Wes Craven e os pesadelos da representação

janeiro 25, 2016 em Em Vista, Marcelo Miranda

Pânico 4 (2013), Wes Craven

Pânico 4 (2011), Wes Craven

por Marcelo Miranda 

“Now I lay me down to sleep,
I pray the Lord my soul to keep;
Should I die before I wake,
I pray the Lord my soul to take.”

Oração infantil

A partida de Wes Craven marca o fim de uma poética solidificada de maneira bastante peculiar ao longo dos últimos 40 anos. Craven teve diversas fases, fez filmes tanto de imenso impacto (popular e crítico) quanto achincalhados sem o mínimo recalque. Por muito tempo, deu-se ao diretor bem pouca atenção e relevância, com os holofotes mais em cima das figuras criadas por ele (Freddy Krueger e Ghostface, especialmente), como se todo o imaginário propalado pelas franquias A Hora do Pesadelo e Pânico não tivesse um artífice consciente e sempre sob controle de cada movimento e cada gota de sangue. Como José Mojica Marins, Craven, ao longo dos anos, tornou-se vítima de suas próprias criações, sendo relegado a alguma segunda (ou terceira) categoria, por mais que vários de seus filmes tenham se tornado fenômenos populares. 

Isso muda, sutilmente, com sua morte, em Agosto de 2015. A impossibilidade de trabalhos futuros do cineasta provocou uma onda nostálgica que pode, eventualmente, tornar-se olhar crítico e reflexivo. Escreveu-se muito pouco de realmente pertinente sobre os filmes de Craven. Compare, por exemplo, com a recepção de um John Carpenter, cineasta com quem o trabalho de Craven guarda mais relações de contato do que se pode pensar num primeiro instante, e que já é, em certa medida, enxergado como autor, esteta e cronista da sociedade – um tipo de respeito que a Craven raramente foi oferecido. Isso pode ter acontecido porque Wes Craven nunca foi exatamente o mais caprichoso dos diretores. Por mais que se encontrem imagens de muita força nos filmes dele, é mais complicado enumerar planos, composições ou lances de montagem que sejam absolutamente marcantes (fora criações icônicas, como as unhas de Krueger emergindo da banheira, por exemplo), ou mesmo algum tipo de marca autoral que o destacasse. A questão é que Craven trabalhava na pulsação dos filmes, na inquietação dos planos e dos acontecimentos, no mal-estar de uma arquitetura de encenação nem sempre claramente sólida, porém inteiramente fundada na crença de que é preciso movimentar e dar a ver a fagulha de alguma coisa que está lá, a irromper num rasgo sem aviso prévio, pronta para contaminar todo o resto.

Wes Craven

Wes Craven

Nos filmes de Wes Craven, o ritmo é essencial à apreensão, pois trata-se de um diretor da ação, do instante único, do aqui-agora que não fica guardado para a cena seguinte. Em comparação grosseira, ele está para Charles Chaplin assim como John Carpenter para Buster Keaton: os dois primeiros causam a fissura na imediatidade dos planos, sem espera nem preparo, para logo passarem à fissura seguinte quase sem dar tempo de se absorver o que foi visto anteriormente; os dois outros preparam, ensaiam, ameaçam que vão para não irem ainda, fazendo o incômodo impregnar toda a estrutura do filme, até que uma explosão retira as certezas e coloca quem assiste num outro estado de afetação.

As cenas de abertura dos dois mais conhecidos trabalhos de Craven são significativas nesse sentido. Em A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), somos imediatamente colocados dentro do sonho de uma moça, que, antes de meia hora de filme, estará morta: as primeiras imagens já entram em suspense, a garota perseguida por alguém misterioso e monstruoso que não lhe dará trégua. Pânico (Scream, 1996) tem um início de falsa tranquilidade, mas, ainda no crédito do título, antes mesmo de se ver a primeira imagem, ouvimos o toque do telefone, apito literal da chegada do Mal em cena. Quando Casey (Drew Barrymore) atende a ligação, a ação está em andamento; seu destino, encaminhado.

A Hora do Pesadelo (1984), Wes Craven

A Hora do Pesadelo (1984), Wes Craven

Craven nunca teve o grande sonho de ser um diretor de horror. Calhou ele se tornar um por circunstâncias de trabalho e de mercado. O acaso (acaso?), porém lhe serviu à perfeição, pois nenhum outro gênero permitiria tanta liberdade para tratar das inquietações que lhe afligiam e interessavam. O terror o aproximou daquilo que o movia como artista. Não podemos ter certeza de que ele tenha percebido isso logo no começo, quando fez Aniversário Macabro (The Last House on the Left, 1972) aos 32 anos, mas é possível intuir, pela simples escolha de se fazer uma releitura muito particular de A Fonte da Donzela (Jungfrukallan, 1960), de Ingmar Bergman. Na espiritualidade, nas questões morais e no absoluto pavor da situação que desencadeia os vários dramas do filme sueco, estavam várias das chaves a serem mais e mais desenvolvidas por Craven nos anos posteriores.

A relação com Bergman não é fortuita nem só base de inspiração. Os filmes de Craven e de Bergman são marcados por tormentos semelhantes, originados no interior de famílias desestruturadas cujas angústias modelam um tipo de presença que a imagem tenta capturar. Em um, a dor e o sofrimento estão expostos nos corpos e nas expressões em constante atrito com o cenário e com os demais corpos; no outro, estão na exposição da carne e das vísceras; em ambos, a deterioração e posterior destruição do corpo humano é o elemento comum.

O contínuo e insistente esfacelamento do corpo no cinema de Wes Craven se relaciona à incompatibilidade dos personagens com o mundo onde eles vivem. O embate com o Mal (insistimos na maiúscula, para dar o devido caráter de presença substantiva) é inevitável desde o primeiro instante. Não há preparo ou exposição anterior: ao se adentrar em cada filme, é preciso saber que a ameaça ao corpo está instalada desde muito antes, por forças que nunca se dão a ver objetivamente, ainda que sejam eventualmente convocadas para se tentar iniciar algum tipo de compreensão sobre a origem dos fenômentos em andamento. Como em Howard Hawks, flashbacks ou rememorações ilustradas não fazem parte do repertório de Craven. Se o passado surgir, será através da oralidade e da imaginação, amplificando o efeito do Mal que já ocupava o espaço antes de ser nomeado. E o Mal invariavelmente é sintoma de alguma coisa podre no estado social em que estão os personagens. Bandidos em fuga, famílias canibais, pais linchadores, mães negligentes, pastores rígidos… seja como ou de onde vier, a origem do Mal será isso – uma origem, nunca o Mal em si; este será consequência, e assistimos à tentativa de sobrevivência daqueles que devem expiar o que não se resolveu lá atrás.

Craven articula esse processo através dos arquétipos de uma América doente. Sua política é menos sofisticada que a de John Carpenter e menos formalmente elaborada que a do William Friedkin de O Exorcista (The Exorcist, 1973), mas não menos devastadora. Seus três primeiros filmes para cinema – Aniversário Macabro, Quadrilha de Sádicos (The Hills Have Eyes, 1977) e Bênção Mortal (Deadly Blessing, 1981) – formam uma trinca de choque, na qual a decisão por viver dignamente em sociedade é questionada de dentro, através da formação originária dessa mesma sociedade. Os planos derradeiros dos dois primeiros – o congelamento da imagem no meio de ações violentas cometidas pelos “mocinhos” de cada filme – dão o tom de desilusão, para então se chegar a Bênção Mortal, que adianta muitos dos estímulos vistos décadas depois em A Vila (The Village, 2004), de M. Night Shyamalan: a ilusão de se isolar do horror tende a gerar apenas mais horror, porque o Mal não pode ser controlado pelas leis dos indivíduos. A tentativa será sempre um fracasso, e Craven o mostra por imagens de pulsão de morte, chegando, enfim, à reconfiguração do corpo e à necessidade de um novo tipo de olhar. É preciso ver para entender que não há como resolver: o Mal dá seu jeito de voltar (a existência de Pânico como uma quadrilogia em alguma medida trata disso, para não falarmos da interminável série com Freddy Krueger, mesmo quando feita sem Craven). Os filmes do cineasta descartam a inocência logo na partida e constatam, resignadamente (e também com cruel ironia, como fica perceptível ao fim de Bênção Mortal), a impossibilidade de se driblar o Mal instalado.

Bênção Mortal (1981), Wes Craven

Bênção Mortal (1981), Wes Craven

As Criaturas Atrás das Paredes (The People Under the Stairs, 1991) acaba por ser o episódio final de Craven para este olhar impregnado de um maior sentido representativo, sobre o qual repousam preocupações trabalhadas inicialmente a partir dos temas. Trata-se de um filme profundamente arraigado num sentido social por parte do diretor, com claro conflito de classes que se articula num imaginário anterior. Dali adiante, Craven adentra num percurso de metalinguagem e autorreferencialidade que se tornam coqueluche com a franquia Pânico, mas já estavam presentes num trabalho anterior: O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger (Wes Craven’s New Nightmare, 1994), sétimo filme da franquia, que desde o título original entrega a vontade de brincar com elementos previamente conhecidos pelo público. De fato há um “novo pesadelo” do próprio Craven, que aparece em cena interpretando a si mesmo e revelando que o temido Krueger é uma entidade maligna que só poderá ser capturada através do cinema (ou seja, pela ficção). Será preciso, então, recriar todo o contexto do primeiro A Hora do Pesadelo para que Krueger seja encontrado e eliminado de vez. Do mesmo jeito que Mojica fizera na relação (dele e do público) com o coveiro Zé do Caixão em filmes como O Despertar da Besta (1969), Exorcismo Negro (1974) e Delírios de um Anormal (1978), as dobras internas dos filmes de Craven lhes servem a outras camadas de apreciação.

A partir de Pânico, tramas de assassinato e perseguição passam a incorporar o esgotamento e as contradições do gênero slasher, muito mais do que realizarem apenas variações em torno dele. No primeiro filme isso fica bem mais explícito, especialmente nas referências e na ironia de uma encenação que parece sempre estar um passo à frente do que o espectador estava acostumado dentro das regras desse universo. Pânico 3 (2000), mesmo com sofisticação formal e referencial, sofreu com a péssima recepção de público e parte da crítica, consequência de surgir após inúmeros derivados da franquia que nada mais fizeram além de reproduzir aquilo que, em Pânico, era somente ponto de partida (as tais regras do slasher adolescente) rumo a reflexões mais aprofundadas de representação.

Mais até que Pânico 3, a vítima mais injustiçada desse processo que o próprio Craven aprimorou e do qual se tornou refém acabou sendo Voo Noturno (Red Eye, 2005), autêntico pesadelo filmado que foi visto em muito canto, limitadamente, como mau filme de suspense. Voo Noturno é a extensão natural e lógica dos processos desenvolvidos primeiro em A Hora do Pesadelo e depois na franquia Pânico, retirando inquietações de determinados ambientes e as deslocando para outro universo e outra poética. O embate entre a personagem de Rachel McAdams e o de Cillian Murphy é essencialmente o conflito entre a razão e o imaginário, a superação do trauma e o trauma em si, a luta entre uma vida cotidiana que tende a omitir ou esconder seus monstros e a irrupção material desses monstros literalmente a seu lado. Ambientar o início da tensão num avião em pleno ar é a imagem perfeita de elevação ao reino dos céus, à altura das nuvens, àquilo que, na terra, é incapaz de ser colocado para fora por livre vontade. McAdams enfrenta o demônio (seu demônio, mas também o demônio de uma América então recém-destroçada pelo 11 de Setembro), deforma-o nos movimentos e na voz (por um artifício genial de a protagonista fincar uma caneta na laringe do terrorista, fazendo-o emitir sons grotescos ao apertar o pesçoco para poder falar) e o atrai ao concreto do chão, onde finalmente ela pode assumir o controle e derrotá-lo – oportunamente, com a ajuda do pai.

Vôo Noturno, Wes Craven

Vôo Noturno (2005), Wes Craven

É o mesmo tipo de processo de Nancy em A Hora do Pesadelo e O Novo Pesadelo (quando ela precisa entrar nos próprios sonhos para tentar trazer Krueger ao plano da realidade) e também resume a trajetória de Sidney Prescott ao longo da trilogia Pânico, na qual a garota traumatizada pela morte brutal da mãe está incessantemente fugindo de assassinos que insistem em desenterrar memórias e dores que ela, a cada início de um novo filme, parecia ter superado. Revisto hoje,Voo Noturno permanece uma obra-prima de contenção, na qual tudo que está dado pode ser visto para além da objetividade de uma situação fantasiosa de filme de perseguição, avançando naquilo que já vinha se explicitando como preocupações genuínas do diretor – e que a produção tumultuada de seu filme anterior, Amaldiçoados (Cursed, 2004), talvez tenha sabotado de surgir antes.

A relação de Craven com seu próprio meio de expressão se seguiu nos dois últimos filmes da carreira. A Sétima Alma (My Soul to Take, 2010) e Pânico 4 (2011) em alguma medida se conectam diretamente, até por virem imersos da superconsciência do cineasta com o material a ser trabalhado. No primeiro caso, retorna a alegoria da representação, a partir de uma série de assassinatos que ocorrem ao longo de um único dia e cuja base é uma “lenda urbana” (que o prólogo revela não ser exatamente uma lenda) anualmente reconstituída pelos jovens moradores de uma cidade. Em texto aqui na Cinética, Fábio Andrade diz ser A Sétima Alma “um filme sobre a ficcionalização, mas sobretudo sobre a crença no resultado da ficção, da encenação em si”, afirmação suficientemente definidora de toda a obra de Craven, mais ainda apropriada a seus trabalhos tardios. Pânico 4, afinal, surge como paroxismo desse processo de que (novamente Fábio) “viver em civilização é aprender a incorporar uma certa encenação, a assumir um papel a se desempenhar e acreditar plenamente nele”. O dispositivo de fazer a responsável pela matança ser uma prima de Sidney (personagem que já se originava de um mito, o da mãe assassinada) que quer repetir seus passos, num filme realizado uma década depois de Pânico 3 e no qual os crimes só têm sentido na medida em que podem ser transmitidos por mídias móveis, não estaria originado no “vício” civilizatório de só se acreditar na encenação de si para o outro e para o mundo? Os prólogos de Pânico 4, com o filme-dentro-do-filme-dentro-do-filme, materializam, na forma, a escritura de um mundo marcado pela necessidade de as referências e as vivências terem por base essencialmente a mais pura ficção.

Ao voltar continuamente a tudo que ele mesmo tinha feito antes e questionar até onde a imagem deve ser o simulacro de si mesma, repetindo-se ao mesmo tempo em que finge ser diferente a cada nova volta no parafuso, Wes Craven deixa uma obra potente, que se impregna dos códigos de gênero para devolvê-los em forma de perturbação (estética e narrativa) e pelas quais ainda há muito por onde adentrar e circular. Basta que se embrenhe nos pesadelos para se buscar os monstros que desconstroem e descontrolam aquilo a que se chama de realidade.

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