Às vésperas do carnaval de Olinda, algumas gatas se reúnem para assistir a Ritual dos Sádicos/O Despertar da Besta (1970), a obra censurada de José Mojica Marins, por oportunidade de sua morte. Depois de agonizarem por uma hora e meia, já podem considerar abertas as portas do carnaval. Alguns meses após o ocorrido, duas delas ressuscitam para mancomunar esta crítica do filme que você está prestes a encarnar.
Em Ritual dos Sádicos, atos de perversão praticados dentro do submundo paulista corroem a estabilidade do tecido social e, atormentado por essa questão, um psiquiatra desenvolve sua pesquisa. Ele recruta um grupo de usuários dos mais diferentes estratos sociais para testar suas reações mentais sob o efeito de LSD, enquanto os expõe a uma fotografia do personagem Zé do Caixão, buscando entender, assim, se há relação entre o consumo dos “tóxicos”’ e condutas desviantes. O experimento escandaliza a intelligentsia local, e o ‘doutor’ então consente em participar do programa “À Luz da Verdade”, onde defende, perante uma roda de intelectuais, acompanhado por José Mojica, a sua estranha pesquisa.
Não mais estranha que você.
Apesar da estrutura-base da obra se amparar entre dois polos a princípio diametralmente opostos – portanto correspondentes -, a relação que o filme trava com ambos não se iguala. Enquanto aos especialistas é dada apenas a mesa, iluminada num contraste marcado entre claro e escuro – talvez só assim possamos enxergar a bendita luz da verdade -, aos sádicos estão reservadas as operações formais mais inventivas do repertório de Mojica, que vão ao ápice nas sequências coloridas da viagem de LSD, perto do final do filme.
Ritual adota para si um código que não pode ser diferente desse descrito acima: se divide entre o torpor erótico diante das imagens de degradação e o juízo moral – representado pelos especialistas, sempre dispostos a oferecer interpretações para cada uma das sequências de desbunde que nós vemos. A mesa redonda se insinua como um pano de fundo, costura narradora entre as ações. Mas, ao que parece, as ações é que são produtoras da mesa redonda. Como se o impulso de um inconsciente social modulasse a maneira da razão se forjar, e não o inverso. O filme nos oferece a encarnação das cenas de sadismo, com todo o tesão em fazê-lo, tornando-as vetores da nossa relação com os intérpretes da TV.
Entre uma e outra instância, o engajamento das espectadoras com as imagens é tensionado a partir de uma relação simbiótica que amalgama juízo, desejo, distância e fricção. Perseguindo um vetor de imundices que tanto põe em risco a boa ordem social, quanto povoam o imaginário comum desta mesma, testa em nós o estímulo causado por diferentes gradações desse erotismo/sadismo.
Como medir a relação entre atração e repulsa que o filme constrói com seus exemplos?
Quem sabe num jogo entre a interpenetração dos dois. Boa parte das encenações brincam com a extração da delícia no abjeto, e a brincadeira é estragada por quem não se dispõe a viver os dois. Quando Jesus aparece naquela orgia – coreografada pela montagem sonora, pelo fazer em bando – o ritual acaba, se torna violência sem ambivalência e a agência da garota se evapora.
Aqui eu me retiro.
Por mais estranho que pareça, respiramos no Ritual dos sádicos um espaço que as imagens oferecem para nos posicionarmos diante daquilo que vimos, por meio da quebra cíclica com a esperança de satisfação – do medo ou do tesão. O espaço que temos para investir um posicionamento, contudo, já nasce estranhado pela desconfiança que o filme nos lança em relação ao debate racional de ideias organizado à luz do claro-escuro.
Em algum momento na mesa redonda, os homens sentados reprimem o médico dizendo: “estamos falando de tóxicos e não das feridas do mundo”. Talvez o Ritual até quisesse ser só o entorpecimento dos tóxicos, mas tem algo de nascer no Brasil, de fazer cinema aqui e esbarrar tanto na eztetyka da fome quanto no sucesso do Chacrinha até que, quando nos damos conta, os atores-cobaias foram parar em um espetáculo do Teatro Oficina.
“Eu moro do Castelo dos Horrores / Não tenho medo de assombração”, diz a marchinha de carnaval que surgiu em 1969, em homenagem ao Mojica-do-Caixão.
Trata-se de um terror que se fermentou no solo brasileiro, cujo personagem principal é o coveiro chamado Seu Zé do Caixão, em busca “da mulher perfeita para fazer seu filho”. Desfigura, assim, o macho do status-quo de maneiras muito diferentes do que se pensarmos a estratégia a partir da qual o humor se coloca no terror britânico, por exemplo, como no Homem de Palha (Robin Hardy, 1973). Em Mojica as tais feridas do mundo se incorporam à carne do filme. A reflexividade, o problema-presença da persona Zé do Caixão, os embates entre razão e delírio, sendo um a saúde do outro, acontecem na engrenagem da obra, não são apenas tema. Neste sentido, ele jamais poderia ter a mesma polidez que O Homem de Palha.
Convidado a outro programa de televisão, um tribunal em horário nobre no qual o autor é réu, Mojica reproduz um material cuja asfixia se assemelha às sequências mais sufocantes em que o sadismo devora o tesão. José Mojica: culpado ou inocente? Habitamos agora a espectatorialidade do programa de auditório, impelidas a olhar em retrospecto nossa própria vontade de estabelecer um veredicto sobre o filme e seu suposto autor. A tensão se desafoga, suas respostas nos encaram de volta, Adoniran Barbosa absolve Mojica. Assistindo essa edição do programa de auditório, o cientista tem a ideia de realizar a experiência entre o grupo de sádicos-usuários com os filmes de Mojica.
“Fazer filme no Brasil é como construir um foguete para ir à lua”, afirma o réu em sua defesa.
Nesse momento, mais especificamente, é flagrante o uso da mídia como a matéria mesma do terror à brasileira. As tais imagens televisivas são recicladas de um programa da TV Record chamado “Quem Tem Medo da Verdade?”, no qual Mojica e muitos outros artistas aceitavam participar de um julgamento em epifania sensacionalista. A polêmica rasteira suscitada nos programas era a receita de uma simpatia que o réu ganharia aos olhos do público.
Talvez ciência seja também sobre pornografia, assim como os tribunais.
Parece ser exatamente aí que reside a poética do filme, que toma para si a licença de orquestrar anarquicamente – nunca inconsequentemente -, a matéria-terror que paira no lugar-comum, como quem escreve uma estória de cinema. Não parece dispensável lembrar que este comum era, naquele momento, a matéria da ética – ou poderia dizer moral e ordem cívica – do regime militar brasileiro.
Ame-o ou deixe-o. Culpado e inocente.
Não há um ponto estável onde a espectadora vá ancorar seu olhar, e sim uma série de camadas espelhadas no seu próprio jogo do contraditório. Não se delimita o par sujeição/ação na primeira cena em que uma mulher na sala é observada por um grupo de homens. Diante do grupo sentado, ela se levanta e, ao se levantar, os encara. Alternam-se planos de olhos, deles em direção a ela e às fotografias de outras mulheres pregadas na parede. O encarar dela na direção deles se confunde com um encarar em direção à câmera, o tempo dos cortes é ritmado pelo disco que ela bota pra tocar – a canção “Guerra” de Kalafe e a Turma. Enquanto seu corpo performa os gestos que aqueles olhares desejam, ele os mantém, ao mesmo tempo, como senhores e reféns da coreografia. É uma sequência emblemática para abrir o Ritual, considerando o conjunto das outras sequências-fragmentos em que corpos femininos serão violentados ao limite.
Na altivez do seu olhar em close-up, um algo-mais.
A masculinidade reencarnada se exibe numa performance cuja pedagogia de apreensão é grupal, entre homens. As cenas em que eles se sentam ao redor de uma mulher reproduzem a atmosfera da primeira ida ao prostíbulo, o personagem do cara viciado em batê-las convoca os rituais quase sacralizados que rondam a formação do ser homem. O tesão em ver o tesão do outro brother:
A escopofilia de uma tradição.
Ao insistir no retorno dessas encenações, o filme revela um nervo exposto das relações que extrapolam a própria tela: ele contorce-se sob uma problemática de gênero pouco sublinhada no cinema brasileiro de então – ou pelo menos no dito engajado. Quase colateralmente, o terror de Mojica vai encontrar sua face mais aguda na tortura infligida a corpos femininos.
Mergulhemos, pois, em nossa bacia de sangue.
Abandonados os jogos de defesa perante o júri, já desistimos de emitir um parecer totalizante. Ainda restamos, contudo, muito próximas da tela, tocando as ações que vemos – chutes, estupro e agonias.
Entre as imagens que violam, ressona o horror cotidiano de habitar a posição de vulnerabilidade posta por um imaginário social que nos inventa no feminino. Nesse sentido, experimentar um alto grau de filiação com os corpos agredidos pode bem desafiar a entrega à crise da espectatorialidade que a obra de Mojica nos convoca – hora de viver aquele prazer que, como Julia Noá percebeu, “se manifesta na possibilidade de cair”? A rejeição perante o que se vê requer uma postura ativa de quem o experimenta. Pois a tentação em declará-lo culpado é o diabo. Se olharmos de novo, no entanto, a ciência, assim como os tribunais, formula uma pornografia que tenta reinscrever o corpo violado na condição de tutelado – num jogo externo que atribui assimetricamente condenações e traumas.
“Manter-se/tornar-se” por Regina Parra.
O espelhamento chega a ser físico – lembremos das imagens de Trika ou do momento em que a montagem eisensteniana atualiza o patrão como cachorro que morde a buceta da moça. Nosso impulso diante da cena foi fechar as pernas em agonia. Ainda assim, uma pílula de bem-estar teria efeito curto e a punição nos alienaria novamente.
A culpa das imagens solapa, já não pega.
Para continuarmos, a tática consiste em despistar a culpa por todas as nossas veredas, uma bela ferida entre as pernas. Poderia a recusa não ser uma venda para os olhos, mas um espinho para a pele? Na medida em que desconfiamos da racionalidade como guia e invocamos ferramentas mais físicas – toda coragem é – como companhia, faz bem criar pactos de aliança para o correr do perigo, com o sobrenatural, com o diabo ou com a gata ao lado.
Mas onde está o nosso horror?
Quando ele encarna o posto de vilão macabro e condutor dos pesadelos lisérgicos, no fragmento em cores do filme, a voz entoada como quem coordena uma liturgia eclesiástica diz: “É uma dimensão além do que o homem pode conceber mentalmente.” É que não foram feitas de lógica as feridas do mundo. Muito menos a razão colonizadora que as justifica. Ambas são compostas de muito delírio. E entoando dessa forma, o arqui-real padre escancara a prece como um cântico de ode ao trauma e roga: “A mulher é colocada com justiça no seu devido lugar, dos primórdios até o fim dos séculos.”
Amém.
Figurando uma violência que também nos é íntima, ele espanta e gera repulsa. Quando redobra a aposta, torna estranha a própria repulsa que criou, implodindo o circuito que faria plausível as afirmações discursivas de misoginia a partir do interior do próprio monstro. A autoironia da dupla persona Mojica/Zé-do-Caixão, presente nos comentários do filme sobre si mesmo, sempre grandiloquentes, vem finalmente deleitar as sádicas: é o algoz posto em cheque, expondo o ridículo na ficção do Autor. Dentro dessa projeção tão apaixonada que é a figura masculina do criador; nós, as que calamos, as que somos escritas, desvendadas ou filmadas, gargalhamos junto com Mojica e de Mojica.
Haja tesão para aplaudir um artista maldito.
Novamente, parece falar mais alto uma certa fúria do filme que desautoriza a legitimidade de todo enunciado que ele mesmo venha a produzir. O mundo “além do que a razão pode conceber” gesta os discursos que a razão concebeu até aqui. O ateu mais devoto da fé, o imoral mais moralizante, o vilão mais ultrajante ou o autor mais genial do mundo, todos reunidos na forma como a Besta narra a si própria ao longo da obra, obtêm a mesma profundidade que uma tela de cinema: superfície.
Como o LSD, pode provocar tanto a paranoia quanto a sensação de dissolução do ego.
Entre ser aprovado na mesa redonda dos caras, porventura cineastas fora do filme, e no crivo dos censores ou dos jurados da televisão, o filme tem que se torcer e não deixa de figurar (e deformar) o gesto de tantas formas quanto precisar. Ao final, o experimento é juridicamente perdoado em função da necessidade de comprovação da tese. Somos informadas que a tal substância desinibidora nunca foi LSD, era apenas água destilada. Mas não antes das imagens se colorirem e a pirotecnia, a lisergia, fazerem sua festa.
Encerra-se, assim, um último experimento da obra – as espectadoras que as imagens convocaram. Nessa altura, elas já estão na ponta do sofá, entre o pacto e o laboratório, perturbadas pelo fervo e o filme que acabou. Um mundo ferido treme do lado de fora, não mais estranho que elas mesmas. Sobem, em estado de guerra, a ladeira em estado de graça. Coragem, que amanhã é carnaval.
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