Cobertura da 8a Cine OP

julho 14, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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El Justicero (1967), Nelson Pereira dos Santos

O pacto social e a politica dos costumes
por Filipe Furtado

Certas opções de programação dizem muito sobre o olhar que um festival de cinema propõe lançar, sobretudo num evento como o Cine OP, que tem como atração principal justamente a Mostra Histórica, cujo recorte da curadoria é colocado de forma inevitável em primeiro plano. A Cine OP este ano resolveu adiantar em um ano as reflexões sobre os 50 anos do golpe militar e lidar com o primeiro momento da ditadura, entre o golpe e a promulgação do AI-5. Focou-se numa série de filmes realizados entre 1967 e 1969, pouco antes do ato institucional: Terra em Transe, de Glauber Rocha; El Justicero, de Nelson Pereira dos Santos; Bebel, Garota Propaganda, de Maurice Capovilla; Anuska, Manequim e Mulher, de Francisco Ramalho Jr.; Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr.; e Trilogia do Terror, de Ozualdo Candeias, Luís Sérgio Person e José Mojica Marins.

É uma seleção pouco usual, na qual o único clássico oficial do período é o filme de Glauber Rocha. Pois bem, o Festival programou Terra em Transe para a tarde do dia de abertura, antes sequer da grande maioria da imprensa e convidados chegar, quase como se o evento buscasse se livrar de um peso protocolar. Terra em Transe é incontornável demais para ser ignorado, com sua posição como representação oficial da memória do cinema brasileiro sobre o pós-golpe tão consolidada que não é possível propor um mergulho sobre o que o olhar do cinema brasileiro à época revela sem ele, mas ao mesmo tempo é necessário buscar ir além, algo que nossa historiografia nem sempre realiza a contento. Este gesto de programação – ao mesmo tempo incapaz de promover o divórcio com o clássico de Glauber, mas pronto para marginaliza-lo – diz muito sobre o recorte sobre o cinema brasileiro no fim da década de 1960 que o Cine OP resolveu apresentar. O que se deseja é localizar certo estado das coisas da sociedade brasileira que alimentou o regime, menos que o confronto direto. A Terra em Transe coube o papel de uma espécie de fantasma que assombra o resto da seleção.

Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha

Terra em Transe (1967), Glauber Rocha

Anatomia de um fracasso

Este processo de voltar o olhar para a base que sustentou o regime não é dos mais simples. Algo que fica claro, por exemplo, diante do debate com os realizadores que o festival promoveu, quase todo ele girando sobre a questão da censura, excetuando justamente pela fala do homenageado principal do festival, Walter Lima Jr., que não parecia muito interessado no assunto. Costumamos pensar a ideia de um cinema politico como um cinema que lida com a politica e tematiza abertamente o jogo político. Não deixa de ser bem relevante, neste contexto, a presença na seleção de El Justicero, de Nelson Pereira dos Santos, que, como o mesmo debate lembrou, foi um dos filmes mais censurados do período. A história diz que a esposa de um milico assistiu ao filme e se ofendeu com a presença do general pai do protagonista, e que, a partir dali, o filme foi perseguindo a ponto da sua cópias atuais serem feitas a partir de um 16mm encontrado na Itália, única versão integral que restara do filme, que teve até mesmo seus negativos apreendidos. A gênese do caso diz muito sobre a potência politica de muitos destes filmes. A sátira mordaz de Nelson Pereira, muito atacada à época justamente como apolítica, traz com ela um incômodo muito próprio. O general corrupto e patético a pedir ajuda para o filho playboy para cafetinar uma conhecida é tão ou mais agressivo, à sua maneira, quanto filmes como A Vida Provisória (1968), de Maurício Gomes Leite, ou O Desafio (1965), de Paulo César Saraceni, que atacam os dilemas do período de forma mais direta. São filmes que trazem consigo um sentimento engasgado, uma angústia particular, em que a suposta exuberância da encenação por vezes revela um elemento broxante. Um cinema interrompido. É uma idéia especialmente consciente no Bebel, de Maurice Capovilla.

Neste contexto, é bem relevante a opção de abrir o festival com o filme de Walter Lima Jr. Brasil Ano 2000 é um filme que carrega tal ideia ao paradoxo, perdido como termina entre o espetáculo e a alegoria, o desejo de se entregar à sedução do cinema – Walter Lima Jr., vale lembrar, era o mais cinéfilo entre os cineastas do núcleo principal do Cinema Novo – e a necessidade de puxar o freio de mão e tentar uma visão mais panorâmica sobre aqueles personagens. Se Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, é o filme mais bem acabado do diálogo entre o Cinema Novo e o popular, Brasil Ano 2000 segue seu filme mais exemplar justamente em como seu fracasso reflete o de vários outros filmes do período. O filme tem o corpo de um musical e o peso de um filme de prisão. Seus planos gritam a presença de personagens encarcerados, desejosos pela possibilidade de quebrar a cena com uma canção.

Brasil Ano 2000 (1968), Walter Lima Jr.

Brasil Ano 2000 (1968), Walter Lima Jr.

Não ajuda muito que a sua sátira sobre o eixo atraso/modernidade se construa a partir de uma série de saídas fáceis que não conta com a ajuda da sem-vergonhice brutal de um El Justicero. Diante da perplexidade, cabe a Brasil Ano 2000 mergulhar no atraso. Sua anatomia do fracasso geral da nação só consegue achar um ponto de fuga na presença de cena de Anecy Rocha, que teima em tirar o filme do eixo e devolver-lhe uma leveza da comédia musical que em algum momento o filme desejou ser.

Se Brasil Ano 2000 é o filme ideal para abrir uma mostra como esta, é justamente por ser, já no título, sufocado pela ideia de nação. Se o tempo não tratou de revelar-lhe qualidades insuspeitas, deu a ele um valor de documento inegável. Um pequeno detalhe chama a atenção: o filme reserva sua hecatombe nuclear para 1989. Como documento sobre o fracasso da tentativa de um olhar totalizante nacional de esquerda diante de um sentimento de paralisia no momento de endurecimento de um regime nacionalista de direita, Brasil Ano 2000 segue incontornável. Seu fracasso vale mais como uma retomada de um olhar sobre o período do que muitos sucessos.

A maior aposta da programação do Cine OP foi justamente a de se voltar para os filmes de costumes. Se Brasil Ano 2000 aposta na alegoria e Terra em Transe numa representação bem direta dos dilemas do seu momento, a maioria dos filmes programados existe ao largo do endurecimento do regime militar. Haverá neles muitas referências veladas, mas, colocados num contexto como o de Festival de Ouro Preto, o que eles permitem é sobretudo notar como certo olhar social ajudou a estabelecer as bases da segunda fase da ditadura.

A política do cotidiano

A politica no Cine OP deste ano se deu através de gestos e das negociações diárias do cotidiano. Uma seleção de filmes que pode atrair-nos através da alegoria do atraso de Brasil Ano 2000, mas que tem seu carro chefe no olhar morto de Paulo José pedindo uma foto mais sensual em Bebel, no deboche de Luís Sergio Person e Anuska, no Arduino Colassanti desesperado ao descobrir que a amada não é virgem em El Justicero. Em todos eles, uma série de relações sociais revela um mesmo sentimento doentio. Não deixa de ser uma pena que a necessidade protocolar de exibir Terra em Transe termine por excluir da programação Câncer (1972), no qual Glauber usa de seu talento para síntese para reunir muitos destes gestos na mesma imagem grotesca.

Bebel, Garota Propaganda (1968), Maurice Capovilla

Bebel, Garota Propaganda (1968), Maurice Capovilla

Bebel, Garota Propaganda, dw Maurice Capovila, e Anuska, Manequim e Mulher, de Francisco Ramalho Jr, são filmes irmãos, ambos adaptados de trabalhos do começo da carreira de Ignácio Loyola Brandão e centrados em modelos em ascensão, com universo nascente da mídia e moda como um pano de fundo para a ação. Anuska é o filme menos ambicioso programado pelo festival, satisfeito em minar do material de Loyola um retrato razoavelmente duro do começo e fim de uma relação (se o filme falha, é justamente porque Ramalho é incapaz de imaginar o espaço entre estes pontos finitos) e com a já mencionada presença em cena de Person como um playboy folgado, espécie de predador benigno sempre pronto a impor a sua vontade, seu trunfo mais notável. O filme todo se constrói no tempo exato da mediocridade do seu protagonista (Francisco Cuoco, pouco antes de encontrar sua persona típica), um destes jornalistas que infestam os filmes do período, mas cuja falta de olhar e perspectiva é provavelmente um retrato mais honesto da classe.

Bebel é o contraponto de Anuska. Se o filme de Ramalho exibia o desejo de se aproximar de um universo, mas uma grande dificuldade em imaginar o que fazer com ele, o de Capovila tem ideias muita claras e um asco muito bem definido. Cerca de 45 anos depois, o que mais sobra do filme é justamente a maneira como o horror que ele demonstra por uma mídia audiovisual em processo de se consolidar reverbera pelas suas próprias imagens. Bebel é um filme de danação, mas não é só o corpo de Rosana Ghessa que ele transforma em mercadoria, mas a sua própria encenação, como se Capovila tivesse a certeza que ao próprio cinema era impossível escapar do jogo de cafetinagem que o filme busca expor. A sua mise en scène é da mais pura auto sabotagem, cada plano subsequente pronto para drenar o prazer prometido pelo anterior. É menos um filme sobre ascensão e queda de uma vedete do que um filme sobre a derrota do cinema diante da TV na batalha para produzir as imagens do país. Se hoje Bebel se revela ainda mais um quase filme de terror, é justamente porque a forma autofágica com que o filme se lança sobre si mesmo antecipa tanto a forma, como a mesma ideia de mercantilização tomaria conta do cinema brasileiro, e a mesma economia de consumo que sustenta suas imagens triunfaria em definitivo no nosso atual governo. Se trata-se de um filme muito duro sobre como uma economia de imagens e um desejo de consumo sustentaram o regime, deve-se dizer que, de Bebel a Suely, de Medici a Dilma, o filme de Capovila segue perturbadoramente atual.

Dentro do foco nos filmes de costumes, a presença de El Justicero, de Nelson Pereira dos Santos, é essencial. Comédia ligeira e a primeira vista sem grandes ambições, El Justicero não é só um dos melhores filmes do Nelson Pereira, mas entre os mais ácidos do período, aquele que envelheceu melhor, justamente por ser um filme em qual esta acidez está toda voltada não só sobre a base que sustentou o golpe, mas para toda a encenação social que o manteve. Se é em Câncer que Glauber flerta diretamente com o primeiro Bressane e o Sganzerla da Belair, El Justicero não deixa de adiantar muitos elementos da parcela paulistana pop do cinema marginal: assim como O Pornógrafo ou A Mulher de Todos, trata-se de uma chanchada sobre a nossa boçalidade.

El Justicero (1967), Nelson Pereira dos Santos

El Justicero (1967), Nelson Pereira dos Santos

Se um filme como Brasil Ano 2000 se tortura todo para totalizar o atraso da nação, El Justicero trata-o como um fato consumado: o milico molengão, a boa família carioca, a geração pasquim, o playboy zona sul que busca equilibrar a boa consciência com os frutos da corrupção do pai… tudo é triturado na mesma sátira. A grande sacada de Nelson Pereira dos Santos aqui – e não deixa de ser interessante notar que este é o único filme não alegórico que ele realizaria na primeira década pós-golpe – é reconhecer o quanto está diante de um pacto social muito particular, e o quanto ele depende da autoconsciência de cada ator social para mantê-lo. Não à toa, o desenlace se dá essencialmente numa tentativa de retomar o jogo de cena, de devolver todos aos seus novos papéis. A história é uma farsa sustentada não por grandes eventos, mas por uma infinidade de trocas diárias.

Uma constante nos filmes selecionados em Ouro Preto foi justamente o mesmo sentimento de agonia que por vezes parece pronto para soterrá-los, como se espectador e realizadores fossem o protagonista do episódio de Mojica em Trilogia do Terror, e os filmes fossem asfixiados pelo próprio peso (Bebel com sua relação mal resolvida com o próprio meio é o caso mais exemplar). A exceção é El Justicero que sabe exatamente o que é e a paisagem em que pisa, e vai até ela sem grandes neuroses. Da pequena comédia de costumes, chega-se a uma sátira tão totalizante quanto a de Brasil Ano 2000, mas o baixo tom do Nelson lhe serve muito melhor. Os desgovernos, a programação da Cine OP nos lembra, sempre começam de baixo.

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