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Mangue fértil

O cavalo é, para Jung, um símbolo para o inconsciente; para as tradições afro-indígenas, ele representa aquele ser passível de incorporação, médium. Cavalo é, assim como o animal-símbolo que evoca, um filme no qual a montagem se realiza a partir do fluxo do inconsciente.

Sendo o primeiro longa-metragem finalizado desde a implantação de editais de longas com arranjos regionais, ligado à Ancine,  no estado de Alagoas, Cavalo é um pronunciamento obstinado sobre a busca de compreender as ancestralidades que compõem o microcosmo alagoano em diálogo com as entidades que povoam o imaginário das culturas afro-indígenas. Ao acompanharmos a jornada de sete dançarinos  (Alexandrea Constantino, Evez Roc, Joelma Ferreira, Leide Serafim Olodum, Leonardo Doullennerr, Robert Maxwell e Sara de Oliveira), desde a elaboração da performance até o exercício da liturgia e dos rituais, acessamos os diferentes espaços que cada um permeia.

As cartelas iniciais do filme contam, brevemente, a história da criação do mundo a partir da mitologia Iorubá: a Oxalá, Nanã entrega lama dos rios, permitindo que ele molde perfeitamente o homem primordial, que ganha vida depois do sopro sagrado de Olorum. Somos transportados para um manguezal, de onde o filme se fertiliza no barro úmido, inebriado de entoares guturais em transe. Do mangue verde, surgem figuras trajadas com roupas brancas imiscuídas à flora endêmica. Elas se lavam no barro e se unem a ele, consumando um aterramento de si e do espectador logo no início do filme.

Cavalo se abre na concepção do primeiro homem e se gesta durante oitenta e três minutos, desembocando em um fim que também é vida e nascimento, recusando qualquer brecha que não seja a fertilidade de um cinema em construção, tão fresco e tão vital. Após o prólogo, que mimetiza a criação do homem na mitologia Iorubá no meio do manguezal, passamos para o registro da companhia de dança que ensaia no palco. As primeiras palavras compreensíveis surgem aos quase dez minutos de filme: é uma música que entoa “Sou de Alagoas, de Alagoinha”. Estamos diante de um homem que canta em primeiríssimo plano, em estado de incorporação. O longa compromete-se a filmar esses rituais em consonância completa com aqueles que estão sendo filmados, na medida em que eles efetivamente estavam acontecendo. A extensa duração desses planos justifica-se na ênfase dada ao processo dos indivíduos nesse estado de transe.

Cavalo se faz a partir de um material bastante heterogêneo. Dividido em blocos que se articulam por uma montagem que prima pela associação instintiva, o longa-metragem vasculha o processo de uma companhia de dança e de seus sete bailarinos. Cenas gravadas em celular intercalam-se com imagens em altíssima resolução dos dançarinos em estúdio, com instáveis câmeras documentais na rua, com encenações lúdicas no mangue. A falta de homogeneidade dos registros, apesar de deveras perceptível, não desvia o espectador desses percursos. Às vezes costurados pela música, às vezes pelos gestos, outras ainda pela sugestão das narrativas documentais e mitológicas ali presentes, os encadeamentos alicerçam-se pelo lirismo. A dissonância entre registros remete, talvez, aos diferentes percursos aos quais temos acesso. Assim como os dançarinos percorrem jornadas díspares para construírem suas performances, o filme não se isenta de constituir-se, também, desta matéria híbrida.

Ao acessarmos o espaço da companhia de dança, acessamos também – às vezes em lampejos, às vezes em cenas mais densas – a ancestralidade dos povos originários que fertilizaram o terreno contemporâneo. Antropofágico, Cavalo é uma obra robusta e fragmentária. Dentro dessa fragmentação, há certa estranheza na diferença abissal dos tempos entre os planos. Talvez justamente por pertencer a esse espaço do metafísico, não há vestígios de preocupações com nexos racionais e equidade entre os planos. Enquanto em algumas performances o longa se permite realizar cortes, nos relatando a presença de mais de uma câmera, em outros momentos somos contemplados por extensas cenas, como o plano-sequência de mais de dez minutos da oferenda a Omolu.

Apesar disso, seria possível apartar o filme em dois grandes trechos: um inicial, que acompanha mais a trajetória desses sete bailarinos, e um final, que se rende mais à corporalidade crua dos corpos que performam e às liturgias. Esses dois momentos são divididos pela cena de um dos bailarinos dando um depoimento sobre como será sua performance, que mais tarde o documentário revelará. Havendo certa exposição do aparato (e talvez essa seja a única cena em que isso acontece nitidamente), a voz de um dos personagens em tela nos guia para dentro do manguezal novamente, no qual somos transportados mais uma vez para esse espaço-tempo da criação.

Os gêneros feminino e masculino se imiscuem. Um corpo masculino é Eva, a primeira mulher, veste maiô na entrevista, mas está nu no manguezal. Essa Eva não-conformativa brota das águas doces, um corte nos leva ao mar crepuscular e, outro, a um longo ritual em plano-sequência. Nessa colisão entre o primitivo, exposto nos momentos em que o filme remonta à criação do homem, e os bailarinos contemporâneos, Cavalo digere as imagens em caos e regurgita a performance de Joelma Ferreira. A dançarina, desnuda, encontra-se centralizada em um amplo espaço negro com o chão recoberto de água. Executando uma performance arrojada, Joelma transforma-se em cavalo. Subvertendo a comum imagem etérea cristã dada às entidades metafísicas, Joelma é uma força divina que recusa dissociar aquilo que é material e aquilo que é incorpóreo.

A dança de Joelma se entrecorta, em montagem paralela, com a performance de um outro bailarino na chuva, este em um espaço concreto, nas noturnas e úmidas ruas de Alagoas. Joelma é uma espécie de Eva que em estado gestativo pare, ao final do filme, o primeiro homem. Ela flutua nas águas que parecem ser as mesmas que caem no plano da chuva. Joelma abraça-se e pulsa; e depois de um grito profundo, ela corre e desaparece, deixando-nos desprotegidos diante da tela preta. Em seguida, retornamos à rua sob a chuva, à concretude da existência terrena desse homem úmido de costas, para um último respiro antes que irrompa “Esú”, de Baco Exu do Blues.

Cavalo se encontra nesse grupo de filmes que tenciona mobilizar corporalmente o espectador, envolvendo-nos na dança dos planos e no pulso descompassado entre as cenas. Distante de espécie alguma de didatismo, o espectador despreparado está diante de uma obra que não anseia se explicar, mas sim reportar-se a uma ancestralidade por meio de um compilado de experiências do grupo de dançarinos, de rituais não-encenados e de performances sem ensaios. E é dessa crueza que Cavalo se cria, da crueza desses personagens, dos seus corpos e dos enlaces orgânicos que deles surgem.


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