Ozualdo Candeias e o Cinema, de Eugênio Puppo (Brasil, 2013)

maio 16, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

ozualdocandeias

Um fantasma visível
por Filipe Furtado

“Se todo diretor faz seu filme para um espectador ideal, o espectador que Candeias têm em mente assiste o filme EM PÉ”.

Ruy Gardnier

Creio que uns 95% de Ozualdo Candeias e o Cinemaseja produzido pelo próprio Candeias. São as imagens de Candeias que Eugênio Puppo resgata, um amplo acervo de imagens dos curtas amadores da década de 1950 até seu último longa O Vigilante,e preenche o filme com rico material de entrevistas dadas pelo o cineasta no qual o próprio revê e contextualiza a própria obra. O que temos aqui é Candeias por ele mesmo, mediado por Puppo, suas palavras e suas imagens. Um filme-retrato, mas não um filme-retrato típico. É um retrato porém que cabe perfeitamente ao retratado: se há um cineasta que precisa se mostrar visível, este é Ozualdo Candeias, e o que este filme de Eugenio Puppo faz é justamente devolver a Candeias uma imagem – e vale dizer que as imagens do próprio Candeias nunca se revelaram tão marcantes, todos os filmes estão ali devidamente restaurados, por vezes surpreendentes para quem se acostumou a assisti-los em cópias vagabundas… neste sentido, é um genuíno documentário de intervenção.

Se é difícil escrever sobre os filmes de Ozualdo Candeias, é justamente porque a maior qualidade deles é serem diretos. Construir um discurso sobre eles já é uma primeira traição. Logo, nada mais natural quando se faz um filme sobre Candeias que se vá direto à matéria prima. Nada mais justo que, quando o filme finalmente alcança O Vigilante– o mais invisível dos filmes da era mais invisível do cinema brasileiro moderno, o período Collor, do qual permanece seu único registro político –, Puppo extraia justamente a sequência do estupro mais abjeta de todo o cinema, e por isso mesmo a mais honesta. Ozualdo Candeias e o Cinematem a virtude da franqueza, tem a mesma ausência de filtros que o próprio Candeias levava a seus filmes, o mesmo despudor – seja na forma como, por exemplo, ao lidar com a entrada da pornografia na Boca do Lixo, inclua algumas sequencias de sexo explicito, ou na forma como o próprio Candeias se refere a Caçada Sangrenta(1974) como um filme de encomenda para pagar o astro David Cardoso por seu trabalho em A Herança(1972) (um dos méritos inegáveis de Ozualdo Candeias e o Cinemaé que aponta a grandeza de Candeias sem cair na armadilha de dizer que todos os filmes sejam igualmente geniais; as imagens afinal estão ali para o espectador lidar como bem entender).

Cabe a Puppo mediar estas imagens da melhor maneira possível. Ozualdo Candeias e o Cinemasegue a carreira do cineasta de forma cronológica, do seu relato de como comprou a primeira câmera até o processo de agonia da Boca do Lixo, não só a casa de Candeias, mas um espaço cuja história ele registrou através de imagens por quase três décadas. No seu trabalho de retomar a história do cinema brasileiro pelas suas imagens, o filme lembra Belair, de Bruno Safadi e Noa Bressane. Puppo não só seleciona bem suas imagens, mas as permite respirar, deixa que grandes blocos da obra de Candeias retornem até o espectador, o que é vital, já que um dos elementos mais marcantes do cinema de Candeias sempre foi a montagem. Estarão ali todos os longas e curtas de Candeias a partir de A Margem, assim como alguns dos seus menos conhecidos curtas iniciais (a exceção, infelizmente, fica por conta do ótimo O Acordo, episódio que o cineasta realizou para Trilogia do Terror (1968), para o qual o filme não obteve os direitos, e cuja ausência acaba gerando uma enorme lacuna). Ozualdo Candeias e o Cinemase concentra principalmente no trio A Margem, Meu Nome é Tonhoe A Herança(o filme até retoma um tanto desnecessariamente A Margemno seu final, numa das suas raras licenças cronológicas), mas todos os filmes recebem seu momento de destaque. Podem-se questionar algumas ênfases de Puppo – os curtas e médias me parecem ficar um tanto em segundo plano, apesar de Candeias ser o único cineasta brasileiro que se move por variadas durações com a mesma desenvoltura – mas, salvo pela inclusão de um par de depoimentos de figuras do cinema paulista ao MIS que lhe interrompem o fluxo de primeira pessoa, Ozualdo Candeias e o Cinemaé sempre preciso.

É também, à sua maneira discreta, um filme político, ao menos para aqueles que se preocupam com a política das nossas imagens. Ozualdo Candeias pode não ser nosso maior cineasta (ao espectador haverá sempre várias opções igualmente formidáveis), mas é talvez o mais importante, hoje mais do que nunca, justamente por ser o menos visível. Candeias é o fantasma do cinema brasileiro sempre presente como a estrada não tomada. As tentativas de oficializá-lo pela pecha de primitivo ou por tentativas deliberadas de emoldurá-lo (pensemos, por exemplo, em Fernão Ramos descrevendo A Margemcomo um filme sobre o confronto entre o feio e o sublime) se dobram como tentativas de sufocá-lo. Porque Ozualdo Candeias é uma figura à parte de certa pequenez que sempre marcou o cinema brasileiro: nem se interessava em deglutir toda uma herança cinematográfica que vinha de fora, nem carregava o fardo de uma idéia mal resolvida de nação; estava distante tanto de Oswald como de Mario de Andrade. Com isso, terminava por tirar a narrativa do cinema brasileiro do eixo.

Um dos méritos maiores de Ozualdo Candeias e o Cinemaé o de promover seu retorno, torná-lo incontornável. A evidência do gênio, já bem dizia Jacques Rivette, está nas imagens. O filme como um todo é um choque de Ozualdo Candeias: quando acompanhamos toda a sequência da acusação de A Herança, é impossível não pensar na distância que separa o vigor de Candeias do tom engessado que domina o cinema brasileiro contemporâneo em todas as suas esferas. Tudo é colocado às suas sombras. O fantasma irritante do cinema brasileiro por um instante se torna visível.

Share Button