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Olho para todos os lados e vejo sexo e sangue

  1. Delírio

O gozo em José Mojica Marins é sanguinolento. O desejo é carnal no sentido mais literal possível: seus personagens transam e se devoram. A ambiguidade lexical de “comer” é, na filmografia dele, uma espécie de mantra que nos conduz sombra adentro do seu microcosmo do horror. 

No episódio Ideologia de O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), conhecemos o porão das maldades do médico e professor Oãxiac Odéz, um dos personagens que habita o universo de Marins, que flerta com canibalismo e sadomasoquismo. A realização de um jantar para um casal que deseja conhecer suas teses sobre a primazia do instinto em detrimento da razão é o pretexto de um curta-metragem que pretende, em seus condensados 34 minutos, dar conta não apenas de causar horror mas, fundamentalmente, de ambientar e salientar o aspecto lascivo e controverso de Marins. Como já advertidos pelo título, a gravitação inescapável nos suga Estranho Mundo adentro. 

O casal chega à casa de Oãxiac Odéz – que é, ironicamente, ‘Zé do Caixão’ ao contrário – e pede, enfaticamente, que seja apresentado às provas cabais da tese do professor. Momento iniciático, o casal desce ao porão e se depara com dois corpos desnudos que, deitados sobre uma espécie de cama rija, se beijam ferozmente ao mesmo tempo em que um voyeur dilacera e mastiga pedaços dos corpos-carne em erupção. Seguida dessa primeira aparição, há uma miscelânea de humilhações espetaculares no picadeiro de Odéz: mercúrio fervilhante, agulhas perfurantes, ácidos que deformam e chicotes que açoitam aqueles seres no transe da orgia. O direcionamento ambíguo de Oãxiac, que por vezes está concentrado no casal e, em outras, se volta para nós, seu público, abre para um dos gestos mais saturados na obra de Mojica, que consiste no imiscuir deliberado entre as vítimas e o público. A imagem em primeiríssimo plano de Oãxiac se dirigindo ao casal se funde à imagem de Mojica Marins e nós, por sua vez, nos fundimos com os personagens. É um cinema perigoso, precedido de mensagens de avisos e de “não vejam essa obra!”, e o açoite agridoce de José Mojica Marins castiga incessantemente o espectador – que, avisado, decide prosseguir e, de certa forma, aceita o pacto e compartilha do tesão sadomasoquista.

A certa altura do curta, as cortinas das apresentações macabras se cerram e, de espectador, o casal passa a mártir. Oãxiac Odéz, com assistência de seus servos, enjaula o homem e a mulher e os condiciona a sete dias de tortura e privação. E é no sétimo dia, “dia em que Deus descansa”, que a mulher se rende ao instinto, à sede e bebe uma taça cheia com o sangue do marido. O triunfo do professor é absoluto: ele animaliza, transforma e corrompe qualquer traço de polidez e sociabilidade daqueles que adentram seu mundo amorfo. O epílogo do filme se assenta no banquete com carne humana, no suprassumo da antropofagia voraz. 

Não só Mojica nos coopta para dentro dessas experiências estranhíssimas, como somos também guiados para um caminho de mão única, sem desvios, sem retorno. A curiosidade do casal é também a nossa curiosidade enquanto espectadores ansiosos pelo terror. A convergente posição entre nós e eles é o que nos permite assimilar a grande vontade canibal de José Mojica Marins. Quando Oãxiac toma o casal como vítimas de seu experimento, nós também nos tornamos parte fragilizada e flagelada pelo professor.

A ameaça provocada assalta os espectadores e faz, em especial, do corpo feminino a vítima nua – não apenas dos experimentos como, também, da câmera que a invade junto com os olhares que a vasculham. Se já se inflige sobre os corpos masculinos toda a sorte de torturas, sobre o corpo feminino há, ainda, um adensamento da relação entre dor, sexo e prazer.

Essa operação, da inversão da posição espectatorial para a posição de alvo, alude a uma experiência que talvez seja ímpar ao cinema de Mojica. O espectador está frente a uma obra cinematográfica que requer uma disposição física para enfrentar sua robustez. Os filmes se atiram contra os desavisados, dificultando o desfrute da película no limite do perturbador e do ameaçador. O amálgama radioativo que Mojica realiza entre o cinema-espetáculo e o freakshow catalisa essa experiência torpe do espectador. Os pactos se rompem a todo momento, os andaimes nos quais se busca algum apoio para o visionamento dos filmes de Marins são incrivelmente frágeis, e o prazer se manifesta na possibilidade de cair.

As experiências do terror e do erotismo se fundem na obra de Mojica, que assola o espectador tanto pela violência quanto pela fisicalidade mobilizadas nas duas frentes. A espectatorialidade é, sobretudo, cindida. A violência reside na exposição desses corpos aos martírios executados pelos homens e pela câmera. É uma violência com enquadramento de gênero e que vira o gozo do parceiro que senta-se ao lado na sessão de cinema. Tal gesto sadomasoquista se endereça a um público específico que se regozija com essa mesma violência que açoita o gênero feminino. Existe algo de muito intrincado em como Mojica Marins atiça seu público, provoca desconforto e o faz se deleitar com esse mesmo incômodo. O que para os homens é uma piscada maliciosa, divertida talvez, para mulheres é uma provocação mais séria, imbricamento sujo entre o que mostrar, para que mostrar e como mostrar.

       2.  Selvageria 

Num universo coeso por sua morbidez e uma filmografia que recorre à autorreflexão frequentemente, a obra de José Mojica Marins constitui sua liga com aquilo que mais pulsa no corpo humano: ela é feita de sangue, de carne e de gozo. 

A trilogia de Zé do Caixão na busca da eternização do seu sangue por meio de um filho feito com uma “mulher superiora” (À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), Encarnação do Demônio (2008)) é talvez a síntese desse processo viscoso que ata e ensambla seus filmes. 

José Mojica Marins vive seu clássico personagem Zé do Caixão, e não mais o médico Oãxiac Odéz do filme anteriormente citado. Ele é o demônio tropical, o Drácula caipira conservador, que busca a mulher perfeita, racional, devota ao mito que ele mesmo criou de sua própria superioridade. Ele convence pelo medo e anseia uma mulher que não sinta repulsa pelos atos de violência que cometeu ao longo da vida. 

No primeiro filme da trilogia, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, Zé assassina sua esposa, um estorvo para ele, e depois seu melhor amigo, que é casado com a primeira dessas mulheres-candidatas a serem o útero que carregará seu descendente: Terezinha. Depois de assassinar dois empecilhos para a consagração de seu plano, Zé entra na casa de Terezinha, presenteando-a com um frágil pássaro branco – frágil e desprotegido como sugere ser a própria mulher que ele galanteia. Resistindo ao homem que a deseja, Terezinha é estuprada por Zé. 

A câmera muitas vezes toma o ponto de vista da mulher estuprada, com o homem chegando cada vez mais perto de nós, ocupando todo o espaço da tela. A violência se redireciona, e sua mediação, feita pelo corpo estuprado, se evapora. Nos tornamos a vítima direta dos olhos cheios de veias negras de Zé do Caixão. A presença da mão que se avulta em direção à câmera não é apenas dirigida à personagem, mas é também um gesto de agressividade que rompe com o espetáculo mediado e se transmuta na relação entre Mojica e nós. É um jogo de afastamento e aproximação que envolve o público na sua crueldade, na vontade destrutiva que permeia a existência do protagonista. 

No segundo filme da trilogia, Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver, Zé retorna da sua quase-morte para a cidade, disposto a concretizar o grande feito de sua existência. Nesse filme, ele sequestra seis moças da cidade e as coloca em sua casa, a fim de realizar testes para descobrir qual delas estaria apta a receber o sêmen perfeito em seu útero. Nesse ínterim, o filme já conta com um Zé do Caixão aparelhado, com catacumbas e porões feitos na medida de seus experimentos. A fantasia parece ganhar volume e se consolidar enquanto mitologia no terror. A cada novo filme, Mojica Marins coloca mais um tijolo nesse edifício personalista, tanto no que concerne ao aprofundamento de suas teses de superioridade quanto ao aperfeiçoamento do seu aparato de dominação, principalmente em relação ao espectador.

As seis mulheres que escolhe, jovens e belas, são colocadas em um quarto com camas de dossel, e estão cobertas apenas por uma anágua de seda transparente, deixando seus corpos tenros bastante à mostra – e, de certa maneira, também bastante à vontade. No que concerne ao crescendo da trilogia, me parece que a cada filme as mulheres vão se tornando menos ingênuas e mais imiscuídas do sadomasoquismo de Zé do Caixão. O diálogo entre elas e o protagonista é cada vez mais alucinante e menos maniqueísta. A fagulha do desejo pelo caos e pelo subversivo é instaurada nesse momento.

O primeiro teste realizado nas mulheres capturadas consiste em um ataque de tarântulas. Elas sobem nas camas, no dossel, nos corpos dessas moças. As aranhas passeiam pelos corpos, pisam com suas patinhas asquerosas sobre seios, bundas e barrigas muito bem delineadas. O espectador é mais uma vez impelido a se mobilizar pelo sexo, pelo desejo e pelo nojo. Quem anseia tornar-se aranha? Quem sente repulsa por aranhas subindo por corpos semelhantes aos seus? A repulsa faz parte do tesão?

No texto sobre Mojica de Pedro Henrique Ferreira para a pauta, ele diz: “(…) E há isso, a tortura e a agonia, e o regozijo de Zé do Caixão em mostrá-las. (…) Mas, ao lado das imagens brutas da violência, quase como que num pastiche delas, mulheres dançam sensualmente, coreografadamente, nuas, mostrando os peitos, enquanto confetes caem do céu. (…) (ou, melhor, o paradoxal prazer da repulsa)”. E é exatamente nesse paradoxal prazer da repulsa que repousa a relação mórbida e excitante entre as vítimas e Oãxiac, assim como entre as mulheres e Zé do Caixão e, se somos um reflexo disso, entre nós, espectadores, e José Mojica Marins.

Todas as mulheres ficam aterrorizadas, com exceção de Márcia. É o primeiro momento em que uma mulher permanece plácida diante das torturas dele. Sendo a última a acordar no meio do caos, Márcia observa as companheiras gritando, petrificada. Quando Zé percebe que ela é a única a não sofrer, escolhe-a como sua mulher superiora. Ela, por sua vez, é a primeira que deseja-o, não apesar de suas peculiaridades, mas por causa delas. Ela quer despojar-se dos sentimentos, das frivolidades que acometem todos os terrenos inferiores; ela deseja e se mobiliza por Zé do Caixão. Esse desejo, apesar de se relacionar com uma supremacia da razão, tem algo de muito vaidoso, que reside no alçapão da volúpia e da paixão. A gana que a move soa como uma necessidade de escapar da mediocridade e do continuum médio-burguês ao qual pertence.

Márcia e Zé iniciam o rito sexual que levaria à fertilização. O que parecia ser a primeira transa não violenta se transmuta em um jogo observacional grotesco. Abre-se uma pequena janela ao rés do chão, no qual é possível ver as outras cinco mulheres presas em um poço. Márcia continua a beijá-lo, ignorando a presença delas. Ele intensifica a tortura e permite a entrada de cobras que irão matá-las. Márcia então se afasta dele, tendo chegado ao limite do suportável.  Revoga-se a possibilidade do prazer desunido ao martírio. Ele dança não só com o Diabo, que tanto evoca em seus títulos, mas com a dor e a humilhação, espasmos terrenos muito mais palpáveis ao público que tenciona mobilizar.

Entra em cena Laura, a filha de um homem importante da cidade. Ela é ainda mais austera que Márcia. O destino de Zé parece estar se selando, Laura não o teme, não demonstra paixões e tem um único objetivo que é carregar em seu ventre o filho sagrado da união entre ela e Zé do Caixão. Burguesa e cerceada pelo espetáculo social, ela parece ter ainda menos pudor de abandonar qualquer traço de polidez e de encenação dos bons costumes. De fato, ela engravida. “A única verdade da vida é a imortalidade do sangue”, e ele se imortalizaria a partir do sêmen que viaja corpo adentro. O ato sexual não violento é, para ele, procriação. O tesão parece ser guiado pela dor, e o sexo, pelo filho porvir. Desventurados, Laura morre no trabalho de parto e leva, consigo, a suposta criança perfeita e imortal. Abre-se, então, o precedente para a retomada da busca pela mulher perfeita.

No último filme da trilogia, Encarnação do Demônio (2008), filmado boas décadas depois dos dois primeiros, somos apresentados a um Zé do Caixão velho e recém-saído da prisão, encarceramento ocorrido pelo rapto e assassinato das seis jovens em Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver.

Algo que atravessa a experiência do terceiro filme da trilogia é a existência de Zé do Caixão em um ambiente periférico. Se já existia antes o rechaço da burguesia enquanto instituição de costumes, agora parecem ainda mais claros quais hábitos e representações Zé pretende execrar e impelir as mulheres a desertarem. Aqueles que o perseguem pertencem ao aparato de repressão e moralização burguês: a igreja (incorporada no padre que o assassina) e a polícia (incorporada por Jece Valadão, um policial que pretende se vingar dele). A fúria presente nesse filme parece ter destinatários muito mais específicos que os anteriores.

No último longa-metragem, Zé continua a implacável busca pela perpetuação do seu gene. Com ajuda do seu assistente Bruno, mobiliza servos devotos à crença de sua superioridade, dispostos a morrer pela causa de seu patrão. Reativa seu porão e suas torturas. A força viril e destruidora parece conseguir organizar esse microcosmo urbano a fim de que ele complete sua saga. 

Na reta final dessa busca, Mojica encarna um personagem cada vez mais irrefreável. Seu elã vital se agarra ao ímpeto de achar essa mulher. O grafismo de Encarnação é potente e repulsivo, e a imagem digital oferece um novo deslumbramento, que conjuga o farsesco e o hiperreal no mesmo espaço de encenação.

Suas mulheres, nesse filme, são banhadas em vísceras, escalpeladas vivas, cortadas – e nada as demove da ideia de portarem o filho de Zé. Os testes se tornam não apenas de resistência, mas de amplificação do prazer. As próprias proto-mulheres-superioras infligem-se, entre si, as torturas. O ritual se pulveriza, se alastra e irrompe na petite mort (ou a pequena morte, que, em francês, se relaciona ao orgasmo). O espectador, agora, se depara com a impossibilidade absoluta de depurar aquilo que é gozo daquilo que é dor. As scream queens de José Mojica Marins combinam gemido e berro em mesma intensidade. O compasso da trilogia é o compasso da transformação em virtude do prazer da agonia.

O que no início deste texto foi elucidado como um gozo sanguinolento é, nesse filme, exacerbado. Visitamos o submundo das surubas canibais guiados por uma espécie de capeta (interpretado por Zé Celso Martinez Corrêa). Na plasticidade das dunas amarelo-alaranjadas do purgatório transa-se até a morte, corrompendo-se em delírios, tesão e devorando-se pênis, seios e bundas em absoluto transe. 

Durante sua busca, Zé do Caixão cresce em seus atos de maldade ao mesmo tempo em que suas musas se tornam mais resistentes à tortura. Os 44 anos de aperfeiçoamento não conduzem esse homem à expertise da anulação das mulheres pela violência: pelo contrário, elas aderem, completam, se envolvem e gozam cada vez mais à revelia dele. Na derradeira busca de Zé do Caixão, na cúspide da vida, ele encontra não apenas uma, mas seis mulheres que acabam por engravidar. Aproximando o trajeto de Zé do Caixão do nosso trajeto, em relação ao desenvolvimento de suas obras, constrói-se uma certa resistência a partir de um caminho que se inicia no pudico e termina no promíscuo. Em certa medida, o avanço da tortura e do flagelo fez de seus personagens – e, por consequência, seus espectadores – cada vez mais autônomos. 

Zé do Caixão termina sua saga sendo assassinado por um padre, ícone da manutenção das boas maneiras e da encenação da pureza. Ele sucumbe, mas sua alma é materializada, através do esperma, do óvulo e do útero. O destino dele está atrelado tão e unicamente a esta tarefa: fazer-se mito, em carne e espírito.

José Mojica Marins emulou o próprio destino de Zé do Caixão ao fazer-se mito em carne e espírito. A congruência entre Zé do Caixão e Mojica Marins não reside somente na justaposição personagem-criador mas, sim, na força brutal com que assolam suas vítimas, sejam elas seus personagens ou nós, espectadores. Conhecer Mojica Marins é se deparar com o enlevo da morte e da mortalha, do flerte penetrante e do gozo com cheiro de miasma. Essa Via Crúcis de profanações é, sem dúvida nenhuma, um cinema sem medo do regozijo fúnebre.


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