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Esconde-esconde

Yãmiyhex – As Mulheres-Espírito se dá por um inusitado fio de enlace entre o dito e o não-dito. À primeira vista, as pistas estão todas aí: o filme retrata o acompanhamento da festa das Yãmiyhex na sua periódica visita ritual aos Tikmũ’ũn que residem na Aldeia Verde (Apne Yixux). Se o ponto de partida ainda soar distante, não há problema, a história de fundação das Yãmiyhex será narrada e reencenada pelo prólogo que abre a obra. Essas mulheres-espírito são evocativas do momento de conflito decisivo entre os homens e as mulheres da aldeia. Conheceremos seu surgimento e assistiremos à preparação para sua chegada. Nos será dada uma curiosa sensação de convicção a respeito do que assistimos, posto que a narração que principiou o filme seguirá conosco até o fim, apontando os caminhos de acesso às imagens que vemos.

Essas, as imagens, dotadas de uma força distinta de aparição – firmeza nos enquadramentos, facilidade nos movimentos de câmera, confiança perceptível entre campo e antecampo – se avizinham à voz que narra não por uma insuficiência a ser reparada, mas por uma relação de contiguidade espontânea: é tudo parte de uma mesma bolsa de coleta, um mesmo pano de costura tecido ao longo do filme. Uma brincadeira de cena que permite à abertura aquela sequência de planos quase fixos e corpos imóveis, ganhando vida e movimento conforme a história contada se desenrola e as águas correm na tela. Uma matéria que toca e reencanta a outra.

Se o que assistimos ressoa uma frequência coletiva que arrodeia a câmera, quem nos declama por detrás ou em frente a ela também soa como uma voz-comunitária engajada na tarefa de guiar os olhos desse espectador diante do que se apresenta. Essa narração constante não carrega nenhum ponto de contato com aquela voz de Deus arraigada no documentário etnográfico. Entre guia, professora, ensaísta e testemunha do próprio ato de filmar, a amplitude de competências dessa voz ainda resguarda o filme que assistimos e mesmo as palavras que ouvimos de toda a porção de não-dito que precisará ficar de fora.

Ainda no começo do ritual, depois de acompanharmos com atenção e dinamismo os preparativos nas costuras e a oferta de roupas para receber as Yãmiyhex, somos carregadas para uma cena sugestiva dessa relação que fia o tecido do filme: o pajé é filmado conduzindo os cantos enquanto a voz que narra nos confidencia: “Ele não deixa que se traduza essa canção pros brancos, não quer que ensinemos a eles”. A impossibilidade da tradução dá sinais de algo que no filme nunca pode ser revelado por inteiro: o próprio problema-tradução em que consiste a obra.

Quando a festa dura sete dias e o corte o reposiciona em menos de duas horas, quando a história de nascimento das Yãmiyhex nos é pacientemente repassada, quando cada um nos compartilha um pouco da sua presença no ritual com um ar de graça no rosto, intuímos que existe uma relação consciente de trato com espectadores de fora daquela dinâmica. Gente que conhecerá a aldeia Apne Yixux, seu povo e seus Koxup através do filme, mas para quem o desejo de apreender uma totalidade será sagazmente atordoado.

Durante a madrugada de festa, algumas crianças de costas para nós anunciam umas às outras a chegada do sereno: “tá lavando o céu para o amanhecer”, dizem enquanto levantam os braços para pegá-lo com as mãos. Assim também devemos estar nós, tocando um punhado de intangível pelo tecido que Yãmiyhex nos entrega. A narradora que revela não poder traduzir o canto para os brancos também conta que ela mesma não sabe. Por mais consciente que cada sorriso visto esteja a respeito da produção daquelas imagens, o filme vive precisamente junto daquilo que ele nos dá. A matéria de encenação de Yãmiyhex é da natureza do toque, da pele que ao se mostrar se torna. Quem sabe por isso, entre os Tikmũ’ũn a expressão yãy hã, que usam para “parecer com” ou “assemelhar-se a”, é a mesma que utilizam para “transformar-se em”.

Um arranjo que se cria na instância do toque. A começar por aquele toque que acontece no interior do quadro quando assistimos a sucessão dos embates na arena a céu aberto. Estamos no auge dos dias de cerimônia e as lontras invadem a aldeia com paus, canos e amassados de terra que de quando em vez manuseiam como armas ou, bem dizer, como câmeras. “Vamos matar esses coisas-ruins”, declaram enquanto acusam as mulheres de ganharem em cima da venda de sua carne. “Vê se tira bem essa foto”, escutamos uma delas responder. O conflito é então deflagrado, os corpos se arremessam e por um instante não sabemos mais se sairemos vivos desse embate –decerto não sairemos iguais. A terra já virou câmera, o cano, arma, e uns pelos outros já não dão.

Porque o toque é também a máquina de crença que leva a pele das imagens até a nossa pele. Como num embate, num jogo ou num desejo. Se aqueles que filmam riem um pouco de nós ao filmarem, eles riem mais ainda quando nos juntamos para rir com eles. Reacende-se uma confiança, enganosamente adormecida, na vocação que o encenado tem para tornar-se real – ainda que seja na camada da epiderme. Essa convicção que já existia no Tatakox (Aldeia Vila Nova, 2009) estimulando a combinação precisa dos tempos entre a consciência do corpo da câmera, dos corpos filmados e a do narrador, chega num barato especial em Yãmiyhex. Barato que vive em nós como um impulso ou um riso, capaz de atiçar a travessia entre os arames farpados no rumo das águas e dos peixes que precisamos tocar.

Na natureza do tato, está tudo presente: a ocupação das refeições pela comida industrial naqueles enquadramentos em que os refrigerantes adquirem uma superproporção na tela, a dificuldade sentida por uma narradora-câmera quando as mulheres furam as cercas que hoje restringem o acesso ao rio das Yãmiyhex. É como se, aqui, o que tivéssemos de mais profundo fosse mesmo a pele. A pele entre as imagens nos planos prenhes que tocam uns aos outros para se atravessarem como no corte em que o quadro sem gente torna-se subitamente ocupado pelos Yãmîy correndo do fundo. A pele das andorinhas arrematada pelos banhos da água jogada, essa água que os brancos sugam para a criação do gado e aqui vira matéria de jogo.

Se as imagens são eloquentes e também o são seus narradores, uma dimensão tátil do rojão desconcerta as certezas que nos colocavam em relação com a tônica segura da narração. As Yãmiyhex entraram no fundo da terra e foram embora, mas depois elas vão voltar de novo. Nessa brincadeira de esconde-esconde com o espectador, o que nos acontece é menos do campo da alteridade e sim da alteração. Tornar-se andorinha e lontra. Instaurar uma existência antes de defender sua necessidade, na graça de um jogo que se arrisca jogar.


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