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Sobre O Estranho Mundo de Zé do Caixão

Ocidente. Desde Tomé é preciso ver para crer. A ressurreição se torna fato com as chagas expostas. “Exposição” será o fato social da arte com o cristianismo, a imagem como ressurreição do objeto – a palavra divina, o corpo e o sangue do salvador – apenas se oferecida aos olhos do público. Veja e creia: a lei do espetáculo.

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O dedo do apóstolo que toca a ferida de Cristo é a quintessência da função da imagem: ver é uma função táctil.

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“Deixa eu ver?”. Esse é o mote do terceiro episódio de O Estranho Mundo de Zé do Caixão – com o sugestivo título de “Ideologia”. Já no início, um programa de debates na tevê traz o intrigante professor Oãxiac Odéz para expor suas teorias em torno da pujança do instinto sobre o sentimento e as crenças, especialmente as ditas humanistas. Mojica se recusa a mostrar o protagonista desde o começo da sequência, compondo a gravação por fragmentos dos bastidores, aproximação das câmeras às pessoas que falam no debate e ângulos enviesados que escondem o personagem central na bancada do programa. A voz e a prosódia lembram o já conhecido Zé do Caixão, mas sem a certeza dada pela imagem. Quando ocorre a revelação, primeiro aparecem suas mãos com as famosas unhas compridas do personagem, antes do movimento mostrando o rosto. Toda a estranha teoria de Odéz carece de presença, até aparecer seu rosto, já parte da cultura popular. Quando a voz ganha presença e o reconhecimento – enviesado como o pseudônimo Oãxiac Odéz sugere – é completo, as ideias do personagem ganham substância. “Ah sim, é isso mesmo”.

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Olhar é violência. As associações entre aparato cinematográfico e armamentos de guerra são já conhecidas, mas a aceitação do cinema como arte suaviza seu efeito-bazuca. A semelhança mecânica com a arma aflora a ideia da “guerra de imagens”, importante na disputa política da sociedade do espetáculo debordiana (que se conforma em política pela via da “disputa de narrativas”, algo concebível num mundo habitado por imagens, a maioria delas ficcionais). O estúdio de televisão, na montagem inicial do episódio, realça a câmera-arma: arma de ver, arma de ser visto. A relação ambígua entre ver e ser visto se desdobra pelos três episódios de O Estranho Mundo… Ver e ser visto são duas formas da mesma violência potencial das imagens.

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Caça às bruxas. A punição, nos estudos já bastante difundidos por Michel Foucault, é um espetáculo público de reconhecimento entre o sacrificado e a população: somos todos ladrões, falsários, assassinos, estupradores, pervertidos, bruxas em potencial. O fetiche do espetáculo que mobilizava as massas em torno das execuções lida com a dimensão pública da violência que não pode ou deve ser reproduzida como comportamento individual. Mas para tal, pode e deve ser vista. Nas imagens de punição, bruxas são queimadas para assaltar a imaginação das pessoas.

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Os cinegrafistas dos Lumière registraram diversas partes do mundo procurando ativamente o exotismo, em vistas dedicadas ao olhar do público ocidental, especialmente nas colônias dos países europeus. São imagens de cartões postais, como as pirâmides do Egito, ou cenas cotidianas, como feiras livres e jogos recreativos. Uma das vistas, registrada no Vietnã, então colônia francesa, mostra crianças agitadas tentando catar as esmolas dadas por duas senhoras colonizadoras sorridentes, que jogam no chão as migalhas aos colonizados. A perversão é explícita, a violência, múltipla. O cinema leva essa imagem pública de violência – física, simbólica, racial, moral – para o porão – arquitetura primordial da sala escura.

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Em 1968, Mojica cria uma associação potente entre imagem e violência: nos porões reside tudo o que não pode ou deve ser visto. O cinema e a tortura. Se o cinematógrafo levou o mundo para a sala escura, a tortura é o espetáculo público da punição levado para o porão. Este terceiro episódio do filme organiza a obscenidade da tortura, só praticável se escondida, como forma de destruir a humanidade dos sujeitos. Os experimentos de Odéz acontecem no tempo, na exposição e privação de longo prazo que desorganiza a imaginação humana, a diferença, o senso de comunidade. Nos porões de Odéz ocorre um experimento de colonização, física e simbólica, fundado na perversão típica da razão instrumental.

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A imagem, por sua vez, torna público aquilo que não se pode ver. A tortura esconde enquanto o cinema mostra. O Estranho Mundo de Zé do Caixão organiza a ambígua relação do olhar com a sociedade. Seu terceiro episódio é o mais explícito nesse jogo: tortura e espetáculo se encontram. Convidados para jantar na casa de Odéz, um jornalista, opositor do protagonista no programa de tevê, e sua companheira são amarrados e expostos a cenas de orgia, canibalismo e tortura num espetáculo entre o teatro de horrores e a sala de cinema. Um homem negro acorrentado é forçado a engolir uma colherada de metal fundido. O casal capturado por Odéz não quer ver, mas é obrigado pelo professor e seus lacaios a encarar aquilo que acontece nos porões. Não é possível mais ignorar a violência obscena depois de vê-la. É nesse sentido que o cinema de José Mojica Marins tem uma presença gráfica. Sua mise-en-scène ressalta a potência do quadro, pelos estímulos que vísceras e sangue causam como matéria táctil. A presença gráfica do horror, intensificada filme a filme a partir de À Meia-Noite Levarei sua Alma, é materialidade não só do representado (vísceras, sangues, abjeções) como também da imagem, dos seus elementos de composição, e de seu suporte. O grão, o contraste dos tons de cinza, as deformidades que desenham o quadro calcificam o obsceno no plano, espaço privilegiado de criação do imaginário do cinema de Mojica. Enquanto o horror no cinema se faz da tensão entre o fora e o dentro de quadro, na ameaça de perversão do plano pelo indizível/invisível relegado para além das margens da imagem, os filmes de Mojica Marins investem no horror do visível.

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O primitivismo de Mojica é, assim, uma falácia. Talvez venha do folclore em torno da persona do diretor que se confunde com o personagem Zé do Caixão. Credito parte do problema crítico a uma questão estética. Os elementos cênicos de O Estranho Mundo…, como em muitos dos filmes do diretor, são opacos, não escapam da natureza artificial das massas de maquiagem, dos líquidos cuja cor carregada é mais densa que sangue. Há uma dificuldade tremenda de ver nesses desvios de opacidade a potencialização do impacto plástico para criar uma imagem horrorosa. A feiura resulta da intensidade gráfica no mar de tons de cinza da película monocromática. Parece “tosco” – dentro do ideário vira-lata da qualidade técnica industrial. Mas é pouco provável encontrar construções gráficas de planos na história do cinema brasileiro, seja antes ou depois, próximas do domínio técnico do material cinematográfico como a sequência da descida ao inferno em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver – que faria Kenneth Anger ruborizar de raiva. Onde as resenhas e os mitômanos veem um improvisador seria o caso de perceber o contrário: improviso é Vera Cruz, Conspiração, Globo Filmes, fazer um rebotalho de cinema industrial sem indústria, tanto como aparelhagem técnica, financeira e domínio do artesanato fundamental da linguagem. Mojica é o oposto disso. Seus filmes denotam um ganho progressivo do domínio da técnica disponível para chegar ao máximo que a imaginação pode criar. Não há defasagem, como o termo “primitivo” induz a pensar, mas uma experiência material própria.

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Antônio das Mortes

É curioso pensar no personagem Zé do Caixão no imaginário do cinema de horror. Mesmo que a matriz seja o filme estadunidense, Zé do Caixão pouco tem a ver com seus parentes do gênero. Não é um ser sobrenatural, ainda que seus impulsos de raiva injetem uma bomba de estamina em suas ações; não é um psicopata como os slashers, nem criação monstruosa da ciência ou da feitiçaria. Pelo contrário, Zé do Caixão é um sujeito sofisticado, culto, cético. Mesmo sendo coveiro, se veste formalmente, com terno e cartola. No início de À Meia-Noite… esbraveja não aguentar mais a “gente do mato” que o rodeia. Está mais próximo do “cético militante” contemporâneo que do filho do demônio. Não faz rituais espirituais, e sim comete crimes típicos na sociedade – estupro, assassinato, estelionato. Suas ações visam desmobilizar à força a superstição e o misticismo de pequenas comunidades agrárias. Nesse sentido, catalisa a violenta transformação da sociedade brasileira do período que deixava de ser agrária para entrar definitivamente no capitalismo industrial. Zé do Caixão é uma figura de secularização num país de credos diversos – é tentador colocá-lo ao lado de Antônio das Mortes como figura de mediação das tensões entre os modos de vida do campo e da cidade, centro e margens, litoral e interior, em conflito até hoje no Brasil. Não à toa, as fábulas dos primeiros filmes de José Mojica Marins com a presença do personagem giram em torno do ver como comprovação e concentram no interior da cena os conflitos entre crendice e profanação. O personagem não acredita em espíritos, Deus, Diabo; só no que pode ser comprovado. Apenas é possível crer se ver: Zé do Caixão é um continuador de Tomé.

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O outro lado do espelho. É interessante, assim, a aparição de Oãxiac Odéz. O nome sugere um espelho de Zé do Caixão, como sua composição reafirma: ao invés do coveiro, um professor; ao invés de um citadino em meio aos caipiras, uma figura exótica diante dos personagens mais cosmopolitas que compõem a mesa de debate. Odéz não é o descrente dos dois longas anteriores, que atiça o profano, e sim aquele que vai abalar crenças pela instrumentalização da experiência sensível. Zé do Caixão é o fascista inoculado – sua fixação com a pureza do sangue é notória –, o homem cotidiano que anda pelas ruas vendo na realidade a degradação do humano. Odéz é o aparelhamento disso no poder simbólico do saber, o recalque instrumentalizado como barbárie violenta, o terror destilado em laboratório. Zé do Caixão é homem público. Odéz é seu reverso de porão.

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O que faz O Estranho Mundo… um exemplo didático da força criativa de Mojica são suas articulações em torno do ver, do ser (ou não) visto, do (não-)visível. As três histórias são, além de contos de horror, variações em torno do motivo do olhar como poder, fazendo aproximações entre visibilidade e violência. Na primeira história (“O Fabricante de Bonecas”), a figura de linguagem é clara: as bonecas caseiras têm um poder misterioso que advém dos olhos – que depois saberemos ser de pessoas assassinadas pelo fabricante com a ajuda de suas filhas. Olhos que espiam as mulheres pela fechadura da porta e passam de potência a ato, pelo estupro. Ver já é uma violência. A punição é a castração da visão e não do sexo – olho por olho, dente por dente. Na terceira história, o visto e não-visto são partes fundantes da experiência humana. Continuamos vivendo num mundo perverso pela ocultação das violências. A sociedade burguesa cria aparatos de invisibilidade para seguir em frente. O porão é aqui subvertido de lugar do obsceno em espaço da mise-en-scène.

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Mas é na segunda história (“Tara”) que a variação do motivo é peculiar. Não é o caso de ver para crer, mas de ser visto para se fazer crer. Um vendedor de balões, pobre, feio, sujo, fica obcecado por uma mulher logo após vê-la, pela vitrine de uma loja, experimentar um par de sapatos. Os calcanhares da moça são carregados de erotismo. O olhar do vendedor de balões assume o ponto de vista da câmera, recurso ambíguo já em The Gay Shoe Clerk (1903) em que a tara visual do pé feminino é ativada pelo voyeurismo do espectador em uma cena corriqueira, protegido pelo aparato de filmagem e projeção. Aqui, corporificado no personagem voyeur, é a distinção de classe que faz a vez: perambulando atrás da mulher de classe média, o vendedor, mesmo sujo e portando balões que flutuam sobre sua cabeça, não é notado pela moça ou qualquer de seus pares pequeno-burgueses. Ao final, após a morte da mulher, o vendedor vai concretizar sua tara, viola o caixão da morta, pratica necrofilia e veste nela os sapatos esquecidos na rua mais perto do início do episódio. Como no restante do filme, o processo é encenado para o centro do plano e sua visibilidade é plena, também num espaço invisível, o mausoléu. Curiosamente, das várias ações encenadas por Mojica, o sexo aqui é interditado – seria a necrofilia um limite para o olhar? Até esse elemento do visível é proibido para o pobre vendedor: a concretização de sua tara sexual é jogada para a elipse. Difícil acreditar que seja uma questão de censura cultural ou comercial apenas, pois O Estranho Mundo… está recheado de cenas com nudez, violência gráfica, “perversões” diversas, blasfêmias. Há também um apontamento sobre a relação de classes na recém-urbanização brasileira, uma observação diferente daquela que o cinema brasileiro do fim dos anos 1960 praticava. Ser visto é também uma forma de dominação, no sentido que só quem tem controle da própria imagem escolhe o que vê. O jogo da invisibilidade torna-se uma questão importante da convivência das classes no país. O vendedor vê por fascínio; a mulher da pequena burguesia vê por opção. Focalizando outros aspectos da complexa experiência de vida do país, os filmes de José Mojica Marins estão completamente alinhados ao espírito cinemanovista de figurar a realidade. Dentro do conjunto de mazelas da sociedade brasileira que o cinema dos anos 1960 ousou retratar, o cinema de José Mojica Marins trouxe para o centro do quadro aquilo que está além do que se vê.


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