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O autor é uma ficção? (trecho do livro “O autor no cinema”)

Este texto é parte da reedição recente do livro O autor no cinema, de Jean-Claude Bernardet, que conta com a colaboração de Francis Vogner dos Reis comentando de que forma sobrevivem algumas leituras de Bernardet. A parte aqui publicada corresponde aos itens 5 e 6 no capítulo “O autor é uma ficção?”, entre as páginas 204 e 212 da edição de 2018 pelas Edições Sesc. Nesse capítulo do livro, Francis comenta possibilidades de pensar formas de ser autor no contexto do cinema brasileiro, examinando os exemplos de Nelson Pereira dos Santos e José Mojica Marins. No trecho aqui republicado, reproduzimos a porção que se dedica ao trabalho de Mojica Marins.


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1. O autor é uma ficção assombrada

 

“Quem sou eu, não interessa, como também não interessa quem é você, ou melhor, não interessa quem somos. Na realidade o que importa é saber o que somos. Não se dê o trabalho de pensar porque a conclusão seria: a loucura. O final de tudo, para o início de nada”.

Zé do Caixão recita sua filosofia fundamental em “À Meia Noite Levarei a Sua Alma”

Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira afirmavam repetidamente em Horror Palace Hotel (Jairo Ferreira, 1978) que José Mojica Marins era “o gênio total”. Não só os cineastas do Cinema Marginal, mas também alguns do Cinema Novo (Gustavo Dahl e Cacá Diegues) acreditavam na originalidade e autenticidade do criador Mojica Marins e da criatura Zé do Caixão.

Declarar Mojica um gênio era reconhecer uma obra única, infame, espontânea, iconoclasta, bárbara, que não dissimulava a produção barata e precária, uma criação livre, mas cheia de contradições, uma súmula da revanche (do revanchismo do lumpesinato, diria Sganzerla) do homem servil e recalcado. O Zé do Caixão, autodestrutivo, investia contra os poderes dos interiores do Brasil, lugares onde quem manda é o padre e o doutor. Um manancial de ideias apavorantes, grotescas e com uma maravilhosa petulância de quem submete o seu material à agressividade criativa, tanto no artesanato (sequências em negativo, os riscos feitos sobre a película para representar trovões) quanto no cálculo do impacto, grosso e direto (Zé come uma perna de carneiro em frente a uma procissão de Sexta-Feira Santa). Em Mojica Marins, Sganzerla chamava a atenção para o gênio intuitivo como uma característica brasileira. Afirmar o gênio de José Mojica Marins era colocar no centro das discussões sobre o cinema um artista distinto do autor europeu. Um gênio original, “bárbaro e nosso” (Oswald de Andrade). A pergunta de Sganzerla em O Bandido da Luz Vermelha (“um gênio ou uma besta?”) é também um anti-teorema que serve a Mojica Marins. Falar em gênio no Brasil era se perguntar se na verdade este não é uma besta. É uma pergunta que não será respondida. Ela é a própria definição provocativa.

José Mojica Marins é a definição mais interessante e incompleta (talvez essa seja mesmo a sua natureza) do “autor” no cinema moderno brasileiro que buscava afirmar o criador original brasileiro distinto do europeu – instintivo e alheio às tradições de escolas estéticas. Era uma recusa à colonização da inteligência. Uma recusa, um ataque e uma afirmação categórica e axiomática, provocativa e polêmica, que se recusava a se assentar em definições mais ortodoxas e explicativas. Não se queria provar a tese do “gênio” (da besta?), mas sugerir radicalidade. O autor Mojica era a arte livre que agredia os constrangimentos da subjetividade colonizada.

O diretor José Mojica Marins é normalmente confundido com sua criação, o Zé do Caixão, porque fora dos filmes o personagem rendeu outros produtos: quadrinhos, livros e até uma obscura marchinha de carnaval, “O Samba do Castelo dos Horrores” (“…eu moro no castelo dos horrores, não tenho medo de assombração… Oooohhh, eu sou o Zé do Caixão”). Ele era uma mistura de Orson Welles e Chacrinha. Um artista do século XX, popular, do rádio, da imagem midiática, que cresceu nos flancos da indústria cultural. Memória do circo paupérrimo, do “causo” interiorano e do medo do inferno. Homem de mídia, Mojica Marins encarnou o personagem também em eventos e programas de televisão e adotou, verdadeiramente, as unhas grandes que quase chegaram a atrofiar seus dedos. A sua criação em parceria com o roteirista e romancista Rubens Francisco Lucchetti se tornou popular e mais conhecida do que o próprio diretor dos filmes que lhe deram vida. Todos conhecem o Zé do Caixão, ainda que não tenham visto os filmes da trilogia protagonizada pelo personagem/ator e dirigida pelo diretor. O autor brasileiro defendido pelos cineastas e críticos marginais é ao mesmo tempo um poeta maldito e popular. Coisa rara. Esse autor é o oposto daquele defendido com critérios mais convencionais por Rubem Biáfora, Moniz Vianna, B.J. Duarte, entre outros. Se aproxima mais do autor preconizado pelo Cinema Novo, porque ele não é exatamente um artesão (ainda que tenha feito filmes por encomenda e de diversos gêneros), mas um criador mais radical que trabalha a partir do inconsciente do subdesenvolvimento. Ou seja: ele estaria na verdade para além do “autor consciente” do Cinema Novo.

Além da trilogia composta por À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), Esta Noite Encarnarei em Teu Cadáver (1967) e A Encarnação do Demônio (2008), o personagem aparece em O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), Ritual dos Sádicos/O Despertar da Besta (1970) e Exorcismo Negro (1974).

Cada filme de Mojica com Zé do Caixão (como protagonista ou “assombração”) é um caso interessante e particular. Entre eles, Exorcismo Negro (em que o Zé do Caixão é uma “assombração”) se destaca, porque é, dentre todos eles, o que confronta criador e criatura. O autor aqui se torna o tema e é muito curiosa a sua caracterização, porque diverge totalmente do mito do gênio total.

Exorcismo Negro é o filme dirigido por José Mojica Marins que contou com mais recursos até então. Foi produzido pela Cinedistri de Aníbal Massaini Neto, que se interessou por Mojica Marins depois da homenagem legitimadora que este teve na França. O produtor queria fazer um filme para pegar carona no sucesso de O Exorcista, de William Friedkin. Com um elenco onde se destacam, além do próprio Mojica Marins no papel principal, Jofre Soares, Adriano Stuart e Georgia Gomide, é notadamente uma produção mais cara, em que a estratégia do choque a partir de imagens terríveis é menos frequente e dá lugar a uma atmosfera solar que lembra um pouco o horror de estúdios iluminados da produtora inglesa Hammer. É o filme mais climático do diretor e, num aspecto industrial, o que tem melhor acabamento.

O filme foi rejeitado por parte da crítica, que agora cobrava do diretor a tosqueira exploitation segundo a qual ele foi consagrado como autor radical e “autêntico”. A sua “autenticidade”, a essa altura, já não era mais só valorização daquilo que lhe era próprio como artista, mas uma domesticação do pitoresco, do exótico. É como se a pecha de gênio rústico e primitivo virasse mistificação. O livro Maldito, de Ivan Finotti e André Barcinski, colhe alguns desses depoimentos na imprensa. Agora ele estava sendo rejeitado por “não se colocar no seu lugar”. Onézio de Paiva, em Última Hora, lhe cobra coerência em seus métodos de autor:

Primitivo, rústico e intuitivo, Mojica parece mais à vontade e criativo quando trabalha em condições precárias – principalmente se não dispõe de recursos para realizar sequer uma cenografia de médio nível artístico, pois, paradoxalmente que seja, ele respira melhor num meio de escassez, pobreza e de ignorância – elementos que lhe permitem traduzir, conscientemente ou não, certos aspectos da miséria brasileira”.

As defesas do “gênio” único de Mojica Marins, defendido visceralmente como um artista da contracorrente, se transformaram-se num escaninho que neutralizava a provocação de sua obra, transformando-a em folclore urbano. Leon Cakoff, no Diário da Noite, critica o aburguesamento de Mojica Marins, que perde com seu sucesso internacional suas feições mais genuínas.

Para o ator, é o personagem que se internacionaliza. Para o espectador mais atento, novos sintomas de aculturação que já faz algum tempo vêm corroendo aspectos relevantes da cultura nacional”.

Quando Leon Cakoff rejeita a provisória mudança de Mojica em nome da perda da “cultura nacional”, não sabemos se lamentamos ou comemoramos. Em caso de se lamentar, o motivo seria o enfraquecimento da originalidade do autor, cooptado pelo gosto estrangeiro; em caso de se comemorar, seria porque Mojica não responderia mais às expectativas culturalistas do oficialato.

As reações de parte relevante da crítica de rotina dos jornais a Exorcismo Negro mostram que o autor José Mojica Marins foi integrado a um cânone de segunda linha e domesticado como patrimônio da cultura nacional. Domesticado e mistificado, perde o poder de provocação desejado pelos seus defensores mais entusiasmados no fim dos anos 1960. De gênio-besta que violentava o conjunto de valores estéticos e tinha uma centralidade como cineasta para alguns diretores e críticos de vanguarda, foi enquadrado como diretor com “talento primitivo” do cinema de horror nacional. A adesão à besta foi equivalente a acorrentar a fera e serrar seus dentes.

Quando um crítico escreve que “acabou o charme dos cenários de papelão e a graça do barbudo de capa preta saltitando” podemos considerar que o precário e o subdesenvolvimento viraram fetiche. Isso significa o quê? Passada sua valorização de vanguarda, Mojica Marins foi promovido a ridículo integrado? Ou ele estava sendo vítima da mediocridade crítica? A segunda hipótese talvez seja a verdadeira. Nesse caso, transformá-lo em um autor “mestre do cinema de horror nacional” com características de estilo pessoal amparadas na precariedade é desqualificá-lo. O puxão de orelha em Mojica Marins não deixava de dissimular um elitismo empedernido. Escrever que o valor está no “charme” das florestas de papelão é relegá-lo ao anedotário do subdesenvolvimento. O valor estava no “charme” das florestas de papelão ou na conjugação entre o artifício pobre e a megalomania que nos dava a exata estatura do personagem de Zé do Caixão e das ambições de seu diretor? Vemos que a preguiça intelectual, comum na crítica, anda de mãos dadas com a má-fé.

O autor Mojica Marins se tornou um problema para si próprio. Defini-lo com muita precisão foi equivalente a “colocá-lo no seu lugar”. O autor perdeu o enigma que o constituía e nos desafiava. “Um gênio ou uma besta?”: essa pergunta deixou de ser a fundamental pergunta sem resposta. Mojica Marins virou um autor convencional e deveria pagar por isso. Onde já se viu virar autor e perder a coerência?: Pecado imperdoável.

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2. Fundido a cuca legal

No início de Exorcismo Negro, José Mojica Marins concede uma entrevista a repórteres sobre a homenagem que recebeu na Europa. Os repórteres perguntam: “quem é mais importante, Zé do Caixão ou Zé Mojica Marins?” E o diretor diz que ele mesmo é mais importante, porque Zé do Caixão não existe. Nesse momento, um refletor queima. Inicia-se um conflito entre criador e criatura

Qual não é a nossa surpresa quando a caracterização do autor Mojica Marins é uma figura de um intelectual burguês, fumando cachimbo, jogando xadrez, citando Conan Doyle, conversando sobre parapsicologia, vestindo ternos bem cortados, bebendo uísque, caminhando à beira do lago de uma mansão campestre rodeada de margaridas, enquanto elucubra sobre as angústias da criação artística. Detalhe importante: a voz do seu personagem é a de um dublador de fala fleumática e obedecendo à chamada norma culta da linguagem, quando sabemos que Mojica Marins se expressa diferente desse padrão.

A representação do diretor-autor é mais semelhante ao estereótipo do artista das classes dominantes do que da imagem criada por Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira em suas críticas. A representação é desconcertante: é a figura do herói intelectual do romance gótico e não a de um cineasta brasileiro “bárbaro e nosso”. Será que aqui sentimos a mão do roteirista Rubens Lucchetti, escritor profundamente influenciado pela literatura gótica? Provavelmente. Por outro lado, é interessante perceber que essa figura, essa autoimagem de Mojica Marins, não era também tão contrastante com a figura real: nas fotos da época ele está geralmente bem vestido, de terno, cabelos penteados e barba aparada, o oposto de, por exemplo, Ozualdo Candeias ou mesmo Glauber Rocha. Ele era descrito como um gentleman por colegas como Carlos Reichenbach. Ou seja: há um desacordo entre o autor-modelo construído pelos cineastas marginais, o Mojica Marins da realidade e o personagem do autor representado no filme.

Acontece que a imagem que vemos em Exorcismo Negro é a do intelectual sofisticado e cheio de virtudes, um bom cristão burguês. O filme é uma espécie de parábola onde a criação triunfa sobre o autor.

Nesse ambiente bucólico, no seio dessa família conservadora e feliz que reúne avó, pais e as três filhas de idades diferentes (a primogênita pretende se casar em breve), Mojica encontra guarida para refletir sobre seu próximo filme. Estamos às vésperas do natal, com árvore enfeitada e bons votos de futuro. Subitamente o vovô, interpretado por Jofre Soares, é possuído por um espírito maligno. De olhos vermelhos, grita impropérios com voz grave, retorce-se e baba. A cena é filmada com uma grande angular que distorce a imagem, coincidentemente ou não, semelhante à de O Amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos, 1974) em que Jofre Soares também é possuído. Porém, as implicações são bem diferentes. À cena do avô possuído seguem-se outras com a filha do meio de olhos vermelhos rasgando uma pintura religiosa na parede; da irmã mais velha nua se arranhando na cama; do namorado dela possuído lutando fisicamente com Mojica Marins, e do avô, novamente, cortando os pulsos e deixando cair seu sangue nas flores brancas. A ideia de um outro (os espíritos malignos) tomando o corpo dos membros da família parece sugerir que algo alheio à família tenta destruir a imagem cândida e harmoniosa que vemos, colocando-os em risco e proferindo sacrilégios. Essa sequência de possessões é colateral às assombrações que intimidam Mojica Marins como tridentes no espelho, livros lançados sobre ele, visão de cobras na árvore de natal – fatos que estabelecem aos poucos um clima terrificante em que percebemos que a família guarda um segredo: no passado a mãe fez um acordo com uma bruxa para ter uma filha. A bruxa deu à mulher sua própria filha com a condição de que a garota se casasse com quem a bruxa determinasse. Quando ela está prestes a se casar com um rapaz, a bruxa evoca Zé do Caixão para que ele ajude a destruir o casamento da moça e faça com que ela se case com o filho do diabo.

A família, que aparentemente é exemplo de conduta moral, foi construída a partir de um acordo com o mal. Mojica, que renega sua criação por ser um homem puro de moral (suas virtudes são notórias), tenta destruir Zé do Caixão, apelando para uma cruz fajuta feita com um pedaço de metal retorcido. A cena da missa negra e do casamento é o grande momento. A representação da família bela e moral dá lugar a um ritual limítrofe entre satanismo performático e o teatro Grand Guignol, onde a família e os satanistas comungam em púrpura e vermelho. Uma inversão: atrás da aparência da realidade civilizada, o real é o espetáculo de horror, é o tensionamento do simbólico e a exasperação do recalcado.

No fim, quando Mojica Marins aparentemente derrota Zé do Caixão, tudo volta à aparente normalidade com a família no natal em volta da árvore enfeitada. Repentinamente vemos o rosto da criança e os gritos de horror dos seus entes queridos. O criador Mojica Marins desaparece do filme e vemos no fundo do olho da garota o Zé do Caixão, que persiste, resiste e sobrevive.

Podemos reconhecer em Exorcismo Negro um filme muito mais inteligente e complicado do que seus críticos puderam fazer crer. O segredo do filme não está só no embate entre o autor e sua criação, mas também em como o mundo do filme se constitui na sua relação entre a aparência e a verdade. A aparência da realidade (calcada no escancaramento das virtudes, na inocência natural, na performance e nos rituais de boa etiqueta) seria a mentira; o delírio (a profanação simbólica das pulsões destrutivas sublimadas pelo social), a verdade. O personagem-autor Mojica Marins estaria nos domínios da realidade (da mentira), o Zé do Caixão no território do delírio (da verdade).

Zé do Caixão não é o mal em si, mas uma representação plena. Não é o autor, mas com ele se confunde e a ele supera. Portanto, o autor no personagem de Mojica Marins em Exorcismo Negro seria uma ficção limitada, e o personagem Zé do Caixão, um arquétipo destruidor do superego. É ele, o Zé do Caixão, não o sujeito, José Mojica Marins, que permanece – ele é a imagem verdadeira.


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