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Marvel e o Destino Manifesto

Não é apenas que Vingadores: Ultimato ocupou uma obtusa porcentagem das salas exibidoras do país. Não é questão meramente socioeconômica, embora também o seja: o histórico semicolonial do setor de exibição dificulta o acesso da produção nacional, e o enfraquecimento do sistema legislativo das cotas, historicamente, contribui à retração do próprio empresariado cinematográfico (que produz, mas não exibe). É naíve pensar que isto seja uma reação natural do mercado, ou a predileção do público por esta ou aquela forma, estilo ou obra cinematográfica, pois é sabido que a gênese de Hollywood é também fruto de uma coerção diplomática, da penetração em mercados internacionais e de fazer minguar iniciativas nacionais; a expressão máxima do cinema como ferramenta bélica invisível de propaganda, fazendo, como Eduardo Geada escreveu, do “discurso cinematográfico do dólar a vantagem implícita da propaganda ideológica”. Mas junto da constatação do nosso sempiterno subdesenvolvimento estrutural frente ao imperialismo, reside, nesta invasão estrangeira de super-heróis maquinados, uma de outra ordem, igualmente urgente, e que foi ignorada diante da mais epidérmica. Povoar estes dominados espaços de exibição com o coroamento da saga da Marvel serve a uma função econômica, mas também a uma difusão implícita de valores e comportamentos, procurando reestruturar os desejos inconscientes de seu possível público, saturando os olhos do espectador com aquilo que a vida é ou deveria ser. Qual a natureza destas imagens, e o que elas dizem? Que tipo de paisagens mentais queremos fazer habitar o imaginário do presente?

Esta inflação do gênero de super-herói nos últimos quinze ou vinte anos, tendo a saga (ou ciclo) da Marvel Cinematic Universe (MCU) como fenômeno pivotal, obedece a uma dinâmica muito típica, uma quase vocação do cinema de gênero norte-americano ao longo da história: sua frequente necessidade de atualizar e comentar o mito fundador do imperialismo – seu destino manifesto – de acordo com os acontecimentos e circunstâncias sociopolíticas de cada época que o parecem pôr em xeque, justificando porque o americano é o povo escolhido e porque o seu modo de vida é superior ou o único possível em um mundo caótico (foi assim da Crise de 1929 ao New Deal, da Segunda Guerra Mundial à Guerra Fria, e assim por diante). A natureza polifônica e dialógica dos gêneros cinematográficos permite esse tipo de manobra recorrente, embora, é sempre importante enfatizar, a singularidade dos filmes nem sempre corresponde com tanto afinco a estas quadraturas mais gerais (e foi sempre pondo o esquema em tensão, movendo seus códigos, que os grandes mestres do cinema americano se fizeram). Não é nenhuma novidade que a fábrica de sonhos hollywoodiana tornou-se “cada vez mais indispensável à perpetuação da crença ilusória na grande sociedade”. O ponto de inflexão na indústria atual, principalmente nos filmes de ação, guerra, espionagem e super-heróis, é que ela comenta ou responde aos dois últimos grandes eventos que abalaram ou reconfiguraram o lugar dos EUA no mundo: o ataque de 11 de Setembro que pôs em pauta o Terrorismo – com as consequentes e interessadas invasões no Oriente Médio e adjacências – e a bolha imobiliária de 2008, que representou uma nova crise do neoliberalismo e de suas grandes utopias vazias.

Na recente publicação de National Security Cinema, após vasculharem os muitos arquivos da inteligência militar norte-americana recente, os autores Tom Secker e Matthew Alford atribuem à intervenção do Pentágono nos roteiros e nas filmagens da primeira fase da Marvel Cinematic Universe a representação que os filmes fazem do exército norte-americano. Que haja a coerção direta, não é difícil de se imaginar – e tampouco que ela conviva com forças contrárias que resistam a ela, do antiestatismo sistêmico que permeia a ideologia neoliberal dos próprios estúdios hollywoodianos às crenças individuais de realizadores e suas equipes (que podem perseguir ideias pacifistas e anti-imperialistas, como é o caso de Jon Favreau – diretor dos Homens de Ferro, por exemplo). Também, que aquela que é a franquia mais lucrativa das últimas décadas seja pivô nos esforços conjunturais de reatualizar esteticamente o destino manifesto, isto também não é difícil de se imaginar – com grandes poderes, vem grandes responsabilidades. Mas um filme é sempre um pouco mais que sua vocação ou razão-de-ser; é produto do gesto artístico diante das circunstâncias materiais que surgem. Como, afinal, que estas discussões estão, de um modo geral, presentes no tecido das obras da MCU?

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Uma pista é dada quando Tony Stark (Robert Downey Jr.) recruta o adolescente Peter Parker (Tom Holland) em Capitão América: Guerra Civil. Há um momento de egolatria falocêntrica quando caçoa do velho computador do rapaz, das roupas de brechó e móveis do exército da salvação. Os dois super-heróis sempre representaram dois lados opostos da moeda – o pobretão e o milionário -, mas aqui a dinâmica vai mais longe, porque o “pijama” que o Homem-Aranha usa como uniforme será mais à frente remodelado pelo empresário, tornando-se uma arma letal. O tecido se torna armadura multifuncional. A cena é ilustrativa. Esta passagem do “velho” para o “novo” é marcada por um duplo movimento de transição. Primeiro, pela afirmação de uma necessária atualização que é primordialmente de natureza técnica, resultado de uma evolução dos processos tecnológicos, fazendo máquinas cada vez mais perfeitas, adentrando novos processos de computação – o que por sua vez tem correlativos estéticos muito diretos, pois a encenação da ação do super-herói fantasiado vem sendo, nos últimos anos, justaposta por aquela de sua mutação em CGI. Não é apenas trocar de roupa, mas vestir uma máquina: tornar-se um corpo construído virtualmente. Não foi à toa que a passagem dada pelos primeiros filmes da MCU foi também a de um regime de uso do CGI como complemento do gesto humano para o seu uso como geografia absoluta, sem referências indiciais com a realidade (a abolição, em última instância, do bazianismo pela via da revolução digital) – um dado marcante nas imagens ostensivamente artificiais da franquia, não importa o quão perfeita as formas deste digital pareçam.

Este suposto make over da roupagem do super-herói parece um projeto que marca esteticamente em definitivo a saga da MCU e a reinvenção da Marvel (e como não pensar no hiperrealismo exibicionista das recentes refilmagens de clássicos da Disney? Nos leões tão materiais quanto os de seu correlato fotográfico?), mas há um segundo movimento ainda mais aberrante: nesta série de filmes, o superpoder passa a ser quase que rigorosamente a própria máquina. O lança-teia virou um gadget. A aderência às superfícies, um composto químico. A rigor, das origens de seus poderes, a Marvel não nos dá muito mais. Não são poucos os heróis que tem sua força sobre-humana, quando não exclusivamente reduzidas a uma roupa especial que é uma grande invenção, ao menos radicalmente ampliada por estas. Ou um artefato alienígena, pois o que é de outro mundo também pode ser quantificado em prótons ou gamas se estudados pelos computadores certos, na mais serena afirmação de um cientificismo que só pode nos soar, ideologicamente, como inteiramente anacrônico. É o traje que condensa os átomos de Homem-Formiga, ou que garante as habilidades do Pantera Negra, mas também a insígnia ou capa de Doutor Estranho e outros diversos objetos que rondam os filmes como tecnologias bélicas aperfeiçoadas. Mesmo aquele que é um deus (Thor) tem na sofisticação do seu martelo o seu trunfo. Não são poucas as piadas que tem como diapasão a ausência da arma ou do traje sendo sinônimo da ausência de força, e não raro, o grande herói ou vilão é nada mais que um grande cientista; ou um fracote que se torna cobaia de uma tecnologia de guerra em Capitão América: o Primeiro Vingador. É ilustrativa a promoção do Homem-de-Ferro, um produtor de mísseis e epítome do cientificismo sem caráter, a figura central da saga.

Esta equalização entre corpo digital e poderio bélico como instâncias fundadoras do universo da Marvel nos conduz a uma associação direta entre criação imagética, tecnologia de guerra e heroísmo. Mas o “amodernamento” dos heróis tem ainda outra consequência: as imagens não precisam se justificar, porque o seu berço é da ordem do passado ou da tradição. A herança, em seu conteúdo, é dada. O quem e o porquê do heroísmo não precisa ser reposto; o que precisa é a sua imagem, numa versão mais contemporânea de si mesmo. Como bem notado por Thiago Brito sobre O Capitão América, “a vocação para a guerra não passa de um macguffin”. O esforço de justificativa psicológica dos heróis são, muitas vezes, pueris ou paradoxais, com céleres saltos de motivações pessoais a um senso genérico do que é fazer o Bem (Homem-Formiga, Dr. Estranho, Homem de Ferro, Os Guardiões das Galáxias…); muitas vezes, mergulhamos na narrativa sem sequer observar a formação do herói (Hulk, Homem-Aranha), e, em alguns casos, os conflitos são legados pela tradição sem que precisemos refletir sobre eles (Thor, Pantera Negra), tomando-os como mera missão automática (Capitão América). O fato é que justificar o berço do imperialismo norte-americano é, hoje em dia, tarefa mais cabeluda que simplesmente trazer às telas uma nova forma daqueles que já o fizeram no passado, como que por indução direta. A vocação da imagem no MCU tem, em princípio, mera função persuasiva – repor o Destino Manifesto que o heroísmo norte-americano sempre tomou como dado, herdando os sentidos da tradição – uma espécie de redesígnio da função persuasiva dos afrescos da escola dos Caracci no berço do Barroco, que serviram à Contrarreforma do século XVII num momento de desprestígio da Igreja Católica. Se não há sentido a ser engendrado – mas reevocado -, o que resta é o pleno saborear das ações e do espetáculo visual dos CGIs, ou dos momentos cômicos; se aqui a proposição não é elevada ao paroxismo, como na franquia dos Transformers, localiza-se no polo diametralmente oposto ao dos Missões Impossíveis, que ainda procuram enxergar a fagulha de materialidade do gesto humano em um mundo evanescente (por sinal, duas franquias que confrontam os dilemas de seu tempo de modo mais bem sucedido que esta).

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Mas a definição cabal do heroísmo é, no fim das contas, única e exclusivamente dada por sua reação à vilania ou ao Mal. Antes deste aparecer nas tramas, o herói é um playboy exibicionista, um ermitão ou mesmo um bandido – o isolamento típico do cada um por si neoliberal, vivendo de acordo com desejos imediatos, sem projetos que os destaquem. A literalidade do título de Os Vingadores é a síntese de um grupo que se organiza por reação (um grupo reativo) – já escrevi anteriormente sobre o movimento de sístole-diástole, emprestado por Joss Whedon de Robert Aldrich, que ilustra a motivação do conjunto no capitalismo tardio – num esforço de desenhar as potencialidades de um suposto ‘bem vingativo’ na ideologia do self-made man. Quanto ao vilão, propriamente, o cinema de gênero norte-americano sempre soube distinguir dois tipos de brutalidades, a maior e a menor, sendo a menor autorizada. A violência americana é esclarecida porque enfrenta forças que resistem à ordem e à imposição da democracia, apresentando-se como meros vetores da destruição. Os signos históricos foram muitos: índios, bandidos, gangsteres, nazistas (estes frequentemente revisitados pela série de filmes da Marvel na forma da entidade Hidra), soviéticos, etc. Mais recentemente, são terroristas inescrupulosos ávidos pela extinção aleatória em massa, através de bombas nucleares ou forças ainda mais devastadoras; ou monstros alienígenas em quem é melhor atirar antes de perguntar. Se tal prescrição é seguida pela MCU, numa frequente associação entre Mal e Terrorismo, alguns dos melhores momentos da saga são aqueles onde a naturalidade da simbologia é interrompida, e, por exemplo, o Bin Laden de Homem de Ferro 3 se revela um mero ator árabe, trabalhando para um outro milionário, ou o vilão de Capitão América: Guerra Civil que demonstra não querer mais que desunir a associação que, acidentalmente, matou sua família.

Sobre este ponto, o que chama atenção na franquia é menos uma inovação diante da quadratura geral e mais a insistência em algumas recorrências que perpassam o conjunto do ciclo – pois o terrorismo como baluarte da vilania já é um dado típico dos gêneros de ação, assim como o monstro abjeto em quem é melhor atirar antes que conversar, nos thrillers e sci-fis; ambas as coisas produto de um mesmo esforço por justificar a ação imperialista sem escrúpulos, que pode causar danos laterais sem culpas ou responsabilizações. O ‘custe o que custar’ porque o Outro vai, em breve, devorar suas entranhas. O que acontece aqui é um esforço extra em dar sentido à corrida armamentista seletiva. Caveira Vermelha (Hugo Weaving) que injeta o mesmo soro que o Capitão América; o traje de Stane (Jeff Bridges) criado por engenharia reversa para matar o Homem de Ferro; o Abominável (Tim Roth) que injeta o sangue cientificamente alterado do Hulk; o Jaqueta Amarela (Corey Stoll) que possui uniforme de redução semelhante ao do Homem-Formiga; são todos arqui-inimigos que replicam a arma do herói a ipsis literis, espelhos destes. Que a narrativa bifocal clássica frequentemente criou esta espécie de espelhamento, é inegável. Mas é absoluta a convicção que as tramas da Marvel procuram dar ao espectador de que estes adversários não podem ou não devem possuir a exata mesma força, porque não são responsáveis e virtuosos como os originais. Quando não diretamente irmãos ou irmãs que disputam o mesmo trono (Thor, Pantera Negra, Guardiões da Galáxia). É como se, não apenas a força passasse a ser um dado quantificável cientificamente, mas estivesse os EUA a afirmar que qualquer Outro que possuir poderio igual ao seu é uma séria ameaça à humanidade, pois não é virtuoso e democrático. Estamos diante de uma radicalização da doutrina tradicional – o bárbaro não pode ter território, mas também nem armas para se defender ele pode ter. Nada mais literal que, ao fim da saga, Stark usar a manopla para assassinar um único homem que a havia utilizado para eliminar metade da humanidade.

Mas todo processo de Restauração necessita aglutinar e amansar suas possíveis críticas. Não se trata de explicar o embrião da crença na superioridade moral norte-americana (pois este é justamente o que já ‘estaria dado’), tanto quanto argumentar contra as ressalvas. O episódio do Tratado de Sokovia em Capitão América: Guerra Civil é elementar, mas, ao longo da série, há vários momentos onde o efeito colateral das ações bélicas dos Vingadores volta-se contra os próprios. Quando não vetores de uma crença absoluta e irracional na extinção, os vilões da MCU nascem do ensejo de vingança contra os equívocos que os próprios heróis haveriam cometido em suas guerras. Está no Vanko (Mickey O’Rourke) de Homem de Ferro 2, nos elfos negros de Thor: Mundo Sombrio, nos gêmeos de Vingadores: Era de Ultron, no jovem vilão de Capitão America: Guerra Civil, ou na vítima de experimentos de Homem-Formiga e A Vespa. Estes são como que “vingadores dos vingadores”. É preciso coadunar com as críticas, primeiramente. Fazer o mea culpa, para depois respondê-las. E assim será: os efeitos colaterais da ação bélica do coletivo, ou mesmo dos heróis individuais, mostram-se sempre bem menor que o Mal que poderia se alastrar caso nada fosse feito (como a liberação geral das armas de tecnologia avançada de Wakanda em Pantera Negra, aliás). É o cinismo de um correlativo entre a defesa da autonomia dos Vingadores durante o capítulo do Tratado de Sokovia e o imperativo máximo do Destino Manifesto – se não fizermos nada contra o terrorismo, será pior porque eles são bem pior que nós. A máxima da brutalidade maior e da menor se reafirma. O bastião da pretensa democracia norte-americana é erguido.

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É claro, há uma certa sutileza e invisibilidade na forma como isto se apresenta nas telas e, não raro, os filmes da franquia fazem estas construções de discurso operando pela justaposição de pequenas contradições, de modo que as assertivas mais categóricas fiquem obnubiladas. A equação entre empreendimento individual e Estado, por exemplo, é uma que nunca é bem resolvida: sob a égide da SHIELD, ora os órgãos governamentais são minimamente confiáveis e parceiros dos heróis, ora são passíveis de corrupção e de controle por entidades maléficas, dando rosto à típica desconfiança com a máquina estatal de um neoliberalismo mais extremista, que ronda parte da produção cinematográfica norte-americana atual. O que faz de Capitão América 2: O Soldado Invernal um dos melhores da MCU é a capacidade de transformar o sentimento de desconfiança em experiência de deslocamento – em um mundo repleto de mentiras, sem ter pontos de apoio onde depositar fé, a natureza do inimigo se torna mais invisível, a perseguição e a fuga se equalizam; e dando um coup de grace em qualquer possível nacionalismo enraizado, a motivação final acaba sendo o sentimento individual de amizade (mesmo que não necessariamente recíproca) – diapasão repetido no filme seguinte do mesmo herói, o terceiro de sua série. O tom ufanista inexiste. Já faz tempo que a melhor forma de expressar o ideal norte-americano não passa nem pela stasis da reprodução imagética do american way of life e tampouco pela pura e simples exaltação do exército ou da bandeira. Estas não são mais coisas críveis e estão em desprestígio com o público (todas as grandes franquias de ação e de heróis do momento parecem bradá-lo no mais alto volume). É preciso confessar, expiar os pecados, para se refazer a mentira em outros termos. Não se defende a máquina governamental norte-americana, mas o empreendorismo individual e tecnicista, e sua associação posterior a ela. De O Nevoeiro (Frank Darabont, 2007) à primeira temporada de Stranger Things, por mais que sob a ótica da desconfiança, ela ainda parece o mal menor diante da real violência do Outro desconhecido que se apresenta.

O episódio de Vingadores: Era de Ultron é particularmente dos mais ilustrativos, e onde a saga toma guinada bem singular. Vislumbra-se uma ameaça de invasão alienígena possível no futuro, e isto justifica todo um esforço de refinação científica e produção em massa de armamentos – não há definição mais elucidativa possível para a ideia de Terror. A obsessão de Tony Stark por aumentar seu poderio bélico irá conduzir ao surgimento de novos inimigos ainda mais fortes, criados à partir da tecnologia que ele mesmo explorou, e agora precisa derrubar. O episódio faz defesa declarada do mergulho em novas invenções nucleares como elixir para um apocalipse futuro, na mesma medida em que reúne à saga o flerte com o gênero da ficção científica dos dois episódios anteriores (Guardiões da Galáxia I e II) e aponta para os multiversos que irão tomar conta dela mais adiante. No entanto, é preciso aguardar até o penúltimo e último episódio da série (Vingadores: Guerra Infinita e Vingadores: Ultimato) para que se obtenha a conclusão moral para tal aceno de Stark: ele tinha razão. A perversidade com que confronta Steve Rogers (Chris Evans) após Thanos dizimar metade da humanidade com um “eu avisei, mas nós somos os avengers e não os prevengers” não é mais que um aval para a corrida armamentista impulsionada pelo medo do Outro e a tese do mal menor. Se a razão justifica, o gesto sepulcral do Homem de Ferro no fim de Vingadores – Ultimato é o sacrifício bíblico simbólico, aquele que expia as culpas, refunda o mundo (e como não reevocar o mesmo ato final em Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, filme que desenha o emergir do mal menor, das sombras obscuras contra o terrorismo à luz da razão, como novo ícone representativo a ser adorado, o líder representativo reposto ou ressurgido, numa espécie de antevisão ou pedido do trumpismo que ronda o globo terrestre?)

É fato que “a Marvel Cinematic Universe (MCU) rapidamente se tornou a franquia cinematográfica mais comercialmente bem sucedida de todos os tempos, mas poucos tem noção da importância que o Pentágono tem em fazer isto acontecer”, como escreveram Matthew Alford e Tom Secker. Tomar este conjunto como fruto de um puro esforço de divertimento (e há quem diga, esforço alienante, que atrapalha o cinema nacional), ou, por outro lado, tomar o seu sucesso como produto de qualidade (na mais plena afirmação da meritocracia que desautoriza qualquer percepção sobre o processo como a qualité é entendida) são duas formas de invisibilizar um fenômeno que está, ululante, sob os nossos olhos, pedindo para que seja compreendido. É preciso ter o cuidado de evitar o tom adorniano subjacente. Filmes dialogam com estruturas. O cinema de gênero opera em relação com o que mais foi feito no passado, por repetição e diferenciação típicas ao processo industrial. E o desenho de convenções é mais um esforço de extrair uma ideologia oculta em voga, que mergulhar na especificidade de cada obra. Os melhores momentos destes filmes acontecem justamente quando estas são abaladas por ilação – por exemplo, nas muitas cenas quando Tony Stark se mostra, com efeito, um paranoico doentio.

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Mas seria possível passar pano para o cabal desejo conservador que evoca uma conclusão paradigmática como a de Vingadores: Ultimato? Um dos mais premonitórios filmes das últimas décadas a meter a mão no vespeiro da governabilidade norte-americana foi a adaptação B de Stephen King, o pouquíssimo comentado O Nevoeiro (Frank Darabont, 2007) – por um lado, ele separa o medo e o fascismo teocrático que lhe originou em duas coisas diferentes (num pedido para que o terrorismo não venha a gerar a ascensão da extrema direita, que terminou por acontecer na década seguinte), e por outro, reconhece que o problema inventado pelo exército norte-americano não pode ser resolvido, na base da porrada, pelo próprio exército. Finda a névoa, restam as memórias tristes, os arrependimentos, o medo e a incerteza que uma sociedade baseada numa fábrica de ilusões, mas, no fundo, armada até os dentes, não tem e nunca teve como esconder.

O que o último dos Vingadores quer fazer o espectador acreditar é no diametralmente oposto: pode, sim, o exército americano enfiar um martelo no peito do terrorista, e se não for o suficiente para acabar com a tristeza, ‘reescrever o passado’ para que as perdas voltem a existir – a fomigeração absoluta da tecnocracia . Nada mais sintomático que restauração, no fim das contas, signifique ‘viajar no tempo’ – diapasão do longa-metragem. A MCU reserva ao closure da saga o seu coup de grace diferencial: o apocalipse é uma bomba atômica que mata meio mundo com o estalo de dedos de um terrorista inescrupuloso. O que resta é que Jesus (vestindo uma armadura de ferro) retroceda ao passado, após algumas pesquisas cientificas, e redima a humanidade lançando a bomba contra ele antes. Não é apenas a máxima do mal menor. É, num passo adiante, a crença de que até mesmo os erros criados pelos americanos podem ser resolvidos por eles próprios sem que precisem mudar suas atitudes. Do catolicismo da Idade Média ao cinema da era Trump, a violência contra o paganismo travestida de redenção segue à solta. A saga da Marvel Cinematic Universe o retifica, radiante nas telas do mundo inteiro, operando nas sombras como uma espécie de ‘cultura do capital’ camuflada de apolítica, justificando a violência do imperialismo e tudo mais que não pode, se não através do cinema, ser despoticamente esclarecido.


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