A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty), de Kathryn Bigelow (EUA, 2012)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Victor Guimarães

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A densidade do vespeiro
por Victor Guimarães

Escrever sobre Zero Dark Thirty é, de saída, embrenhar-se em um campo altamente polêmico, que ultrapassa – feliz ou infelizmente – os domínios do cinema. No debate público estadunidense, já se disse que nenhum filme recente em torno de um evento histórico foi objeto de tamanha disputa – com direito a investigação em curso no Senado e acusações ferrenhas de ambos os lados do espectro ideológico, tendo sempre como fundamento a acuidade factual do relato (ou sua falta). Na crítica – decerto, menos preocupada com a pretensa veracidade das informações do que com a verdade do cinema –, a valorização imediata da empreitada de Bigelow convive com as recusas categóricas a uma obra tida como mera peça de propaganda do governo. Diante da querela inevitável, não resta outra saída senão percorrer os meandros dessa escritura – em si, insidiosa, traiçoeira, repleta de contradições – e tentar construir um olhar bem próximo dessas imagens. Não se trata de buscar aquela que é, quase sempre, a posição mais confortável de todas (a parte de cima do muro), mas de evitar tanto a pressa das condenações peremptórias quanto a tranquilidade das defesas absolutas, e procurar justamente as nuances que povoam a densidade de um filme que pode ser tudo, menos óbvio.

Ainda nos segundos iniciais, uma cartela nos assegura que o que estamos prestes a assistir é baseado em “first hand accounts of actual events”. Essa velha mania do cinema hollywoodiano – que reaparece em uma época marcada por um obsessivo “apelo realista” (como escreveu Ilana Feldman) – revela, ao mesmo tempo, uma vontade expressa de autolegitimação prévia junto ao espectador (numa escolha que não deixa de almejar certa neutralização da mediação cinematográfica) e um movimento corajoso de afirmação do filme como intervenção direta na história. Ao decidir encenar um acontecimento tão controverso como a caça e o assassinato de Osama Bin Laden pelo governo norte-americano, Bigelow sabe que está penetrando em um ninho de vespas, e não foge da tarefa autoimposta.

Desde os primeiros minutos, as cartas estão na mesa. O filme encenará diversos episódios da perseguição a Bin Laden, ancorados no percurso de uma agente direta da intervenção militar estadunidense, que será responsável por encontrá-lo. Maya (Jessica Chastain) é uma jovem funcionária da CIA que dedicou toda a sua carreira à caça ao sheik, e o filme encontra nessa obsessão profissional um terreno propício para a ficção. No entanto, embora essa escolha já demonstre uma predileção clara por retratar apenas um dos lados da história (que o filme nunca abandonará), as decisões formais de Bigelow fazem com que não seja possível atrelar tão rapidamente o foco narrativo ao discurso ideológico, como é tão comum em Hollywood. Entre a legitimação pura e simples da resposta ideológico-militar estadunidense e sua problematização crítica no espaço do filme, há todo um conjunto de bifurcações, de idas e vindas, de variações que não se pode ignorar. É nesses curtos-circuitos que Zero Dark Thirty, ainda que bastante irregular, torna-se um filme muito mais interessante do que pareceria à primeira vista.

Uma data (11 de setembro de 2001) e uma tela negra, em que se justapõem um conjunto de sons que já se tornaram incomodamente familiares, pela excessiva repetição: a mistura de fragmentos difusos de telefonemas das vítimas dos atentados, à beira da morte, clama por empatia imediata. No entanto, após um corte (dois anos se passaram), estamos em um lugar não identificado, no qual um galpão faz as vezes de câmara de tortura. O tom é bem outro: olhando nos olhos de um prisioneiro árabe já debilitado pelo espancamento contínuo, o agente da CIA não tem pudores em afirmar: “Você é minha propriedade”. É a primeira frase que ouvimos da boca de um ator no filme. Os métodos do interrogatório de Ammar incluem surras, simulações de afogamento e humilhações constantes, e o destino do detento já foi traçado: ele nunca sairá de lá.

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Entre um gesto e outro, não há coerência, mas a manutenção de um intervalo. Se é inegável que as vozes agonizantes do 11 de setembro lançam sobre todo o filme um perigoso manto de justificação, a forma das sessões de tortura provoca uma rachadura na apologia: sua mise-en-scène não é a do espetáculo autojustificado, mas guarda uma contundente assepsia, que desautoriza qualquer voyeurismo consensual. Quando Ammar é obrigado a engatinhar, seminu, conduzido por uma coleira de cachorro, qualquer sombra de identificação já foi sufocada há tempos. Longe de embarcar na contemplação de uma cruzada em que os gestos dos torturadores pareceriam naturais, o espectador é instado a suportar o horror provocado pela cotidianidade das sessões, até que seja possível perceber a natureza das forças em jogo: a dignidade da resistência no olhar e nas falas dos detentos contrasta tanto com o gozo mal disfarçado de Dan quanto com a fragilidade confortável de Maya. A diferença nos estilos de atuação, aliás, é nítida: enquanto cada olhar duro e grave dos prisioneiros (em performances fortíssimas) materializa a convicção do comprometimento absoluto com uma causa (por mais terrível que esta seja), os gestos dos agentes da CIA são vacilantes, dúbios, e – ainda que transpareçam algum prazer mórbido – expressam continuamente o esforço de ajustar-se ao inaceitável.

De Rio Grande a Independence Day, o patriotismo hollyoodiano sempre precisou se apoiar nos acontecimentos da biografia de seus heróis, para extrair daí – e não de uma vinculação abstrata à imagem da nação – os motivos da identificação quase obrigatória do espectador com a trajetória dos protagonistas. Fossem os inimigos índios, soviéticos ou alienígenas, antes da devoção à América (ou pelo menos em pé de igualdade com ela) sempre estavam o irmão assassinado, a esposa sequestrada, o filho em apuros. No entanto, ao contrário de uma tradição que vai dos westerns dos anos 1930 aos filmes de máfia estrelados por Schwarzenegger ou Van Damme, a heroína de Zero Dark Thirty não possui nenhuma motivação pessoal para defender tão arduamente os interesses governamentais. Maya não tem amigos, nem conhecemos seus familiares; seu corpo é um território quase sem vida, assexuado, desprovido de afetos; suas ações prescindem de ancoragem psicológica ou emocional, e parecem movidas por uma mecânica inexorável. Nesse sentido, a atuação monotônica de Jessica Chastain é menos um defeito do que uma consequência direta do arco dramático: protagonista sem biografia e quase sem afetividade, Maya se torna, muitas vezes, uma espécie de autômato, uma sorte de parafuso de uma máquina de morte que já se movimenta sozinha; semelhante aos drones que executam as missões do exército, ela é um corpo não tripulado.

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Nesse sentido, Zero Dark Thirty continua o gesto mais contundente de The Hurt Locker, que consistia em figurar o caráter assustadoramente maquínico das intervenções militares estadunidenses; em encontrar nas ações do exército não apenas um terreno propício à narrativa épica, mas uma mecânica pura, sem motivação alguma, como um vírus que penetra os corpos e a psicologia dos personagens até torná-los uma peça a mais na engrenagem. No cinema de Bigelow, a guerra contemporânea não é o velho habitat dos heróis e dos inimigos, mas um descampado onde as diferenças entre as ações da Al Qaeda e o terrorismo de Estado norte-americano evanescem e o que resta é apenas uma imensa corporação lutando contra nada mais que a própria ruína. Ao notarmos, num relance, o gesto da manifestante paquistanesa que sustenta um cartaz com os dizeres “Stop American Terrorism” ou ao testemunharmos o descontrole dos agentes da CIA frente às possíveis reações da opinião pública, atestamos o vácuo de uma investida injustificável. Mas a encenação é ainda mais incisiva: o deserto (visto de cima, numa escala que apaga as singularidades de cada lugar e faz com que o Afeganistão e o estado de Nevada adquiram uma semelhança brutal), os mapas (que condensam uma gigantesca e amorfa massa de dados) e a noite escura (onde todos os soldados são pardos) são figuras que compõem uma mesma imagerie do vazio.

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E se a sequência da morte de Bin Laden nos impressiona tanto, é justamente por atingir os estertores dessa imagem. A alternância entre a câmera subjetiva dos soldados (com a textura esverdeada dos equipamentos de visão noturna) e a escuridão densa da noite; o silêncio preenchido apenas pelos ruídos abafados dos tiros e das explosões; os múltiplos assassinatos de mulheres e homens cujos corpos tombam como em um videogame; a precisão cirúrgica de todas as ações (que não conhecem um segundo de hesitação): não há heroísmo possível em uma ação terrorista praticada por uma imensa máquina de guerra, e o que essa mise en scène acentua é justamente o ápice dessa distopia.

Desse modo, talvez o principal problema do filme resida em sua relutância em fazer desse gesto formal implacável uma tônica constante, que contaminasse todas as sequências e fizesse com que todas as ações beirassem o intolerável. Muitas vezes, Bigelow esbarra em um sentimentalismo piegas (regado aos violinos de Alexandre Desplat), cujo tom não atinge o exagero suficiente para desnaturalizá-lo. Em diversas sequências, a determinação de Maya frente à ignorância e à inação do ambiente masculino que a rodeia busca criar uma identificação que, se confrontada com o aparato ideológico que a sustenta, parece plenamente impossível. A perceptível relutância entre mostrar ou não o rosto de Bin Laden morto atesta uma vacilação que perpassa diversos momentos do filme. Mimese e distanciamento, adesão e crítica à versão oficial se misturam, e fazem da sessão uma experiência contínua de entra-e-sai.

Mas talvez (e essa não é uma defesa, mas uma constatação) o próprio momento contemporâneo seja um complicador importante a se considerar aqui. No gesto do soldado que, ao final de The Hurt Locker, retornava ao Iraque como quem não resiste à abstinência narcótica, havia uma asserção – cinematográfica e política – mais poderosa, mas que encontrava um lugar histórico um tanto mais propício: naquele momento, o fantasma de Bush já adquirira as feições de um cadáver distante, e mesmo os norte-americanos já não encontravam razões para defender a indignidade de uma cruzada inegavelmente falida. Em Zero Dark Thirty, filmar um presente ideologicamente inóspito – quando muita coisa ainda parece bem longe da clareza inconteste – é instalar-se em pleno olho do furacão: um território onde reinam tanto a coragem quanto a instabilidade, tanto a justeza moral quanto a oscilação inaceitável. No choro indecifrável de Maya (imagem-síntese de um filme tomado pela indeterminação), a geografia dos afetos não é plana, e sim povoada de irregularidades. “Aonde você quer ir?”, é a pergunta que ela não pode responder: morto o homem, o que resta da vida? Quando o esgotamento de uma trajetória vitoriosa e a vanidade de uma guerra penetram um mesmo rosto, para onde olhar? São essas as perguntas que o filme insiste em não responder, e tanto seus vícios quanto suas virtudes residem nesse recuo fundamental. O fim da sessão não marca o início das certezas; ao final, o que vemos é uma porta que, mesmo estando hermeticamente fechada (e justamente por isso), nos abre um novo abismo e nos lança uma vez mais em direção ao vespeiro.

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