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O Brasil está morto. Viva o Brasil.

Dirigidos respectivamente pelo cineasta mais experiente desta edição e por um grupo de jovens experimentadores presentes à 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Sertânia, de Geraldo Sarno e Canto dos Ossos, de Jorge Polo e Petrus de Bairros, mantêm entre si algumas ressonâncias que não me parecem completamente desprovidas de sentido e orientação. Liberados de toda a lógica do “eterno ensaio” (aquela que vive de suspirar: “um dia o cinema brasileiro chega lá!”) ou da “Retomada” (“agora vai!”), estamos diante de dois filmes que circunscrevem um “cinema indireto”, cujas caraterísticas elípticas servem ao propósito de nos lançar a um regime muito específico de proliferação monstruosa. Trato o termo “cinema indireto” como algo oposto ao primado do Cinema Direto, isto é, o dispositivo cinematográfico servindo como meio de captação da realidade não somente pelo tema, como também pela forma. O cinema indireto quer deformar a realidade on purpose, pra ver que bicho, que monstro que dá.

As pontas soltas, eventualmente aleatórias, que ligam um filme ao outro, indicam um contexto de ressaca, sobre o qual recaem as mais duras desconfianças, mas que nunca emanam desânimo. São filmes que morrem atirando e, como mortos-vivos, ressuscitam repentinamente, ignorando os enquadramentos mais rígidos entre a vida e a morte. Como defini-los dentro de suas respectivas lógicas, irredutíveis a quaisquer visões pré-concebidas do cinema e, particularmente, do cinema brasileiro?

Uma “ecologia das imagens” pode se afigurar aqui como um termo provisoriamente adequado, se percebido como um registro “onde não se pode [mais] separar o natural, o técnico e o biológico, e sim pensá-los em conjunto” — como observa a filósofa Anne Sauvagnargues. Trata-se de imagens que abrem mão de tematizar ou fabular os corpos dados, para acrescentar novos corpos, corpos monstruosos, à realidade objetiva.

Este cinema indireto e monstruoso se propõe, antes de arriscar novas formas e expressões, a operar deformações nos registros considerados propriamente cinematográficos, fazendo proliferar modalidades impróprias de expressão. Relações definidas por deformação das partilhas categóricas ou, ainda, “exformações”, isto é, movimentos de instabilização da forma que indicam a superação da interpolação entre métricas e ritmos resguardadas em termos genéricos, como mise-en-scène, cinema de fluxo, etc.

Por não levar tão a sério essas categorias e dicotomias, esses filmes parecem mais absorver a instabilidade errática do real do que restaurá-la em uma forma apreensível. Daí o seu caráter indireto: uma vez a forma do filme servindo como meio para sua própria dissolução, não há outro caminho ao “participante”, “ex-spectator”, se não acompanhar de perto, acolhendo tudo aquilo que os filmes propõem para além de seu gosto pessoal e expectativas gerais.

Não que os filmes em questão sejam pioneiros neste aspecto multidimensional e transbordante da forma — Akerman, Ferrara, Weerasethakul e, no Brasil, Uchôa e Queiroz operam, cada um à sua maneira, essa saturação presencial na imagem cinematográfica. Mas é de se notar o quanto a forma indireta, isto é, os procedimentos que não informam, mas “exformam” o clichê e a referência, atinge neles uma alta carga expressiva.

O que uma taxonomia realizada à primeira vista revela são dois gestos sólidos na sua tendência em volatilizar o construto cinematográfico, para, posteriormente, liberar outras experiências, isto é, outras relações com a matéria do cotidiano. Há em ambos uma espécie particular de tensionamento interno dos planos, movimentos, cortes, sincronia e representação que, devido à originalidade dos materiais e dos procedimentos, nos apresenta duas sensibilidades acerca do “estar presente” na frente e atrás das câmeras, na sala e fora da sala de cinema. Cotidiano, portanto, não apenas relativo ao peso das visões do dia-a-dia, mas também o denso material perceptivo que colecionamos de maneira involuntária e sobre o qual incidem as deformações operadas pelo delírio, o tédio ou o espírito de guerra, conformidade e conformação.

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Sertânia oferece um duelo entre cegos: jogo excruciante de contrastes, feitos de pesadelo, agonia e cintilância, expressos pelo uso de um preto e branco estourado, como que realçando a onipresença dos códigos cerrados que possibilitaram a formação do “homem brasileiro”. Nesse registro, vida e morte são territórios de passagem que, ao homem sertanejo, desta vez um Corisco hesitante, é dado visitar e retornar, como nos sonhos. Nem todo gesto é dado por “precisão”, como afirma um de seus personagens, e é dentro de uma lógica imprecisa que o filme reflete esses movimentos de dúvida: “quem aproveita o farelo não desperdiça o fubá…” A câmera subjetiva rasteja sem que saibamos se é bicho, gente ou câmera. Não importa; bicho, gente e câmera se misturam, projetando ornitorrincos, unicórnios, cabarés e globos oculares sobre as relações de poder na terra seca da Caatinga.

No ápice, uma imagem clichê que se adensa e vibra na tela: “Viva o Brasil”, gritada em meio a uma Festa Junina, uma frase tímida, quase engasgada, a traduzir um sentimento que não se oferece de forma definida. A flagrante e embaraçosa origem genealógica dos conflitos na Caatinga, plasmada nas convenções pueris de uma comemoração de Ensino Fundamental, mas também na construção do povo que contra-ataca em Bacurau (Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019).

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Canto dos Ossos, experiência posta em prática pelo coletivo Osso Osso, também oscila entre a vida e morte, ou melhor, vida e morte constituem apenas registros possíveis da experiência universal — aqui acompanho o filósofo norte-americano John Dewey, para quem experiência significa relação, e, portanto, não se resume a um atributo psicológico, mas universal. Abandonando gradativamente a consciência e a preocupação narrativa, talvez em virtude de sua estrutura de produção coletiva, o filme joga pouco a pouco com a dissolução das fronteiras e a iminência monstruosa que esse movimento libera. Jogo e paródia nos levam a buscar a superação de toda cronologia, favorecendo a emergência de ritmos e tonalidades sem tramas muito claras, sem continuidade, sem juízo final. Vampirismo como mito circular, eterno movimento de devoração e cura. O cinema de horror espelhado na destruição das instituições públicas de ensino, a estratégia carpenteriana de tensionar o clichê com alta carga política. O tesão jovem desdobrado em ciclos de autofagia docemente infernal: Lautrèamont na praia.

Sertânia e Canto dos Ossos parecem ignorar os limites entre ficção e documentário, não para afirmar uma posição híbrida — o que aprofundaria a rigidez pálida entre registros supostamente apartados —, mas para exceder o próprio dualismo e desfiar a experiência. Embaralham o natural, o técnico e o biológico, mas também as relações entre a vida, a morte, o sonho, a imaginação, as sensações e a percepção, como que revirando o campo de atividade possível oferecido pelo cinema. Apostam na elipse e no clichê como um meio critico, e no uso crítico da história como ferramenta para produzir uma desfragmentação criadora – a dissolução assertiva de gêneros, categorias e procedimentos previamente consagrados. Ambos os filmes elevam, de maneira muito livre, algumas referências históricas a uma forma de apropriação que vivifica e renova premissas, sem propriamente julgá-las, condená-las ou simplesmente absolvê-las ou homenageá-las – Sarno com o Cinema Novo, Ossos com o Sganzerla e Kenneth Anger.

Podemos ainda ampliar o campo de ressonâncias entre esses filmes, observando que ambos quebram a quarta parede à sua maneira e, em ambos os casos, de modo a implicar o espectador em jogadas que imprimem um sentido contínuo de desorientação e repulsa. Em uma mesa que ocorreu em Tiradentes, tendo por tema “a imaginação como potência”, a dramaturga e intelectual Helena Vieira postulou um filme-experiência que, tal e qual o cinema pornô, quebrasse a quarta parede como que sugando a sensibilidade do espectador para dentro do filme e criando com ele um pacto objetivo sem garantias excedentes: a masturbação implica em uma sorte de investimento libidinal capaz de arrancá-lo literalmente de sua passividade, conectando-o com uma espécie única de prazer. O que seria de nós diante de um filme ou de um enigma que nos impelisse a vomitar ou gritar de pavor? Que forças anômalas, que “baralhamento” da percepção esse cinema seria capaz de liberar? Penso nos momentos mais soltos e violentos de Canto dos Ossos, ou na agonia do cangaceiro ao longo de Sertânia. Como escreveu Juliano Gomes sobre Canto dos Ossos, “é preciso estar à vontade no enigma”, e acrescento: apreender o enigma em sua insolubilidade implica em um processo de abolição da fruição (ou do tribunal) em favor do engajamento libidinal.

Filmes que alçam seu “além” à superfície de forma frontalmente indireta – percebam a primeira frase do Canto dos Ossos, nada mais extemporâneo do que dizer hoje: “não acuso”… Ambos são filmes que não acusam nem o cinema, nem seus personagens e nem a plateia. Mas há desafio: não mais retornar àquilo que já sabemos, não mais rever, não mais “desver”. Uma ecologia das imagens capaz de “exformar” o presente e fazer emergir um múltiplo monstruoso de todos nós e de todas as coisas. Portadores de um gesto suficiente para esgarçar ainda mais o tecido do descalabro, filmes que projetam um “ex-Brasil”, um Brasil horrendo, teratomórfico, quem sabe?

O Brasil morreu novamente: viva o Brasil, tudo é Brasil: a cada novo amontoado de slogans, o monstro desperta, renasce – foram muitos ao longo desta última década. Sarno e a trupe do Osso Osso produziram algumas espécies tenebrosas para o necrológio desta época, arrastando consigo outras épocas e outros códigos, revirando tudo, deixando tudo pelo avesso. Suas características enigmáticas, antes de lançar qualquer questão mais edificante, têm a força necessária para projetar sobre nós e sobre o mundo uma estranha luz.


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