afeto. Boi Neon, enquanto título, trazia para mim a ambiguidade que permeia o sentido político do filme. Os corpos no filme são corpos alegorizados entre a escritura do ordinário e o holofote do espetáculo da cultura de consumo. E para muito além da psicologia dos personagens, eu engajo o filme através da presença corpórea dos personagens e em todo o entorno que esta coreografia é capaz de mobilizar enquanto experiência. É um filme de personagens estranhos, de experiências intensas, mas pouco sabemos quem são essas pessoas e porque nos envolvemos com elas. O filme registra o cotidiano e as contradições mínimas de uma rotina desses trabalhadores. Em algum momento, o vaqueiro estilista Iremar conhece uma grávida de quase 9 meses e numa situação inusitada eles se atraem e o sexo casual épico é em meio a uma fábrica de roupas, o que para o vaqueiro que almeja ser estilista, seria como um evento dentro de sua meca, no lugar que habita o seu sonho. O sexo com uma mulher grávida ganha vários sentidos. E o sentido para a mulher grávida que se aproveita do vaqueiro estilista para um mero sexo causal é um, para o vaqueiro é outro, e para o espectador enquanto experiência de imagem tabu é outro. Nas entrelinhas do filme também tem um debate envolvendo a manipulação genética dos equinos. Queria pensar as múltiplas formas de manifestação da ideia de “humanimalidades” envolvendo essa era sonhos suspensos. Em algum momento surgiu um debate envolvendo violência animal na indústria da vaquejada, focando nos maus tratos aos bois, mas poucos comentam sobre o mercado de fecundação das éguas de aluguel e sobre um cavalo garanhão que é confinado e passa a vida tendo seu pênis estimulado para abastecer o mercado de inseminação. Me interesso muito em pensar sobre as relações de violência onde na superfície se tem a aparência do prazer, e o inverso. Acho que somos atravessados por duplos sentidos e assim busco isso em tudo que filmo, em todos gestos dos personagens. DA, por sua vez, sugere um mundo de certo fascínio sobre um erotismo evangelizador dentro de um estado que controla os corpos sob o pretexto de “segurança da vida”” Mas em algum momento o filme demarca claramente que alí também impera uma violência simbólica sobre os corpos, em especial o da mulher. A personagem do filme, Joana, desafia algumas noções do papel do corpo enquanto agente libertário. Ela coloca o próprio corpo à serviço de seu projeto pessoal de radicalizar a agenda conservadora de manutenção da família cristã. Seu corpo é instrumento de fé e amor a Deus. O grupo Divino Amor é uma terapia religiosa de reconciliação de casais com regras e objetivos claros. O grupo se vale de métodos extremos para preservar a família tradicional sob o slogan que afirma que “quem ama não trai, quem ama divide”. E Joana é uma mulher que faz tudo por amor. A premissa foi pensar um novo estatuto para a sexualidade, imaginando uma nova disputa política do corpo em um novo contexto, com novos regimes de prazer e violência, e assim especular sobre como os corpos lidam diferentemente com essa nova escala de significados num país que passou por mudança cultural. No corpo de Joana reside a ambivalência de um corpo que doa para receber e de um corpo que se multiplica para unir. O corpo de Joana confunde no mesmo corpo o martírio, o êxtase religioso e o gozo erótico. E o filme naturalmente tenta articular a ideia de devoção, sofrimento e prazer num filme sobre fé, corpo e desejo. O futuro próximo do filme tenta estabelecer uma narrativa para apontar uma mudança muito mais no campo da cultura do que no campo do virtuosismo diletante da tecnologia. Os poucos aparatos tecnológicos que aparecem no filme sugerem a noção de um futuro próximo dentro de uma lógica de mundo em que esses inventos estão à serviço de um projeto ideológico de sociedade. E são tecnologias na verdade bastante simples. É possível até que essas tecnologias existam hoje.
JG – Temos ouvido muito a palavra “protagonismo” no debate público sobre cinema. Entretanto, ela parece ser usado em grande parte de uma maneira simplista, automatizando um pacote que carrega empatia e identificação. Pressupõe, portanto, um sistema espelhado. Joana, a personagem condutora, dá um nó nesse laço de empatia. Ela balança a concepção moralizada da ideia de protagonismo baseado numa identificação narcísica com o espectador. Esse contexto de discussão desse conceito de protagonismo, me parece ter como premissa um acordo de visibilidade e legibilidade dos enunciados políticos nos filmes.
GM – Os personagens que me empolgam no cinema são os que me fazem me aproximar e me afastar em constante relutância. Já ouvi críticas que meus personagens são ‘frios’. Talvez frio não seja a palavra mais justa. Mas a adesão aos personagens que tento construir de fato não opera na empatia completa de valores e projeções. São personagens que em alguma medida frustram as expectativas de engajamento. Isso não é de todo modo uma crítica que eu assuma como negativa. São problemas bons para se pensar enquanto cinema, e a ser investigado e amadurecido. É como se existisse um pacto interno entre os personagens do filme e outro pacto que é feito entre os espectadores e o filme.
JG – É um filme transparente no que mostra. As motivações estão literalmente expostas para quem vê. Entretanto, tenho notado que o efeito dele com quem tenho conversado é ruidoso no sentido do indecidido, as pessoas não sabem bem como se posicionar perante a ele, sobre o jogo dele. Portanto, tem algo de não transparente no efeito, um certo nível de opacidade, que talvez tenha a ver com o pacto do filme com seus personagens versus o pacto do filme com o espectador. Talvez tenha a ver com uma certa opacidade o que se chama de “intenções”, o que me soa um enorme desafio hoje, pois num momento de ampla descrença na ficção, você faz um filme justamente sobre essa crença – crença na inteligência do espectador, na dos personagens, e outras mais. Se você quiser comentar, são ideias que ficaram comigo depois do filme.
GM – A operação criativa não é lá tão racional. Mas algo que me motivou inicialmente era fazer um filme de certa forma bíblico, imbuído numa certa utopia religiosa. Ora, pensar utopia a partir da religião para problematizar a própria religião me parece um posicionamento político bastante claro. Queria fazer um filme mais crente na fé do que o próprio crente é capaz de crer. DA me parece bastante explícito no sentido de que é sobre uma mulher que tem fé, essa fé não se abala quando é questionada, e ela é surpreendida com o presente máximo diante de seu amor incondicional a Deus, e seu ventre é o escolhido para trazer a boa nova, a esperança. Temos uma sobreposição de pacto. O espectador percebe o mundo com uma distopia mas a personagem protagonista está em plena utopia. Temos aí dois pactos que se sobrepõem, um pacto interno, dos personagens e o do mundo do filme, e outro externo, da relação de quem assiste e “julga” o tal mundo como uma ‘distopia’. O produto final desta utopia é o tal messias, rebelde, um corpo que cresceu descontrolado, à margem do estado controlador de outrora, Estado este de que Joana era parte de sustentação ideológica. Este novo corpo agora não tem registro, não tem nome. Ele encerra sua narração: “Quem nasce sem nome, cresce sem medo”. A utopia vence a distopia. O pacto interno dos personagens vence o pacto externo. Acredito que o espectador ser posto em um jogo onde o mesmo terá o desafio de ter uma tomada de posição sobre o filme me parece algo muito honesto como gesto na arte. Para confundir ainda mais, vemos uma doutrina religiosa ultra conservadora que se apropriou e domesticou inclusive algumas estratégias de contra cultura e resistência: rave, música eletrônica, swing, a ideia de liberdade sexual, a cultura oitentista neon, uma mulher negra idosa de black power como líder da terapia religiosa, uma mulher que tem uma certa agenda sobre seu corpo e é ativa no recrutamento dos casais para a terapia… Ou seja, é uma instituição religiosa extremamente competente. Em se tratando de uma disputa de imaginário, hoje me parece fundamental tratar o inimigo com inteligência. E o inimigo neste filme é a instituição religiosa que avança no estado brasileiro. E isso é uma questão que venho amadurecendo no meu trabalho, entre erros e acertos. Para mim é ofício e labuta mesmo, com muita prática, exercício e revisão constante. O ‘lugar do inimigo’ como minha tomada de posição me parece clara no filme. Mas esta posição não me coloca no lugar de sobrepor esta minha tese num filme que não é, antes de tudo, sobre instituição, mas sim sobre uma mulher de fé, que vai inclusive desafiar esta instituição. Esse jogo de procedimentos que o filme acumula em relação aos pactos me parece o lugar mais honesto e generoso enquanto gesto criador. Eu até entendo o ponto de vista de quem acha que o filme é ‘indeciso em sua tomada de posição’. A questão é que para mim a potência do filme está justamente no que seria essa ‘indecisão’, ou melhor, nesta minha decisão deliberada de criar um filme com algumas brechas, de adjetivar essa brecha não como ‘indecisão’ mas sim como dúvida, ponderação, na capacidade de o filme criar e gerar uma pergunta compartilhada e honesta, ao invés de uma resposta dada. Para mim não seria ‘indecisão’, mas sim imprecisão. E a ‘imprecisão’ é o que funda o gesto do filme em sua maior radicalidade.
JG – Ouço com muita frequência essa frase, dando aulas, e em pós-sessões: “Não está claro se o filme está criticando o que está mostrando”. Há um pacto de clareza vigente, de indesejar o ruído, como se não houvesse ambiente para tal. Divino Amor não serve a esse desejo, porque não “critica” os evangélicos, nem “idealiza o popular”. O filme parece querer testar os dados culturais, radicalizando a premissa religiosa, querer testar ser “mais crente que o crente”. No filme, o sistema “quebra” pois não está preparado para a dúvida. O que pensa disso?
GM – Uma arte radical e generosamente política para mim é a que é capaz de mobilizar a partir da reação crítica e não pela filiação dogmática ao projeto ideológico de seu autor. É muito óbvio que meu olhar está nas entrelinhas do filme. Imaginar que existe uma ‘indecisão’ sobre a posição é ingênuo politicamente e problemático porque finge imaginar que isso em si é possível, quando sabemos que qualquer gesto, qualquer movimento de câmera, qualquer corte, qualquer enquadramento, por mínimo que seja, já é uma tomada de posição. Qual seria o oposto de opacidade? Transparência? Nem a opacidade nem a transparência me mobiliza como cinema, como arte, como vida. O filme é transparente enquanto gesto de acreditar na própria nebulosidade como mobilização crítica. Não é papel da arte delegar o espelhamento dos valores e das projeções dos valores morais que nossa sociedade demanda. Seria tenebroso para a arte atuar à serviço de uma agenda pragmática. Quantos personagens impopulares maravilhosos surgiram na história do cinema! Imagina um filme feito Fitzcarraldo sendo feito hoje no Brasil? A arte tem um desafio crucial hoje. Arte-política não é a que vai se partidarizar em respostas concretas, mas a que vai adensar as mais profundas dúvidas do nosso tempo e dos tempos por vir.
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