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Mojica/Zé do Caixão/morto/vivo

O que pensa Zé do Caixão? O coveiro de uma pequena cidade no interior de São Paulo é visto pelos cidadãos como figurada assombrada, tipo folclórico que mete medo na população com suas ideias anticristãs. Zé se vê superior ao povo alienado pela religião, por Deus e por suas hipocrisias. O que o move é o desejo de encontrar uma “mulher perfeita, sem credo” para gerar o filho imortal. E assim, Zé sequestra mulheres e as coloca à prova de seus experimentos sádicos, chacoalhando a estabilidade da cidade e colocando a trama em movimento.

Diz Zé do Caixão: “Sadismo não, ciência. A morte delas não é um sacrifício, é uma contribuição para a criação do homem superior: a doutrinação do instinto.” Ou ainda: “Apenas as crianças são inocentes, só o instinto é puro.” Os humanos nascem seres puros, governados pelo instinto, e são corrompidos pelas crenças hipócritas da vida em sociedade (Rousseau, Zé?). A ciência para Zé do Caixão é ferramenta para atingir o império dos instintos e das pulsões, a supressão das emoções, com o objetivo de supressão da morte como o triunfo sobre a crença e prova final contra o divino.

Esse retrato breve do pensamento do coveiro Zé dá uma impressão de um coeso eugenista tardio, um entusiasmado leitor dos anais da falecida Liga Brasileira de Higiene Mental, talvez exagerado em suas práticas sádicas. A coisa é mais bagunçada. É Dr. Frankenstein nazi com interior paulista, que revira tipos literários e visões de mundo, entre o bruxo, o cientista maluco e a assombração da cidade, misturando positivismo eugenista, anticristianismo, erotismo e terror, psicanálise e umbanda, tudo condensado na função de coveiro da cidade, aquele que transita entre os vivos e os mortos.

Mas se assim pensa Zé do Caixão, o que pensam os filmes?

É no trânsito entre o mundo dos vivos e o dos mortos que está a fronteira por onde passam as ambivalências sobre o que é crível, sobre a veracidade do sobrenatural e sobre o controle que o personagem tem sobre a narrativa que agencia. Os filmes sobrepõem às crenças de Zé do Caixão forças que as contradizem, deslizando do controle onipotente para uma indeterminação tanto narrativa quanto do sentido geral do filme. Mojica desautoriza seu personagem-narrador e torce os pactos de verossimilhança que estabelece de início, embaralhando o regime de verdade no interior dos filmes.

Num dos textos de Noël Burch sobre as origens do cinema, ele traça o que seriam as aspirações do pensamento burguês para a técnica e a representação na segunda metade do século XIX, e o nome que ele dá a esse conjunto de ideias é “Tendência Frankenstein”. Em resumo, “uma fantasia de classe que se tornara fantasia de uma cultura: estender a ‘conquista da natureza’ pelo triunfo sobre a morte, por meio da imitação da vida”; “o grande sonho frankensteiniano do século XIX: a recriação da morte, o triunfo simbólico sobre a morte”. Ele segue, afirmando que é esse ambiente positivista que deu as bases para o desenvolvimento das convenções da linguagem cinematográfica enquanto modelo imitativo, naturalista, com causalidade linear e realismo psicológico, em continuidade espaço-temporal.

Mojica talvez então radicalize essa tendência, ou talvez parodie a fantasia frankensteiniana. Em À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), ele ambienta a narrativa na pacata cidade do interior, com os homens líderes da cidade, suas filhas protegidas, o bom moço que vai esposá-la, seus empregados, o padre local, um senso de comunidade estável em que cada qual tem sua ocupação, no mundo da representação naturalista. Mas o mundo de Zé do Caixão está fora desse esquema representativo. Na masmorra em que vive com seu criado corcunda, Zé faz seus experimentos científicos sádicos com aranhas e cobras, numa disposição de um simbolismo imediato, avessa a interpretações porque é o próprio símbolo (é possível falar em metáforas literais?). Experimentos para os quais sequestra mulheres e as submete a testes de dominação de seus medos, método de racionalização da emoção cujo objetivo extremo é a superação da morte.

À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver e Ritual dos Sádicos/O Despertar da Besta (1970) são filmados em preto e branco, e cada um deles possui uma cena colorida. Nos dois primeiros, as cenas são uma espécie de inferno do inconsciente sob registro de sonho. Zé do Caixão é levado ao inferno no qual não acredita, numa visão que põe à prova a sua crença pela maldição da mulher grávida assassinada, que anuncia que encarnará em seu cadáver. Essa contradição de crença que se fricciona na estrutura da narrativa parece ter paralelo com as ambiguidades de Firmino em Barravento (1961), de Glauber Rocha, que defende uma razão política para os pescadores ante a paralisia religiosa, mas intervém nos rumos da comunidade através da quebra do voto de castidade de Aruã, prometido para Iemanjá. Como analisa Ismail Xavier em Sertão Mar, abre-se uma fenda no pacto narrativo do filme, onde o barravento é a desestabilização da ordem geral no plano das relações humanas – mas também espirituais, de maneira entrelaçada. Duas ordens de razão e crença entram em rota de colisão por intervenção do protagonista – em Glauber a luta política de Firmino contra o candomblé que rege a crença da vila pesqueira; em Mojica a ciência de Zé do Caixão contra o cristianismo da população. No entanto, os eventos que se sucedem escapam à lógica onipotente dos personagens que tramam, suspendem o regime de verdade no interior dos filmes, e levam o juízo sobre a lógica dos fatos a uma zona incerta sobre as forças que a agenciam.

Nesses filmes de Mojica, há ou não inferno e forças do mundo dos mortos que agem sobre as ações dos vivos? Ou, nos termos de Zé do Caixão, é o “homem superior” quem dá os rumos da trama por seus experimentos sádicos com a população, ou existem outras forças narrativas que escapam à onipotência desse personagem narrador que “trama”? É a sobreposição de lógicas – ou de naturezas – que faz a experiência dos filmes desnorteadora, irresolvível.

O irresolvível está também no trânsito de registros de linguagem, do problema de representação entre o plano da narrativa naturalista, os cortes do inconsciente e a dúvida do sobrenatural. No média-metragem Pesadelo Macabro (1969, que faz parte da “Trilogia de Terror”, junto a dois outros médias de Ozualdo Candeias e Luiz Sergio Person), Mojica parece elaborar esse trânsito de regimes de maneira mais direta e condensada. Cláudio sofre com pesadelos em que é enterrado vivo: a primeira sequência é uma sobreposição de imagens de cobra, do rosto de Cláudio flutuando, um jogo de trucagem e colagem sonora que lembra o cinema das vanguardas históricas. Ele desperta, o filme vai para um registro narrativo: sua família, preocupada em resolver o problema, o leva a um ritual de incorporação, e depois a um psicólogo que, aparentemente, o cura.

Finalmente, Cláudio e sua namorada Rosana saem para um passeio no campo, para marcar uma nova fase. Durante o passeio, ele expressa o medo de que os pesadelos voltem. Ainda no campo, ela o leva para uma senzala abandonada, onde contam que os escravos eram torturados. Então eles são brutalmente surpreendidos por uma gangue de homens, que matam Cláudio e estupram em grupo Rosana. Cláudio é enterrado, todos saem do cemitério. Vemos então Cláudio preso no caixão, vivo, aos berros, mas não ouvimos nenhum som. Uma mulher vende cobras e lagartos na porta do cemitério, o que leva Rosana a relacionar o enterro de Cláudio a seus sonhos: Cláudio está vivo. O pai de Cláudio também está convencido de que os pesadelos do filho eram premonitórios: Cláudio foi enterrado vivo. A montagem entrecorta essa tomada de consciência das personagens com imagens de Cláudio no interior do caixão esmurrando suas paredes, na imagem sem som. Mobilizam-se todos os que estavam no enterro, começam a exumação do homem vivo. Abrem o caixão: Cláudio está morto, desfigurado, um boneco esbugalhado e ensanguentado, aos gritos de todos.

Essa sequência final é inteira construída através de um paralelismo em que o ponto de vista do espectador antecipa o que ninguém mais pode ver: Cláudio está vivo dentro do caixão, seu sonho era uma premonição. O estalo em Rosana e no pai afirmam a premonição do sonho, a crença em sua veracidade, aquilo que o espectador antecipadamente viu, com o personagem no interior do caixão. E então a última imagem é de Cláudio morto estraçalhado, num plano de choque que desmente todo o pacto da construção anterior: são truques o sonho, a narrativa paralela, a verossimilhança.

O filme engana o espectador com seu falso olhar privilegiado da câmera dentro do caixão, recusa redimir as personagens que creem tomar consciência da lógica sobrenatural, desfaz a resolução, em que coincidiriam o funcionamento dos planos do inconsciente, do sobrenatural e do mundo físico. Nesse gesto de finalização, que tem reiteradas variações nos filmes seguintes, Mojica a um só tempo repõe o irresolvível entre as naturezas e rompe a conciliação lógica entre mundos. E também demonstra como todos, personagens e espectadores, caímos em seu truque de mostrar e esconder, os truques da ficção.

No Ritual dos Sádicos/O Despertar da Besta, o experimento que conjuga sexualidade/inconsciente/ciência decanta para a estrutura e ganha um tratamento autorreferencial e autorreflexivo, em que especialistas debatem episódios envolvendo sexo e droga, entre a psiquiatria e a conduta moral sobre os limites da perversão – o que adiante se revela ser o experimento de um cientista com LSD. O que a princípio se apresenta como colagem episódica é afinal um dispositivo narrativo cuja locução é o próprio relato científico. Essa estrutura comenta a todo momento a si mesma, inserindo o próprio Mojica enquanto figura a ser escrutinada. Entre o show de rock, uma peça do Teatro Oficina e um filme de Zé do Caixão (onde é inserida uma de suas cenas de mortos saindo das covas), os participantes do experimento escolhem a Zé do Caixão para a sua viagem de LSD: “Detesto Zé do Caixão, eu nunca suportei seus programas. Me abomina aquelas unhas longas. Mas tenho que convir, foi o que mais me impressionou”; “um artista como outro qualquer”; “um gênio”.

A partir daqui o duplo Zé do Caixão/José Mojica passa a ser tematizado em seus filmes como um conjunto de problemas de embate entre autor e personagem que se confrontam dentro da trama. A encenação desse complexo de identidade vira gesto performático do embaralhamento de regimes da ficção. Quando interpelado pelos “especialistas”, ele avisa: “Zé do Caixão ficou no cemitério, o senhor está falando com José Mojica Marins”. Mas então, se coloca outra dobra, que é a da representação que Mojica passa a fazer de si como personagem dentro dos próprios filmes.

Então, o que pensa Mojica de si mesmo? No Ritual dos Sádicos, Mojica é questionado na televisão por alguns entrevistadores no “Tribunal Popular da Verdade”:

“José Mojica Marins, mais conhecido como Zé do Caixão, diretor, autor, ator e produtor de filmes e programas de televisão. Glauber Rocha, aplaudido e festejado em todo o mundo como o líder da nova cinematografia brasileira, considera Zé do Caixão um primitivista e um cineasta puro. Anselmo Duarte, premiado em Cannes, considera Zé do Caixão um diretor de recursos inegáveis. A maioria da crítica não o leva a sério. Zé do Caixão: cineasta ou farsante? Culpado ou inocente? É o que o Tribunal Popular da Verdade irá procurar saber a partir desse momento:

– O que pensa da vida?

– Completamente vazia.

– Então por que não se mata?

– Suicídio é crime.

– Eu não tenho intenção alguma de me debater com você, mas vou lhe pedir de qualquer maneira, que transmita uma mensagem clara: se você pensa que a vida é má, em breves segundos então tem a obrigação de se explicar.

– Olhe, me falta cultura acima de tudo para poder lhe dar a explicação da pergunta em questão.
– Que contribuição o senhor imagina que está dando com seus filmes para o cinema brasileiro?

– Dando emprego a uma série de gente e dando ao público o que ele quer ver.

– O que ele escreve é um monte de asneira, não se pode fazer outra coisa a não ser rasgar.

– Já serviu para alguma coisa.

– Esta unha que você usa, unha de javali do seu dedo polegar. Você a usa como cabide?

– Resposta censurada.

Ao fim do filme o cientista é questionado pela escolha de Zé do Caixão como objeto de seu experimento: “Eu utilizei do personagem Zé do Caixão para a experiência por ser ele controvertido e discutido a ponto de causar polêmicas e também porque sua forma de apresentar o terror se identifica com os problemas do subconsciente, tanto daqueles que o admiram como daqueles que o combatem. E assim ele tem um maior poder de sugestão sobre as pessoas.”

Transcrevo os trechos dentro do filme porque eles chamam atenção para a autoconsciência de Mojica em relação a sua posição no cinema brasileiro ao lado de seus contemporâneos e a sua relação com a crítica e o público, bem como sobre os efeitos que provoca entre os que o admiram e os que o detestam. Segundo, porque nesse jogo autorreferencial, Mojica vira personagem que entra em embate com Zé do Caixão, e torna essa dissociação de personas parte do seu espetáculo, da dúvida do pacto ficcional e da verificação da realidade, ou seja, do seu trânsito entre “naturezas”.

O par cineasta/falsário não é oposição para Mojica. Mojica é homem de espetáculo, dos mágicos, da linha Méliès que faz truque para a câmera. Mas Mojica está nos anos 1960 e o faz jogando reflexivamente a partir de sua própria figura. Mojica é truqueiro, falsário, falsificador. É como Orson Welles fazendo sumir moedas para crianças no início de F for Fake, que faz par com seu labiríntico raciocínio através da mesa de montagem. Eu sei que é um truque, e eu quero ser enganado.

Volto às cenas coloridas que pontuam os filmes em preto e branco, porque parecem um momento em que os filmes gastam tudo, onde investem todos os recursos disponíveis para experimentar com os elementos que já estão mais ou menos dispostos no filme em uma cena de delírio mais radical, onde se joga com um simbolismo bem direto, uma espécie de janela na narrativa do filme, muito inventiva nas soluções de cor/cenário/som. Se uma certa condição de manufatura torna a experiência do terror às vezes opaca, onde dá para ver as marcas da feitura, há ao mesmo tempo uma liberação para o uso do artifício, uma coisa que se passa por outra, uma inventividade que passa por fora da necessidade de um efeito “plausível” e parte para um campo de efeitos aparentes onde cores hiper-saturadas, maquiagem e cenografia vão para a moviola e são recortadas junto a sons sintetizados e trucagem. Agora, em Ritual dos Sádicos, Mojica se libera da metáfora do inferno: aquilo é a sua criação de mundo, o fascínio é o desenrolar do truque.

Em Exorcismo Negro (1974), o trânsito problemático entre criador/criatura se desloca para o centro da narrativa, onde Zé do Caixão ganha vida própria e desafia a autonomia de seu mundo contra seu criador. A cena de abertura é um casal paquerando em um quarto, surpreendido pela invasão de um grupo de assaltantes que os agridem e assediam a mulher. Uma situação que reencena o ataque descrito de Pesadelo Macabro. De repente, a mulher tem seu rosto transfigurado em uma máscara de velho macabra, e então seu marido também, e os dois têm suas vozes alteradas, aterrorizando os assaltantes. “Corta”: vemos a equipe de filmagem e Mojica, diretor e agora personagem do diretor, que encerra a diária de trabalho. Uma entrevista coletiva o espera no set, e mais uma vez Mojica é interrogado em cena: “Quem é mais importante: Zé do Caixão ou José Mojica Marins? “, e ele ri: “José Mojica Marins, uma vez que Zé do Caixão não existe, é apenas um personagem”. De novo, é interrogado sobre cortar as unhas: “Um problema de autenticidade: Zé do Caixão não existe, não tem vida. Eu apenas usei o meu corpo, meu físico, para transmitir uma ideia”. A incorporação da experiência corpórea do personagem para lhe emprestar a voz e as ideias é aqui brecha por onde o sobrenatural, “a segunda natureza”, dá vida ao que era ficção, em uma crise de identidade do par Mojica/Zé do Caixão que se materializa em um processo de dissociação.

Mojica vai então passar férias na casa de campo de um amigo. Logo que chega, comenta com seus anfitriões: “É impressionante. Às vezes tenho a impressão que a própria natureza se revolta quando nego a existência de Zé do Caixão”. E comenta o caso de Conan Doyle, que se sentiu tão obscurecido pelo seu personagem Sherlock Holmes, que matou seu personagem em um acidente nos Alpes. “Não é o meu caso, mas gostaria que os méritos do meu trabalho fossem atribuídos a mim e não a um mero personagem”.

Sucedem-se então uma série de eventos estranhos, dos quais Mojica é a principal testemunha: os familiares de seu amigo incorporam, um a um, um espírito maligno que os faz investir agressivamente contra as outras pessoas da casa e mesmo contra o cachorro e as plantas. Lúcia, a mãe da família, conversa com Mojica e está certa de que uma pessoa está por trás de tudo: uma necromante com quem fez um pacto que envolve sua filha mais velha e a simulação de sua gravidez, e a quem teria prometido em contrapartida o poder de decisão sobre com quem esposará a filha. Contra esse pacto, a filha está namorando um rapaz que não tem a aprovação da necromante, que então evoca espíritos malignos que possuem a toda a família. Na sua parede, um retrato de Zé do Caixão, que descobrimos adiante ser o mestre da seita satânica e que ao final será o mestre de cerimônias do casamento da filha com o preferido da necromante, em um rito que inclui o sacrifício da menina mais nova. Mojica assiste escondido ao ritual, observando seu personagem tomar vida própria e agir para além de suas criações. Ele intervém e duela com Zé do Caixão, mas afinal é derrotado e expulso. Mas quando olha para trás e vê a garotinha à beira do sacrifício, encontra um crucifixo e o utiliza como arma, enquanto exclama sua crença em Deus. Mojica exorciza Zé do Caixão do seu corpo, em uma cena de sobreposição de seus dois corpos que completa o gesto de dissociação, e parece ser a realização do desejo de Mojica de matar seu personagem, como sugere no início. Exorcizadas as fontes do mal pela palavra de Deus, a paz parece se restabelecer na família e Mojica vai embora, quando então, nos olhos da menina mais nova, o rosto de Zé do Caixão transparece e solta sua característica gargalhada. As forças do sobrenatural estão momentaneamente contidas, mas não extintas, e reencontram as brechas para voltar a perturbar o mundo dos vivos.

Mojica experimenta ainda outra estratégia de elaboração sobre seu personagem e ele próprio em Delírios de um Anormal (1978). O psiquiatra Hamilton sofre de recorrentes pesadelos como em Pesadelo Macabro, mas agora, o que assombra o sono do protagonista é Zé do Caixão, que lhe roubará sua esposa. Esse mote é pretexto para um dispositivo narrativo de autocitação da obra anterior de Mojica, entre fragmentos censurados de quatro filmes: O Ritual dos Sádicos/O Despertar da Besta, Exorcismo Negro, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver e O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), onde ele faz, através da construção dos sonhos, o reexame e a remontagem de seu vasto repertório simbólico já filmado, de mortos-vivos, cobras, aranhas, ratos, caveiras, monstrengos, texturas amorfas e todo o imaginário de sadismos e rituais satânicos.

Hamilton vira caso de seus colegas psicanalistas mais velhos, que afinal decidem por chamar o criador de Zé do Caixão, o diretor Mojica Marins, para ajudá-los a curar o paciente de seus distúrbios e demonstrar a ele que Zé do Caixão não passa de ficção. O diretor Mojica, mais uma vez personagem, faz sua representação de si mesmo, de um doce e atencioso diretor, investigador das “profundezas da mente humana”, disposto a ajudar os médicos porque o caso também interessa muito à sua pesquisa, inclusive com uma cena em que estuda seus roteiros anteriores para procurar elementos para a análise.

Também aqui os psiquiatras são, como em Ritual dos Sádicos/O Despertar da Besta, comentadores da narrativa. Em Exorcismo Negro, o colega de Mojica está estudando “parapsicologia” e, em Pesadelo Macabro, o protagonista é tratado com análise. A figura recorrente do psiquiatra, analista, especialista é a enunciação da voz “médica” de abordagem sobre o corpo nos filmes, mais um sistema de crença que colide e se sobrepõe aos outros.

Considerando esses filmes, as intervenções desses analistas formulam os casos de pesadelo, surtos e fetiches nos termos da psiquiatria, tratando-os como “caso” e oferecendo interpretações científicas aos eventos, como comentário que atribui significados à narrativa. No entanto, no transcorrer do filme e na elaboração da narrativa e da montagem, suas hipóteses analíticas são insuficientes em dar conta da anormalidade. Às esferas do sobrenatural, resta sua parte de inexplicável.

Nem mesmo Mojica, enquanto personagem, é capaz de reconciliar as forças que agem em seus filmes, nem mesmo conter a autonomia de sua criação ficcional em relação às suas ações. Tanto em Exorcismo como em Delírios, se repetem os gestos de rasteira final, análogos ao de Pesadelo Macabro. Quando tudo parece superado, Mojica pode retornar para casa e crê ter vencido os assombros de Zé e contido as forças do sobrenatural, Zé do Caixão reaparece no corpo de uma menina ou no quarto do jovem casal. Zé do Caixão virou a sombra de Mojica, que escapa de sua visão, age contra sua vontade, trai o controle de seu criador e se recusa a permanecer nos limites do mundo da ficção.

A essa altura da obra de Mojica, é possível perceber nessa sobreposição um estreitamento entre o inconsciente e o sobrenatural, numa colisão de eventos e crenças que abrem furos onde se fazem pontes paranormais (“parapsicologia”?), que não podem ser explicadas de forma coesa ou aplicadas a um sistema lógico. O salto do pensamento nos filmes de Mojica é que esse conflito não é somente narrativo ou discursivo, em que personagens simplesmente evocariam o conflito de diferentes visões de mundo. O conflito fura a forma, interferindo nos descaminhos da montagem, em traições do pacto ficcional de verossimilhança dentro do universo que Mojica constrói com o espectador, e mesmo com seus personagens e com sua representação de si.

Como em um pesadelo, em que as transições entre os espaços e cenas são estranhas à contiguidade do mundo físico, e pessoas conhecidas não coincidem com seus rostos e corpos; em que os juízos são suspensos e as regras do possível são alteradas sem maiores explicações, a obra de José Mojica Marins trafega entre mundos, atravessa seus portais, desliza entre diferentes regimes de crença e linguagem. As imagens de um filme retornam em outros, e a mesma cena ganha diferentes encenações e circunstâncias, em um jogo de constante reelaboração de suas fantasias e personas. Imersos entre os murmúrios e os gritos, atravessamos seus filmes desnorteados pelo seu “poder de sugestão”, quando acordar é apenas espantar nossos demônios, até que eles voltem a nos assombrar no escuro.

Mojica perdeu o controle do rosto que leva seu corpo, ensaiando várias vezes matar e exorcizar seu personagem mais famoso, sempre lidando com a precariedade da invenção, através de sua estética da fome e do sonho, colisão que arrisco chamar de estética do pesadelo. Mojica faz do seu manejo dos truques sua casa dos horrores, onde ficamos desorientados à espera do próximo mecanismo de assombração. Mojica teve muitas vezes seu mundo confundido com o de Zé do Caixão, maldição de homem do espetáculo que é mistificado. Mas da mistificação se faz o truque, e Mojica o faz agora, com seu cinema, em passagem para o mundo dos mortos-vivos.


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