Um prólogo, uma primeira imagem: o cineasta Jonas Mekas sob luz baixa, conta de sua infância em meio à guerra, quando ganhou sua primeira máquina fotográfica e foi até a estrada captar a chegada de tanques russos. Ele recorda da alegria do momento em que tira sua primeira foto, de sua boa chance. Um soldado russo então se aproxima, toma a câmera, arranca o filme e o pisoteia no chão. “Então, em algum lugar da Lituânia, camadas e camadas e camadas debaixo da superfície, está a primeira imagem que ele fez. É como uma escultura que não teve escultor” diz Douglas Gordon.
Gordon é conhecido por outro retrato, o de Zidane: Um Retrato do Século XXI (2006), em que 17 câmeras nunca perdem de vista o célebre jogador francês de origem argelina, ao longo de uma partida inteira, como imagem ostensiva que um atleta desse porte significa na economia das imagens contemporâneas, esgarçando o tamanho do craque francês no regime de visibilidade, num misto de fascínio pelo personagem e consciência de sua espetacularização.
Eu Não Tinha Para Onde Ir é uma espécie de contracampo do retrato de Zidane…, ante a imagem ostensiva, a falta de imagem. “A portrait of a displaced person” é o seu subtítulo e Gordon se coloca a tarefa de reconstituir essa escultura sem escultor: o filme é retrato do período descrito por Jonas em seu livro homônimo em que, junto ao seu irmão Adolfas Mekas, fugiram da Guerra, foram capturados por nazistas para um campo de trabalhos forçados, conseguiram escapar e sobreviveram em um campo de refugiados até o fim da Guerra, concluindo seu deslocamento cinco anos depois, finalmente chegando em Nova Iorque onde se estabelecem e desenvolvem seu trabalho.
Jonas Mekas é figura central do cinema experimental novaiorquino do início dos anos 1960; enquanto articulador, no trabalho de crítico que tinha com seu irmão Adolfas na revista Film Culture, e adiante na fundação da Film-makers cooperative, que viria a se tornar a Anthology Film Archives, uma das principais cinematecas de cinema de vanguarda do mundo. Mas também enquanto realizador: com sua Bolex 16mm, Mekas descobriu em seu cotidiano uma maneira de fazer filmes nos intervalos que tinha entre o trabalho de curadoria e exibição do cinema independente.
Assim, sua obra mexe nas estruturas do cinema tanto de um ponto vista de formato – com a afirmação de um cinema fora do circuito comercial e das estruturas industriais de produção – como também o expande do ponto de vista de sua ontologia, isto é, na aproximação com sua própria vida, na diluição do cinema em seu cotidiano, faz de seus filmes-diários índices de seu olhar deslocado e simultaneamente atestados de sua existência, em uma coincidência entre a objetiva da câmera e uma primeira pessoa narradora: “eu filmava Nova York, mas era sempre como se filmasse a minha antiga casa”, escreve Mekas sobre seus filmes diários.
Em Reminiscências de uma Viagem à Lituânia (1972), Jonas e seu irmão voltam para sua terra de origem depois de 25 anos e Mekas capta a Lituânia contemporânea sob a busca de seu imaginário infantil, mais interessado nos lugares e hábitos do seu passado do que um retrato analítico da Lituânia de então, fazendo da divisão em pequenos capítulos numerados um diário de viagem do reencontro. Na Nova Iorque dos ano 1960, seu olhar também estava voltado para essa subjetividade desenraizada, cujo passado está fincado em outro país, outra cultura. Para ele, a situação do deslocado (displaced) é estar sempre no movimento de voltar para casa, sem necessariamente algum dia chegar. As imagens de Mekas tem assim um corte subjetivo da condição do refugiado, que lida com o aspecto fugidio da memória e dessa experiência sensível do “arrancado”, muito mais do que uma formulação política organizada, de linha discursiva.
Retomo Eu Não Tinha Para Onde Ir, em que Gordon dialoga com a própria forma como Mekas faz seus filmes, estruturando-se a partir dos diários do jovem Jonas durante os anos da Segunda Guerra, lidos na sua voz de hoje, com 93 anos de idade. Os relatos demarcam a narrativa ponto a ponto, com local e data, mesmo que de maneira desordenada, não linear, como reminiscências conturbadas: a fuga junto a seu irmão da Lituânia em plena Segunda Guerra Mundial, atravessando a Europa, o microcosmo da guerra dentro de um trem, a chegada em Nova Iorque, seu estabelecimento no chão de fábrica e sua relação com a câmera-diário.
E então, a partir da história do fotograma perdido, Douglas Gordon fundamenta a forma do filme: ouvimos os relatos, enquanto assistimos imagens escassas, intercaladas por longos trechos de escuro, sem imagem. E, nessa ausência de imagem em longos blacks, Gordon abre seu filme para uma conceituação teórica bastante vasta e densa da história do cinema, o debate sobre irrepresentável. Isso é, o filme de Gordon lida com o trauma de maneira estrutural, lacunar, incompleta, que incorpora a descontinuidade entre a representação e o representado, recusando uma relação voyeurista com o objeto traumático.
Gordon e Mekas são separados pelo espaço de quarenta anos, pela experiência da guerra e do nazismo, da vivência de um refugiado. Que tipo de imagem o diretor escocês, poderia produzir? Usar imagens de arquivo da guerra? Ou a tão recorrente ficção biográfica? Ou ainda, se apropriar do material do próprio Mekas? Essas abordagens apenas redundariam a uma filmografia exaustiva sobre a segunda guerra; e sobre a alternativa de apropriação, qual seria sua relevância diante da obra de Mekas?
Gordon faz do testemunho, da memória e do relato algo não ilustrável, pois sua imagem está soterrada a sete palmos debaixo da terra. As poucas imagens que compõem o filme emergem com a potência do contraste com a escuridão. Um longo fade para o vermelho. Uma sutil fumaça que surge do preto. Batatas e beterrabas sendo cortadas. Um chimpanzé mexendo na pele do pé, um gorila que encara o espectador. Imagens que recusam um valor ilustrativo na relação com o som ou com a narração, de significado árido, cuja interpretação num plano simbólico soa frívola, pois o simples dado positivo de ser visível chama para si. Planos desacompanhados de outro ao lado, isolados, que surgem assim com magnitude, pois sendo raras, a escolha de cada imagem parece ainda mais desafiadora, enigmática. A vontade é de significar os tubérculos enquanto ração dos tempos de guerra ou o macaco como o primo próximo que nos olha desafiando a ideia de “humanidade” e “racionalidade”. Ou ainda, a leitura que o próprio Gordon faz, como um filme que “sobrevive de nada além de batatas”.
São todas leituras possíveis, significados que circulam o filme. No entanto, a experiência sensível resiste a uma análise interpretativa que busca esgotar seus significados enquanto metáfora compreensível, decodificável. E onde poderia ser um filme de dispositivos excessivamente cerebrais e de apreensão puramente intelectual, predomina uma experiência sensorial, de modo que a aridez de imagens que poderia produzir uma fruição dificultosa, é justamente o que dá espaço para o filme se tornar uma peça sonora que dá ao espectador um papel imaginativo, sensações físicas, de uma percepção dos sons que extrapola uma apreensão puramente narrativa ou factual. O som toma para si uma centralidade inusitada, costurando os relatos com sons de ambiente, de objetos e situações, cuja espacialização e a nitidez dão materialidade física para a experiência do filme, sendo o exemplo mais evidente o bombardeio, com duração de vários minutos, na completa escuridão.
A contação de histórias de Mekas nos coloca a visualizá-las como uma criança com um disco de fábulas, como um filme fora da tela, em cenas de guerra ora miseráveis, ora acolhedoras e engraçadas, colocando o espectador em posição de escuta do testemunho do que jamais viveu. Como um diário fora de ordem, o que importa não é o passo que vem adiante ou o que acabou de acontecer, como poderia ser uma narrativa aventuresca da fuga, mas cada fragmento enquanto experiência em si.
Gordon sugere ao irrepresentável uma relação imaginativa do espectador, que na impossibilidade viver essa experiência através da reencenação, só resta preencher a escuridão: “É bom fechar os olhos no cinema… às vezes”.
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