Entrevista com Hernani Heffner

julho 15, 2013 em Cinema brasileiro, Em Campo, Entrevistas, Fabian Cantieri, Thiago Brito

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Hernani Heffner, presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual

Onde chegamos? E para onde podemos ir?
por Thiago Brito e Fabian Cantieri

Eu e Fabian Cantieri fomos encontrar com Hernani Heffner – atual presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, conservador-chefe da Cinemateca do MAM e curador de preservação da Cine OP – pelos porões da Cinemateca do MAM. Nossa ideia principal era refletir os recentes acontecimentos políticos e seus efeitos na área de preservação audiovisual: a saída de Ana de Holanda do Ministério da Cultura, a entrada de Martha Suplicy; a saída de Ana Paula Santana da Secretaria do Audiovisual, a entrada de Leopoldo Nunes; o depoimento de Ismail Xavier na 8a Cine OP sobre a situação corrente da Cinemateca Brasileira e os efeitos da mudança no Ministério; a nova configuração da ABPA; a perspectiva de uma real e efetiva política nacional de Preservação Audiovisual. Sendo próximo a Hernani Heffner, acompanhei tudo isto dos bastidores. Dos maus bocados e dos bons, era possível tirar uma média que dependia tantos dos ventos quantos dos votos.

Com esta entrevista, queríamos de Hernani seus posicionamentos e suas ressalvas, adicionando a nossos questionamentos seus pronunciamentos, principalmente aqueles de ordem pública. Começamos, assim, buscando compreender um email que ele havia enviado à lista da ABPA, da qual faço parte, logo após o término da Cine OP de 2013. De lá, tentamos registrar as mudanças possíveis decorrentes de decisões políticas recentes, chegando à recapitulação de algumas impressões que Hernani havia estabelecido quando entrevistado pela Contracampo, doze anos atrás.

Os sinais de mudanças percebidos na relação do poder público com a preserveção nos últimos meses eram de caráter histórico. Mudando radicalmente a política centralizadora da gestão anterior, a aproximação da SAV com a ABPA possibilitou uma discussão acerca da prática da Preservação Audiovisual brasileira em nível nacional, englobando todos os arquivos, algo que deve ser visto como absolutamente novo. Em momentos como este, em que há um tipo de corte histórico, catapulta-se, imediatamente, uma nova configuração de mundo e estado de coisas. Saber lidar com isto e encontrar ali, em meio ao novo, as novas questões e rumos requer lucidez e compromisso. Fazemos um balanço, buscamos os novos paradigmas e indagamos do futuro. É possível que eu não tenha encontrado muitos homens em minha vida tão determinados a este tipo de trabalho quanto Hernani. Os embates são perenes, e a luta, principalmente de uma área como a Preservação Audiovisual, eterna. (Thiago Brito)

Thiago Brito: Gostariamos de começar contextualizando um pouco as coisas. De certo modo, queremos compreender as mudanças pelas quais passou o cenário da preservaçãoo audiovisual brasileira do ano passado para este, em especial no que tange ao papel que a ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual) e sua esfera de influência e importância em um âmbito geral. Principalmente porque, dado o que aconteceu com a Cinemateca Brasileira e que foi trazido a público por Ismail Xavier na Cine OP, informações começam a se entrecruzar e tudo vira uma névoa recheada de polêmicas. Penso que, quando você enviou aquele email sobre os acontecimentos de Ouro Preto para a lista da ABPA, logo após o fim da Mostra, você procurou dar um direcionamento mais sóbrio à questão.

Hernani Heffner: Aquele email tem até outro sentido. O email, em si, partiu de uma situação que era: uma série de pessoas tinha comentado na lista (da ABPA) de uma suposta crise dentro da Cinemateca Brasileira, mas sem definir o que ela seria, e repercutindo esta suposta crise de uma maneira que parecia que a instituição estava fechando, estava acabando, estava se desfazendo, etc – o que não era o caso. Então o email, de certa maneira, queria colocar as coisas em seu devido lugar, no sentido de mostrar que a instituição sobreviveu, que ela tinha tido um problema político, que na verdade tinha fundo administrativo, ou seja, recebeu um recurso do governo federal que, por lei, não poderia ter recebido. Isto provocou a demissão do diretor e, a partir da demissão de seu diretor, a instituição foi enquadrada legalmente. Um dos enquadramentos legais determinava que a instuição, sendo do governo federal, não poderia mais trabalhar com terceirizados.

Que eram ligados à SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca).

Que era a forma pela qual a antiga instituição trabalhava, contratando via SAC. Estes recursos existiam para a SAC em uma dimensão também ilegal, pois o repasse para ONGs estava proibido por uma lei que a presidente Dilma tinha editado em 2011. E, neste sentido, não era mais possível você trabalhar com um conjunto de funcionários terceirizados. E, na verdade, esta situação já tinha sido comentada por várias pessoas muitos anos atrás.

E havia, inclusive, sido colocada como debate na Ouro Preto do ano passado pelo Rafael de Luna.

Sim. Porque naquele momento, em 2012, o Rafael estava refletindo uma serie de e-mails que tinham sido enviados para o blog dele. A maioria destes e-mails era de funcionários da Cinemateca Brasileira que tinham sido demitidos ou afastados, em um número bastante expressivo. E, assim, você estava concentrando toda a atividade da instituição nos terceirizados. Era óbvio que os terceirizados, desde sempre no Brasil, estão a sabor, de um lado, das intempéries políticas, e do outro lado, de uma legislação que eventualmente pode dar sustentação a isso, ou não. Neste caso, na verdade, desde 2008 havia uma recomendação em contrário, e, de 2011 para cá, havia uma lei em contrário. Ou seja, não podia ter terceirizado, você precisava ter funcionário público. O que significava que a direção da Cinemateca Brasileira tinha que ter mudado de estratégia, tinha que ter tomado uma outra decisão de gestão, e tinha que ter investido na criação de concursos, e na recuperação do quadro de funcionários estáveis da instituição. Não foi feito isso, a legislação bateu em cima deles, como bateu em várias outras instituições. E, aí, se você disser que há uma crise da Cinemateca Brasileira neste sentido, você vai ter que dizer que existe uma crise também na TV Brasil, no Centro de Referência do Audiovisual da prefeitura de Belo Horizonte, uma crise do CTAv e uma crise da própria SAC. Todas estas instituições tiveram que demitir seus terceirizados, e isto vem ocorrendo desde 2009. É um processo muito grande, é um processo nacional, que atingiu os mais variados tipos de arquivo. Ou seja, não era nada de novo, todos sabiam disso. O que o Rafael fez no ano passado foi constatar o óbvio: está acontecendo isto, vai arrebentar mais cedo ou mais tarde. Arrebentou para a Cinemateca Brasileira só agora no início de 2013, mas já tinha arrebentado para o CTAv em 2012, o CRAV em 2009, etc. Tudo isto já era muito conhecido.

Com o CTAv, se não me engano, foi poucos meses depois do Ouro Preto passado.

O CTAv perdeu sua equipe de preservação no início de 2012 – que era paga via SAC. Ainda se sustentou alguns meses dentro da instituição, com recursos outros, mas, obviamente, chegou a uma altura em que isso não era mais possível manter e a equipe saiu em Novembro de 2012. Então, a rigor, a crise já estava anunciada desde 2011, e ela foi se prolongando na medida em que as Instituições, no Brasil, tendem a ir até o limite final sem, na verdade, tomar uma decisão de procurar um outro caminho, ou tentar se ajustar às circunstâncias que existem, sejam elas boas ou ruins. Enfim, não estou discutindo se os concursados são bons ou ruins, ou se os terceirizados são bons ou ruins – mas é a lei. Então, em uma certa altura, as coisas seriam enquadradas legalmente e disso você não teria como escapar. Mas, isso é só um lado. Então, aquele email, no fundo, queria dizer: olha, a questão da Cinemateca Brasileira, do ponto de vista dos funcionários, é uma questão interna. Ninguém deveria se imiscuir nesta questão. A menos que a própria Instituição viesse a público e dissesse que gostaria de tornar pública uma questão da sua sobrevivência, a decisão sobre isto cabia, antes de tudo, ao Conselho da própria Cinemateca Brasileira, e que o Conselho, se quisesse, podia vir a público se posicionar, ou não. Do outro lado, aquele email tinha uma questão, e esta sim mais de ordem política, que era o seguinte: a Cine OP, e em particular a ABPA, tinham sido criados para discutir a preservação audiovisual no Brasil – e não na Cinemateca Brasileira só. E as mensagens estavam sendo colocadas numa dimensão que parecia que a questão da Preservação Audiovisual brasileira e sua eventual crise se resumia à Cinemateca Brasileira. O que eu escrevi foi no sentido de mostrar que, bem, a Cinemateca é importante, claro, ela deve ser vista com carinho, deve ser apoiada naquilo que for necessário, mas tanto a Cine OP quanto a ABPA não têm por objetivo resolver os problemas da Cinemateca Brasileira, e sim os da Preservação Audiovisual brasileira, o que, obviamente, significa incluir todos os arquivos – mas não só a Cinemateca Brasileira – e incluir dimensões que estão para além dos arquivos. Inclusive porque a ABPA não é uma organização de Instituições, mas uma organização de profissionais. Então, há questões que afetam os profissionais que não têm nada a ver com os arquivos, com as instituições. E eu dizia, inclusive, que, se era o caso da Cinemateca Brasileira se colocar em público no sentido de estabelecer um diálogo, estabelecer uma luta conjunta, etc, que ela não poderia adotar o discurso que ela adotou naqueles seis meses iniciais, como na Cine OP do ano passado – que era um discurso que só ela existia, que toda a memória audiovisual brasileira estava lá dentro, e de que ela representava a área.

Um discurso que inclusive recebia respaldo da própria Secretaria do Audiovisual, lembrando aquela mesa em que a antiga secretária do Audiovisual, Ana Paula Santana, ressaltou o papel centralizador da Cinemateca Brasileira, no ano passado.

Se existiria uma política de Preservação Audiovisual, e que esta política se resumia à própria Cinemateca.

Algo que ela deixou bem claro.

Bem claro. Você ali vislumbrou que existia não só uma questão política, mas, àquela altura, e de forma clara, existia também um obstáculo, que naquele momento pareceu intransponível. Pode-se dizer que existem três momentos envolvendo a Cine OP e a ABPA. O momento inicial era de tomada de consciência de que a questão da preservação precisa ser pensada, debatida, que se precisava estabelecer alguma estratégia de luta, de trabalho, etc – o que tem a ver com a criação da Cine OP, 8 anos atrás, e que tem a ver com a criação da ABPA, há 4 anos. Este momento inicial acabou se traduzindo por uma polarização. A própria área se agrupou na ABPA, no sentido de que ela percebeu que estava isolada. A área participou de um órgão público, que era o Sistema Brasileiro de Informação Audiovisual, que ficava dentro da Cinemateca Brasileira, embora fosse um órgão da SAV, agrupando uma série de reivindicações através deste sistema, que foram ignoradas pelo poder público – tanto pelos diretores da SAV, quanto pelos diretores da Cinemateca Brasileira. E o último encontro que houve deste órgão foi em 2009. Então, naquele momento, se esgotou qualquer tipo de atitude, ação, espaço, no sentido de você procurar um interlocutor que, no fundo, deixou bem claro que não queria te ouvir, não iria te ouvir, não faria nada em prol de uma comunidade ou de um setor de preservação audiovisual no Brasil. Houve, inclusive, um documento formal pedindo uma série de ações, desde mesa enroladeira, batoque, etc, e, tanto a SAV, quanto a Cinemateca, naquele momento, ignoraram isso, puseram isso de lado. Neste momento, a maior parte dos profissionais, em muitas das instituições que eles representavam, caiu em si. Eles notaram que não iam ganhar nada com aquilo, que não iriam ser escutados, que não haveria interlocução, não haveria uma política conjunta, e que estavam sendo colocados de fora do jogo. As pessoas viram que não tinham outra opção a não ser colocar estas reivindicações como uma luta política. Neste sentido, aquela consciência inicial difusa de que havia a necessidade de um instrumento político, e que este instrumento político seria a ABPA, ganhou corpo ali, entre 2008-2009, na medida em que a interlocução com o Estado se inviabilizou por completo, virou um obstáculo. Isto se prolongou.

O segundo momento já é um momento de acirramento do confronto. Este momento tem o seu ápice na Cine OP de 2012. O Estado vem à Mostra através da Secretária do Audiovisual, Ana Paula Santana, através do diretor da Cinemateca Brasileira, Carlos Magalhães, e dizem que eles representam a área, que eles estão fazendo tudo e que eles não precisam de ninguém, que não precisam escutar ninguém, que não há qualquer problema com esta política implantada.

Encontro de Arquivos, CineOP 2012

Encontro de Arquivos, Cine OP 2012

Sem nem ao menos reconhecer a autoridade e legitimidade da ABPA…

Pior do que isso. Sem nem ao menos reconhecer o conjunto de instituições e profissionais representados aí. Como se dissesse que o Arquivo Nacional não existe, que o CRAV não existe, que a Fundação Joaquim Nabuco não existe, que as instituições de guarda audiovisual no Brasil não existem, ou, se existem, elas têm uma função simples: coletar e repassar para a Cinemateca Brasileira. Ou seja, o que se faz é uma centralização de acervos, uma centralização de serviços, de know-how, e você nem retorna o objeto audiovisual para que as diversas comunidades do Norte, Sul, Leste e Oeste possam ter acesso à sua própria produção. E as pessoas ficaram completamente indignadas. Quando eu digo que este segundo momento foi de confronto, foi porque de fato as pessoas se ergueram, muito irritadas e zangadas, e abriram o verbo.

Fabian Cantieri: E eles assumiram o confronto?

Não, não era esta a questão. Não havia confronto neste sentido porque eles sequer reconheciam a legitimidade dos outros arquivos, argumentando que a questão estava resolvida, no sentido de acreditarem no que estavam dizendo. O argumento era de que a Cinemateca Brasileira teria se desenvolvido de tal forma que tinha se transformado em um centro de excelência. Então, para quê criar outros centros de excelência no país, se já existe um que é uma excelência absoluta? Ou seja, um argumento falacioso que diz o seguinte: se você tem uma boa fábrica no Rio de Janeiro, por que você vai criar outra boa fábrica em São Paulo? Ou em qualquer outro lugar.

E você achava que lá era um centro de excelência?

Eu acho que a gente está ainda muito longe de uma excelência em preservação no Brasil. Lá é uma Instituição que desenvolveu uma boa capacidade, que tem um potencial enorme, mas que não impede que existam outras instituições que possam realizar o mesmo em qualquer região do Brasil. E, como um país gigantesco, com uma diversidade cultural e linguística, cinematográfica e audiovisual, você precisa, primeiro, respeitar a natureza de cada região, de cada comunidade, de cada acervo, e criar condições de excelência para que todas aquelas regiões, comunidades, que queiram lidar com preservação audiovisual, tenham este direito. De um ponto de vista pragmático, você sabe que não existem recursos suficientes, mesmo que seja o maior centro de excelência do mundo, para ficar mandando tudo o tempo inteiro para um mesmo lugar. A boa razão econômica manda que você divida os custos por uma estrutura que seja capaz de sustentar isso de forma nacional. O que acaba sendo um argumento que repete o velho etnocentrismo. Então, sob todos os aspectos, este argumento da excelência é um argumento falacioso e politicamente nefasto. Pois ele repete a hierarquia de que existe um centro mais desenvolvido e um centro mais atrasado, e de que o atrasado não tem direito a nada. Uma política de desenvolvimento não é um política de distribuir os recursos por todo o país? Então, havia uma contradição enorme em um governo que pregava a diversidade, o desenvolvimento regional, o desenvolvimento de comunidades com dificuldades econômicas e sociais, de um lado, e uma centralização extrema, de outro. O que, a rigor, você só encontrava mesmo na área de preservação audiovisual. Ou seja, uma maluquice!

Neste sentido, aquele email meu falava sobre todas estas questões, mas falava principalmente sobre uma política pública de preservação. E a ABPA está focada na criação de uma política pública de preservação nacional, com uma diversificação de ofertas, de instrumentos públicos de desenvolvimento, de discussão em nível nacional, e não da argumentação de que a excelência resolveria tudo. Imagine no que toca a produção digital. Todos os estados brasileiros, sem exceção, produzem filmes digitais. Vamos cometer o mesmo erro que aconteceu com a película, e não pensar a sua preservação? A produção é enorme e já se perderam várias coisas. Com esta produção intensa, vamos realmente mandar tudo para um lugar só? Me parece um contrassenso absoluto. Até por esta questão histórica, da transição da película para o digital e a mudança de toda cadeia do audiovisual, a esta altura, não há mais como ignorar o fato de que, para preservar este conjunto, você precisa desenvolver regionalmente. Você tem que chamar o conjunto das instituições para fazer este trabalho monstruoso para ele ter alguma eficácia, para ele ter algum resultado. Mas, voltando, este momento de confronto foi, na verdade, um momento de afirmação da classe, do setor.

Thiago Brito: Engraçado que o sentimento que eu tenho, de ter presenciado a Cine OP de 2012, é a de que todos estavam conscientes disso, de que todos foram preparados, com uma agenda a ser resolvida. Como que preparados para ter o confronto e, dependo do que saísse deste confronto, preparados para mudar.

Sim. Houve um amadurecimento de 2008 para cá. Este amadurecimento foi, em um primeiro momento, sobretudo político, porque as pessoas perceberam que seus trabalhos e suas instituições não evoluiriam um centímetro sequer se não houver de fato uma transformação da postura do Estado em frente ao setor. Porque uma das grandes contradições do setor é que a grande maioria dos arquivos audiovisuais brasileiros é pública. São poucos os arquivos que são privados. Então, na verdade, você tem a própria esfera pública colocada de lado, dentro desta ideia de uma política nacional de preservação, e fazendo com que as instituições perdessem os acervos. A partir do momento em que o agente público federal, como o CTAv, ou estadual, como o Museu da Imagem e do Som (MIS), ou municipal, como o CRAV, percebem que eles não vão avançar um centímetro sequer se eles não mudarem sua própria postura diante do vácuo e inexistência de uma real política para o setor, foi quando todos foram lá quebrar cabeça, criticar, cobrar do Estado, dizendo: olha, você está me ignorando; segundo, você está me rejeitando, porque você não quer discutir comigo; e, terceiro, você não tem argumentos suficientemente claros e diretos para rebater o que eu estou te dizendo; eu existo, eu tenho um acervo e eu preciso cuidar deste acervo – o que você vai fazer? No momento em que o Estado diz que não vai fazer nada… as pessoas caíram em si. E na Cine OP de 2012 existia esta energia, existia esta raiva, esta constatação de que, nossa, eles estão realmente dizendo isso! Que eles não querem que eu exista! Então 2012 foi um momento de confronto, mas foi também um momento de muita aflição. Porque todos saíram de Ouro Preto com a constatação de que, se aquelas pessoas continuassem no poder, nada mudaria. Se a SAV continuasse com a direção anterior, se a Cinemateca continuasse com a direção anterior, não haveria diálogo. E uma das coisas que a ABPA se propôs em um primeiro momento foi estabelecer um diálogo. Na medida que você percebe que as pessoas te deram as costas e não querem nem saber, vem uma frustração muito grande porque você fica sem opção. Enfim, estava em um limite, e se as coisas não tivessem mudado…

Fabian Cantieri: Mas, e entre a Cine OP e Dezembro do ano passado, o que de fato aconteceu? Teve alguma coisa mais concreta que fez esta mudança se precipitar?

Aconteceram três coisas. A Cine OP foi em final de Junho, de 2012. Lá, em Ouro Preto, ficou claro o isolamento político da SAV e da Cinemateca Brasileira. Um isolamento até mesmo físico e de diálogo total. Parecia muito claro que o embate político seria inevitável e de que, mais cedo ou mais tarde, eles perderiam, porque o isolamento político te leva à queda. Isto repercutiu muito no Brasil todo na época, porque saiu em jornais, saiu em posts, em Twitter, Facebook, as pessoas comentaram bastante.

Segunda coisa, era um momento de eleição na ABPA e as pessoas vieram falar comigo para eu ser presidente. Em grande parte, existia uma razão para isso, porque a iniciativa da criação da ABPA havia sido minha, e, na Cine OP em que se propôs a sua criação, eu me antagonizei publicamente com o Carlos Magalhães, em 2008. Eventualmente, talvez por conta destas circunstâncias, as pessoas entenderam que talvez eu fosse a pessoa necessária, ali em 2012, para representar esta luta, retomar este embate. Eu fui eleito. Então, o que fazer? Toda a reflexão inicial foi no sentido de tentar trilhar um caminho para estabelecer este diálogo com a SAV e a Cinemateca Brasileira. Mas isto foi impossível. Não só a SAV e a Ana Paula Santana ignoraram a existência da entidade, a existência de uma possível representatividade daquele conjunto de profissionais, como não quiseram diálogo nenhum em momento algum. Então, o que se estava pensando eram em outros caminhos para evidenciar a questão e evidenciar este embate. Tornar isto público. Até mesmo pensando em buscar um fortalecimento fora do Brasil para depois voltar ao Brasil.

Mas, aí, as coisas mudaram. Em um primeiro momento, porque a Ana Paula Santana foi destituída de seu cargo, ainda em 2012, talvez um mês depois do Cine OP. O Leopoldo Nunes apareceu como uma sinalização possível. Aí, começou uma série de rumores de que havia um problema na Cinemateca Brasileira e, de fato, em Janeiro, a Martha Suplicy demitiu o diretor da Instituição, Carlos Magalhães. Quando eu fui me encontrar com o Leopoldo Nunes em Tiradentes este ano, o Carlos Magalhães havia sido destituído há apenas uma semana. Mas, quando conversamos, o que eu lhe disse era que eu representava a ABPA e que eu desejava estabelecer um diálogo com a SAV, e que esse diálogo visava não uma instituição ou outra, mas o conjunto das instituições. Ele me acolheu muito bem, disse que a SAV tinha uma nova diretriz, que queria sim conversar com a ABPA, e que a gente iria estabelecer este dialogo um pouco mais para frente, até porque ele estava começando ainda no cargo, e estava tudo ainda muito incipiente. Neste meio tempo, a gente estreitou esta relação com a SAV e, disso, surgiu uma série de propostas concretas para serem desenvolvidas conjuntamente. E isto foi levado para a Cine OP de 2013, esta que acabou mês passado, e foi a partir destas propostas que foram expostas aos membros da ABPA, e, do outro lado, à própria Secretaria do Audiovisual, que se chegou ao consenso de algumas coisas que podem ser viáveis e que, eventualmente, começariam a transformar o panorama da preservação audiovisual do Brasil.

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Hernani Heffner e Ismail Xavier – Encontro da ABPA com a Cinemateca Brasileira, Cine OP 2013

A Carta de Ouro Preto.

Exatamente. Você tem um conjunto extremamente amplo de propostas que estão consignadas na Carta de Ouro Preto. Vão desde a reivindicação de um assento no Conselho Consultivo da SAV, porque a única área que não estava representada lá é a da preservação, até algumas propostas mais concretas e que se firmaram sobretudo em três pontos: primeiro, a criação de um edital de infra-estrutura de preservação. Ou seja, é preciso lidar com os acervos físicos e dar condições para se promover a preservação nestes acervos físicos, onde você pode entrar para comprar uma refrigeração, para comprar estojo, para comprar batoque, mesa enroladeira, etc. E a estratégia, ou política pública, que se viu adequada para isso foi o edital, já que o governo federal veio basicamente trabalhando com este instrumento nos últimos anos, e é um instrumento democrático, que permite que você tenha esta política a longo prazo, que não se esgote em um único momento, ou edição, e que, eventualmente, você consegue regionalizar.

A segunda proposta, que na verdade veio da SAV e a ABPA modificou e ampliou um pouco, é que a SAV já tinha a criação de um núcleo de produção digital (NPD), e que a ABPA pediu para ampliar. Ou seja, que não fosse apenas de produção, mas que fosse de produção e preservação. É obvio que o mundo digital é muito novo para todo mundo, mas a SAV já tinha uma certa estratégia desenvolvida para esta questão da produção e da distribuição deste conteúdo audiovisual, e a gente perguntou se não caberia também a questão da preservação. Conversamos e notamos que cabia, e começamos a desenvolver a estratégia de colocação da preservação dentro destes núcleos, que tendem a ser estaduais, ou seja, cobrindo todo o país, em cerca de 28 NPDs.

Thiago Brito: E este núcleo de preservação atuaria apenas com a produção dos NPDs?

Não só. A ideia é que estes NPDs tenham uma função de digitalização, em um primeiro momento. Porque aquilo que já é produzido digitalmente, basta apenas replicar. É aquilo que você incorpora a um acervo, replica e pronto. Tem regras para isso, elas serão pensadas, estabelecidas, mas este é um fluxo mais natural. Porque o digital se perde muito fácil. Ele é de pouca durabilidade física, e se perde porque você não faz uma gestão adequada deste tipo de material. O que seria uma gestão adequada do digital? Ele tem dois grandes problemas. O primeiro problema é a obsolescência tecnológica. Ele precisa ser migrado de tempos em tempos para que ele ainda permaneça acessível, se não aquela tecnologia que o gerou saiu de cena, não foi preservada, e você perde o acesso à obra. Ela pode até existir fisicamente, mas você não lê aquilo. A segunda questão é o fato de que, como o digital é extremamente perecível enquanto objeto, você precisa ter mais de um objeto da mesma obra. Você precisar ter o backup.

Isto implica, na verdade, em ter uma rede, uma rede que seja acessível financeiramente, e que ela tenha condições de trabalhar isso automaticamente, já que as instituições nunca terão recursos, nem financeiros, nem humanos, para dar conta de ficar checando toda a produção audiovisual de tempos em tempos. Você não conseguia fazer isso com a película, imagina fazer isso com o digital! É impossível! Com a película, não dá pra você fazer sem utilizar o recurso humano, no digital, dá pra fazer via o digital. Ou seja, com um software, você tem a capacidade de checar, de tempos em tempos, se aqueles materiais que estão armazenados dentro da rede já estão em vias de obsolescência tecnológica, já estão em vias de debilidade física, já estão no momento de serem backupeados mais uma vez, ou migrados mais uma vez. Então, não é um funcionário que vai fazer isso, mas o próprio sistema, o que economiza recursos.

A grande questão é o desenho deste software. Como a SAV já estava trabalhando com o LAVID (Laboratório de Aplicação de Vídeo Digital), da Universidade Federal da Paraíba, que foi quem desenvolveu o sistema de televisão digital brasileiro, eles se propuseram a desenvolver este software para a missão de preservação dentro destes núcleos. O que é um passo extraordinário. Ainda, a SAV trabalha com uma rede, que é a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, que tem a estrutura física para isso, onde você pode ficar trocando os arquivos o tempo todo, alocando os arquivos onde você puder. A ideia da ABPA é que cada instituição tenha a sua própria política e que vá colocar o que quiser ali, naquela rede, e vai gerenciar do jeito que quiser. Então, este segundo passo tem uma dimensão enorme para este mundo atual, e traz do passado, do mundo da película, a transição para isto, na medida em que você vai instalar nos NPDs aqueles equipamentos, instrumentos, que vão converter de película para digital. Por exemplo, é possível ter um telecine de todos os formatos, e o próprio sistema poderá gerenciar isto de forma mais automática, e sem ter um custo gigantesco para cada instituição individualmente.

Quanto tempo para desenvolver este software?

O da televisão demorou 7 anos. O de preservação é mais simples. Esperamos que em dois ou três anos. Os problemas maiores são as definições e os padrões que você queira implantar, etc.

Fabian Cantieri: Mas entraria aí um processo como a ideia da Nuvem?

Mais ou menos. Quais são as nuvens reais no Brasil? São as instituições. Nelas, você vai encontrar as matrizes. O que se vai fazer através da RNEP, que seria a Nuvem mais tradicional, como se fala hoje em dia, é sobretudo guardar o backup inicial e a replicação. Então, isto estaria na Nuvem, enquanto que a fita física, ou o HD físico, ou o LTO físico, estaria no Arquivo. Por padrões atuais, você guarda o digital em LTO. Então, o LTO vai estar em um arquivo físico, você guarda lá a informação digital, ou digitalizado, já que pode ser uma película digitalizada, o que eu chamo de negativo digital. Na medida que você precisa exibir a obra, dar a conhecer a obra, você vai encodar aquilo e fazer a difusão necessária. Este LTO precisa ser replicado, porque aqui você só tem o objeto. E pra você guardar o LTO e replicá-lo digitalmente é uma fortuna. Então, você pode ter o LTO em uma rede, em uma nuvem.

Neste caso aqui, é a RNEP que vai prover o espaço físico/virtual para que você possa replicar este LTO quantas vezes quiser, e o software vai te dizer quando este LTO estiver em um momento que seja necessário migrá-lo, do LTO 5 para o 7, do 7 para o 9, etc. É um controle feito pelo próprio sistema, e, se ela se perder, você tem o backup dela em algum ponto da rede, no que você chama de Nuvem. Nuvem nada mais é do que uma rede física. Só não é mais dentro da sua casa. Você joga na internet que, na verdade, é algum dispositivo de armazenamento físico em algum canto do mundo. E, por esta rede, qualquer instituição, em qualquer parte do Brasil, terá acesso a isso. Lá em Ouro Preto, alias, nós acabamos descobrindo que isso já é feito. Não com fins de preservação, mas com fins de difusão. Existe uma associação brasileira de televisão universitária que usa a RNEP para trocar informações e programas entre si, entre as estações. Ou seja, não estamos inventando nada, isto já foi testado na prática. Claro, os requisitos e os protocolos da preservação são bem mais rígidos. Mas, no fim, o processo é o mesmo. O primeiro ponto é infraestrutura física. O que significa dizer: é o que o arquivo tem. Se ele quiser continuar cuidando só de película, ele pode. Cada arquivo tem lá o seu acervo e suas questões e isto tem que ser respeitado. Este passado é respeitado.

Thiago Brito: Mas este edital não pode se transformar em algo complicado?

Claro, ele ainda vai ser estipulado levando-se em conta mil questões, de modo a torná-lo justo. Mas o edital também implica um esforço por parte dos arquivos. De modo que as instituições não se acomodem, ou achem que está tudo resolvido. Eles podem ir atrás de uma melhoria, de uma excelência, que deve ser buscado por todos. Então, o edital premia também o esforço e o trabalho de cada uma das instituições. Aquelas que não se esforçarem, eventualmente, não serão contempladas. Não é um esforço paternalista. Não se quer isso. Primeiro, porque não existem recursos para isto, segundo porque esta não é a melhor política, se não todos se acomodam e as coisas não se desenvolvem a contento.

E o terceiro ponto?

O terceiro ponto é o futuro. É a criação de uma escola nacional de preservação audiovisual. No sentido de que não só o conhecimento com relação ao passado, ao chamado “mundo da película”, não se realizou mais amplamente no Brasil, como conhecimento para o mundo de agora e para o futuro, que é o mundo digital… ele não só está apenas começando, como ele demanda de fato uma formação que ainda não existe, mas que precisa existir, porque a produção já está ai. Então, para que você já tenha de fato no futuro uma interligação destas diferentes propostas, para que elas tenham um resultado mais eficaz, você tem que formar melhor, formar mais amplamente, e formar regularmente.

Hoje, a grande questão da área são os recursos humanos junto a estas instituições públicas. Porque o concurso público, que não foi realizado, retirou os terceirizados, retirou aquelas pessoas que tinham experiência na área, e que, eventualmente, vai colocar pessoas que simplesmente fazem um concurso público sem uma formação prévia maior em relação à área, já que a legislação atual permite isto, o que é um erro. Quem deveria poder mexer com preservação audiovisual é o preservador audiovisual. Pode-se ter a mais variada formação, mas é necessário um link com a área. Mas não existe esta formação regular, esta profissão não existe, a rigor, no Brasil. Quer dizer, apesar de uns 60, 70 anos de trabalho com preservação no Brasil, nunca se pensou de fato nisto. E, hoje, isto se mostrou dramático, por um lado, por conta das demissões em todos aqueles órgãos que eu mencionei, do outro, por uma carência de mão de obra que tende a se tornar cada vez maior, na medida que os acervos digitais vão se tornar cada vez maiores. Lidar com isto vai exigir um conhecimento, uma experiência, que só a universidade, só a escola, pode dar. Você precisa sistematizar este conhecimento, se não você não vai dar conta do tamanho da encrenca que se tem pela frente.

Atualmente, o que se tem muito é um processo de vocação, de pessoas que gostam do trabalho e continuam de maneira até mesmo autodidata. O Brasil avançou um pouco nos últimos dez ou quinze anos porque alguns cursos de curta duração foram oferecidos, algumas disciplinas foram encaixadas em currículos regulares, sobretudo de cursos audiovisuais. Você teve, então, um inicio de construção de uma formação audiovisual, mas ela se mostrou completamente insuficiente porque, no mais das vezes, é apenas uma introdução à área, e você não consegue chegar à essência deste conhecimento. Quer dizer, se você não entende o que é um arquivo em 4:4:4, tudo se complica. Então, estes achismos precisam ser colocados pra trás, e você precisa formar de maneira ampla. Não é apenas uma questão de obras, mas de entender de documentação, gestão, pesquisa, uma série enorme de coisas que precisam de profissionais integrados para dar conta de tudo aquilo. Enfim, as três propostas maiores foram estas, mas é um início, é um processo longo, não é algo que acontece de uma hora para outra. Inclusive porque a natureza da preservação é trabalhar no tempo. As coisas precisam durar no tempo, e elas levam muito tempo para serem preservadas em sua forma adequada. E é um processo dinâmico.

Fabian Cantieri: Eu gostaria, agora, de retomar uma questão que você havia colocado em sua antiga entrevista para a Revista Contracampo, em 2000, de modo a termos um balanço de o que você considera que mudou, avançou ou, mesmo, piorou nestes últimos doze anos. “O Estado Brasileiro continua distante do universo da preservação de filmes”?

Ele se aproximou agora. A ABPA não só se colocou como interlocutora com o Minc, como se tornou parceira do Ministério da Cultura. Mas, do ponto de vista da sociedade e, sobretudo, do ponto de vista da classe cinematográfica, não se alterou praticamente nada. Nem a sociedade, através, por exemplo, de mecanismos de lei de incentivo, veio a público apoiar projetos mais significativos de preservação audiovisual, de difusão audiovisual, de restauração audiovisual – praticamente todos os projetos de restauração que existiram no Brasil foram via Petrobras, ou seja, não existe uma atuação da iniciativa privada neste campo. E eu acho que a iniciativa privada está se mostrando cega ao fato de que, hoje, as coisas se dão basicamente através do texto audiovisual. Tudo o que está acontecendo no Brasil neste momento passa, concretamente, por arquivos de áudio e de imagem em movimento. Neste sentido, atualmente, a comunicação básica, não só brasileira como da humanidade, ela é audiovisual. Então, investir na preservação desta expressão é investir na cultura, no conhecimento, no desenvolvimento, é dar hoje a prioridade que já se deu no passado à pirâmide, ao quadro de Picasso, ao texto de Dante, do Camões, do Machado, etc. Cada um teve seu tempo, cada um teve sua natureza. Mas, hoje, o que é fundamental para a existência mesmo das sociedades é a produção audiovisual, é o texto audiovisual, é o artefato audiovisual. A iniciativa privada não acordou para a ideia de preservar este material, e vislumbrar nele uma verdadeira fortuna cultural.

E a classe cinematográfica continua com sua atitude clássica de só pensar na produção. Eventualmente, quando menciona a preservação, menciona sem qualquer conexão mais saliente, com uma luta direta por isso. Ou seja, eles apoiam formalmente, apoiam conceitualmente, mas não apoiam politicamente. Ao contrário, na hora de dividir o bolo dos recursos, a preservação vai ficar de fora. Neste sentido, a mentalidade que existia 12 anos atrás continua a mesma. E vai levar, talvez, muito tempo para a gente mudar isto. A classe dos preservadores esperou, durante muito tempo, que os cineastas ganhassem esta consciência. Hoje em dia, ela não espera mais. Ela vai em busca ali dos seus direitos, dos seus recursos. Ela acordou para o fato de que a cadeia de produção hoje em dia incorpora de forma muito direta material de preservação. A maior parte de documentários feitos atualmente utiliza materiais de arquivos. Então, para que estes materiais existam e estejam disponíveis para a produção nova, é preciso cuidar dos arquivos. Como os cineastas não cuidam, os profissionais destes arquivos resolveram cuidar. Neste sentido, a Carta de Ouro Preto é bem clara: a ABPA luta por recursos que existem publicamente disponíveis para a cadeia produtiva do audiovisual. A cadeia produtiva do audiovisual inclui a preservação audiovisual. Então, os recursos agora precisam ser redesenhados e repartidos entre os diferentes setores da produção.

O que me leva também a pensar a questão do Facebook e do YouTube. De que você tem muita coisa importante sendo discutida ali e que não é preservado, ou que tem uma natureza de preservação diferenciada.

Aí entra uma discussão que é muito curiosa, que é a própria ideia de preservação. A ideia de preservação significa que você tornou significativo algum elemento da vida social, e, ao perceber aquele elemento como significativo, você, para ter acesso a ele, acesso no tempo – ou seja, fazê-lo durar -, acesso histórico – você compreender a natureza daquele artefato -, e acesso tecnológico – você ter capacidade de fazê-lo se multiplicar – significa ter a atitude de tirá-lo do contexto original, e preservá-lo como um objeto significativo. Mal comparando, foi isso o que os colecionadores de filmes fizeram lá no início do século passado, ao perceberem que não se tratava só de entretenimento, não era só lazer, não era só diversão, era alguma coisa que precisava sobreviver ao tempo. Fosse por um deleite pessoal, fosse por um registro histórico, fosse porque eventualmente aquilo fosse arte. Naquele momento, na década de 1910, 1920, 1930, poucas pessoas no mundo tinham esta reflexão, tinham esta inclinação, e fizeram este gesto. Inclusive, 100% dos preservadores iniciais não foram realizadores. São pessoas de fora da cadeia produtiva. São pessoas que enxergaram de fora que aquele objeto era significativo. E tiraram o objeto de dentro de sua cadeia natural, e deram a ele um outro status, o status de objeto preservado.

Mal comparando, o que você teria que fazer para o mundo digital, e, dentro deste mundo digital, para a internet, é ter a mesma atitude. Mas, a rigor, o que aconteceu no passado deveria estar acontecendo aqui. Você não pode preservar um objeto dentro de seu espaço natural, seu habitat, você tem que tirar ele dali. Então, quando começou o mundo da computação, tinha esta dimensão de que se podia guardar suas coisas na sua própria casa. Mas a lógica deste mundo foi se desviando deste princípio básico, e foi criando a ideia de que você pode guardar no mundo virtual para sempre. Este mundo virtual é um conjunto de empresas, poucas, que, num primeiro momento, ofereceram este serviço gratuitamente, agora já estão cobrando, e que acabam assumindo um poder extraordinário sobre isto. Não por acaso todas são americanas, ou estadunidenses. Eu acho que agora, com tudo o que está acontecendo no mundo, você vai ter a noção de que quem vai ficar com tudo isto, com todos estes registros, vai ser aquele que retirá-lo de seu habitat, ou seja, aquele que ficou baixando do YouTube, baixando do Facebook e guardando em seu HD, em casa. Que ficou registrando isto em fita, em LTO, em qualquer formato. Ficou constituindo um acervo próprio.

Então, por que surgiram as instituições de guarda cultural? Por que surgiu a legislação do depósito legal? Por que, na verdade você precisa tirar esses artefatos do espaço natural de criação? Primeiro, porque as empresas criadoras destes artefatos não duram para sempre. O Estado e a Sociedade, em princípio, duram para sempre. Segundo porque muitos destes serviços são considerados de utilidade pública, e são viabilizados por uma concessão pública. Por exemplo, televisão e internet são concessões públicas. Se são concessões públicas, operadas por empresas privadas, por que a sociedade não tem direito ao acesso a essa memória produzida a partir de uma concessão pública?

A maior questão neste sentido não é com o Facebook, etc, mas sim com as televisões brasileiras. A memória da televisão brasileira se perdeu em seus primeiros vinte anos. Das décadas de 1950 a 1960, sobrou muito pouca coisa. A partir de 1970, começou-se a guardar, mas sempre apagando muita coisa. Mas sem acesso público, permanece no acervo privado da empresa e, quando a empresa acaba, o acervo cai em limbo, como aconteceu com a TV Manchete. E como se resolveu isto fora do Brasil? O Instituto do Audivisual da França, ele grava, por ele mesmo, todas as irradiações públicas de televisão, aberta ou fechada, do país. E, assim, constitui um acervo que dá acesso à população. Por que ele pode fazer isso? Porque é uma concessão do Estado Francês. A internet seria, a rigor, a mesma coisa.

Thiago Brito: Só tenho mais uma questão para você, Hernani. Pelo que você contou, me pareceu que houve uma modificação de contexto histórico forte que catapultou um pouco a ABPA e começou a dar os primeiros passos reais em direção a uma Política Pública de Preservação. Ao mesmo tempo, em sua fala, a questão da educação e da conscientização social da prática da preservação tomaram a dianteira como grandes questões a serem resolvidas.

Pois é, o mundo não pára. De uma hora para outra, todos os nossos problemas anteriores da Cine OP 2012 se viram reconfigurados completamente. Agora, é preciso olhar pra frente e criar o futuro.

* Fotos por Universo Produção.

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