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A revolução será televisionada?

O cinema de M. Night Shyamalan é um cinema habitado por mediações. Por mais transparentes e cristalinas sejam suas narrativas – grande herdeiro das regras do classicismo, ele as reconfigura para um viés puramente moderno –, o roteirista e diretor sempre as conduz por elementos exteriores ao seu centro. Desde O Sexto Sentido (1999), não há filme de Shyamalan em que o suposto ponto de partida, na verdade, seja exatamente o cerne do drama, pois pelo caminho surgirá algum elemento de mediação que desviará a rota previamente (ou falsamente) traçada. Para muita gente – e para os vícios de consumo de um circuito cinematográfico pautado pela eficiência, o que raramente dá em boa coisa –, esse procedimento passou a ser chamado de “plot twist”, ou “reviravolta”, ou (pior de todos) “final-surpresa”. Se avançarmos um pouquinho mais além das convenções de expressões criadas para estampar cartazes publicitários, poderemos perceber que as ações de Shyamalan não são meramente truqueiras (ainda que às vezes possam soar como tais, principalmente em O Sexto Sentido), e sim expansivas e ampliadoras do olhar. Num átimo, aquilo que se achava que era o filme se revela outro filme; o truque mágico mostra que estávamos olhando para cá, quando o que realmente importava estava para lá; que não necessariamente foram omitidas informações, e sim havia disfarce de outras informações que pareciam ter um sentido e não tinham.

O efeito de mágica (que faz lembrar, não à toa, Orson Welles, verdadeiramente um mágico) significa para Shyamalan, como escreveu Fábio Andrade em texto sobre A Visita (2015), que “mostrar é também demonstrar o que mostra; apresentar é demonstrar o que apresenta; narrar é demonstrar o que narra”. Ele é, portanto, um artista da visibilidade cujo instrumental estético, para alcançar seus efeitos, se baseia na invisibilidade (os elementos estão todos lá, mas não conseguimos ver de imediato). Vidro é todo baseado na noção de que, para revelar ao mundo uma verdade inconveniente, antes é preciso disfarçá-la, tapeando, assim, aqueles que não a querem revelada. Elijah Price (Samuel L. Jackson) é o artífice do processo, o verdadeiro artista que mexe as peças de um jogo do qual só ele tem o controle, mesmo que isso não se mostre de imediato. Eis exatamente a descrição de um cineasta como Shyamalan, dono de toda a manipulação de sons e imagens a qual somos submetidos e que tanto prazer pode proporcionar quanto mais fundo mergulha-se nela. Elijah é o alter-ego intelectual de Shyamalan, e o fato de o personagem ser um terrorista desmascarado lá em Corpo Fechado (2000) só reforça a crença do diretor nos delírios possibilitados pela ficção.

Vidro se articula como o desfecho de uma não anunciada trilogia que começou em Corpo Fechado e atravessou Fragmentado (2016). A tese central é a de que existem indivíduos dotados de poderes extraordinários circulando entre os humanos ditos comuns. Utilizando arquétipos das histórias em quadrinhos de super-heróis, Shyamalan desenvolveu, pelos três filmes, toda uma mitologia em torno de um pequeno grupo de personagens, comentando (ora sarcástico, ora genuinamente apaixonado) a importância dos gibis na cultura popular. Essa seria, talvez, uma camada inicial de apreensão. O que se desprende ainda mais de Vidro como o terceiro ato de uma história maior é que as mediações humanas em Corpo Fechado (Elijah, ao conduzir os caminhos de David Dunn, vivido por Bruce Willis) e Fragmentado (a jovem Casey, interpretada por Anya Taylor-Joy) eram passagem para a mediação tecnológica que transmitirá a verdade em Vidro. A revolução arquitetada pelo plano de Elijah será televisionada – e por isso ela corre sérios riscos de não acontecer.

O “tecnovívio” (expressão formulada pelo crítico e teórico argentino Jorge Dubatti e que se contrapõe ao “convívio”) oferece certo conforto contra os perigos do corpo. Intermediadas pelas traquitanas tecnológicas, as relações humanas passam a ter menos riscos físicos, menos possibilidades de feridas reais e mais segurança de sobrevivência. Ir às ruas deixa de ser um risco, pois estar nas redes sociais garante algum bem-estar. Uma das consequências do “tecnovívio” tende a ser uma crescente imobilidade travestida do falso sentimento de que algo está, sim, em movimento, de que algo está, sim, sendo feito. Elijah Price acredita que, se ele conseguir transmitir as imagens dos superseres para além dos muros da clínica psiquiátrica, a revolução vai acontecer. Ele morre em prol dessa ideia, sacrificando também os demais indivíduos extraordinários, no intuito (nobre?) de revelá-los. É uma aposta de alto risco, assim como é a aposta de Shyamalan como cineasta moderno na máquina de triturar de Hollywood, que tanto lhe deu e tanto lhe tirou.

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A mediação em Vidro se inicia na psicóloga Ellie Staple (Sarah Paulson), passa pelo plano de Elijah e se conclui na transmissão das imagens. Esse caminho estava traçado desde os momentos em que o enquadramento do filme, por diversas vezes, se assumia como registro de câmeras internas. Shyamalan fez todo um filme a partir desse tipo de registro tecnovivial (A Visita), demonstrando a (auto)consciência de seus efeitos tanto dramáticos quanto criativos e comentando a si mesmo a cada nova cena. Vidro, com seus super-heróis e supervilões, também é um filme sobre sua própria construção e sobre seus mecanismos internos, constantemente comentando cada procedimento, ora na boca dos personagens (em especial da psicóloga e de Elijah), ora por dentro das escolhas visuais (os registros de câmeras ou os planos/contraplanos frontais).

A autorreflexividade é fundamental na força do cinema de Shyamalan, pois ela proporciona constante quebra de rumos e expectativas. Se o olhar se acostuma a uma imagem, de repente a câmera dá um rodopio e mostra o personagem de cabeça para baixo; se o enredo parece querer convencer o público das verdades narrativas, logo um monitor retira o naturalismo das brigas de superseres para questionar a natureza daquilo que está sendo visto; se a premissa se encaminha para o golpe interno que dará vitória a uma organização reacionária, é preciso retornar quase ao princípio do filme para compreender que não era bem assim e estava tudo lá, só que invertido. Como em A Vila (2004), a aparência desvia a percepção, para então a violência da revelação se abater com mais força.

Se a jogada de Elijah Price dá ou não resultado, Vidro não nos deixará saber. No último plano do filme, a câmera faz uma panorâmica sobre a estação onde os coadjuvantes sobreviventes (uma inesperada família criada pelas circunstâncias) se sentam à espera do impacto das imagens disseminadas na web. Pessoas circulam de e para todos os lados, celulares se acendem, tablets se abrem, rostos se assustam, outros não dão a mínima e um monitor de TV noticia: algo aconteceu. Elijah conseguiu seu intento, intermediado por pessoas “comuns” que se dispuseram a prestar tributo ao sacrifício dele, de David e de Kevin (James McAvoy). Mas… para quê? As imagens podem matar?, já perguntava a filósofa Marie-José Mondzain, ao questionar o verdadeiro poder de uma imagem eletrônica. O registro, por si só, não faz nada: ele é a mediação entre um olhar humano e aquilo que a câmera capta a partir do direcionamento técnico desse olhar. Uma imagem não salta da TV e toma uma ação. É preciso que aquele que a olha se afete por ela e, a partir de seus impulsos, pegue a ação para si. Mas como a imagem terá o poder da revolução se ela pode vir de qualquer forma em qualquer lugar e se seu estatuto tem sido cada vez mais atravessado pelo imaginário ficcional? Ao ver os superseres se digladiando no estacionamento da clínica, através de seus aparelhos de bolso ou no telejornal, ao final de Vidro, é quase possível escutar as pessoas da estação dizerem: “Parece cena de filme”.

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Num século 21 em que a imagem é protagonista e a possibilidade de alteração e manipulação é constante, a veracidade do que se vê deixa de ser uma questão. Se a ilusão maior buscada pelo cinema sempre foi a de substituir a concretude do mundo material pelo magnetismo da mimese – utilizando-se de referenciais da “realidade” que querem convencer o olhar de que aquilo dentro da tela é representação fidedigna do que está fora –, pode parecer natural que, ao se chegar a um futuro dominado pelas imagens, o questionamento a elas tenda a minguar. Qual a diferença entre a explosão ultrarrealista de um filme do Michael Bay para a explosão de aviões no alto do World Trade Center, ou de um tsunami que arrasta gente e carros via efeitos digitais de última geração e a lama que, ao longe, via câmera de um guindaste, chega pelo canto do quadro e encobre todo um meio ambiente? Cineastas tão distintos quanto Brian De Palma, Jean-Luc Godard e Harun Farocki passaram décadas de carreira investigando e questionando até onde uma imagem (e a percepção sobre ela) consegue resistir à crença nela mesma. Shyamalan é um desses artistas que se dedica às preocupações sobre o assunto e vem, de filme a filme, contribuindo para tornar a conversa cada vez mais complexa e perturbadora.

“Parece cena de filme” é expressão recorrente sob o impacto de imagens chocantes. Em Vidro, o discurso final de Elijah, repleto de nobreza sobre as possibilidades da condição individual como singularidade de cada um, não encontra destino que não sejam os créditos finais do filme. Resta a fé de cada espectador – fé, sentimento tão caro ao cinema de Shyamalan, a crença de que algo pode de fato acontecer ou existir se assim acreditarmos. Mas o diretor não é ingênuo e sabe que a fé, por si só, é como a imagem: ela não pode matar.


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